sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A SAGA DOS ARIGÓS - A HISTÓRIA DOS SOLDADOS DA BORRACHA (1943-1947), AMAZÔNAS – BRASIL

 
Seringueiros nordestinos convocados para extração do látex  

1ª Reportagem: Editorial e a Guerra da Borracha

 A União do Vegetal tem sua origem social ligada aos brasileiros que migraram pra trabalhar como seringueiros na Amazônia em meados do século XX
Série de reportagens de Ariadne Araújo, publicada em suplemento especial do jornal O POVO, Ceará.



A história dos 55 mil brasileiros recrutados pelo governo Getúlio Vargas para produzir, nos seringais da Amazônia, 100 mil toneladas de borracha por ano para os países Aliados durante a II Guerra Mundial.
Fugindo da seca de 1942, nordestinos se alistaram como voluntários e pelo menos 31 mil morreram, vítimas de malária e outras enfermidades, além dos problemas decorrentes da dura jornada de trabalho.
A reportagem resgata essa história e mostra onde estão hoje os sobreviventes da Saga dos Arigós, que ampliou a presença do povo nordestino na ocupação social da Amazônia.

Esta história será contada aqui, a partir de hoje em seis reportagens:




 EDITORIAL
  


Em busca dos heróis da Pátria


A história por trás da história. O cordelista de Sobral, João Amaro, 68, puxou, sem querer, a ponta de um novelo. No começo, o assunto nem era esse. O aposentado mostrava material, dezenas de folhetos de cordéis de sua autoria, para uma matéria sobre os versos fesceninos, veiculada pelo suplemento Sábado. No decorrer da entrevista, no entanto, uma surpresa: a vida de João Amaro se confundia com a de 55 mil nordestinos que formaram, durante a II Guerra Mundial, o Exército da Borracha.

Numa carta amassada, espécie de desabafo e denúncia, ele resume a quem se interessa em saber, os anos de cativeiro e sofrimento na floresta amazônica. Um sacrifício pedido pela Pátria para a vitória dos países Aliados. Para o jornal O POVO, essa era uma história que não poderia deixar de ser contada. Inquieta e apaixonada pelas boas causas, a repórter Ariadne Araújo foi até o Norte do País. Durante 14 dias, pesquisou muito e descobriu que a experiência do seu Amaro era a referência do último ciclo migratório que levou nordestinos ao Vale da Amazônia.

Ariadne visitou seringais às margens dos rios do Acre, região que concentrou boa parte desses migrantes. Encontrou o exército da borracha envelhecido, doente, em busca de uma outra dívida: a promessa do Governo Federal de reconhecê-los como heróis da Pátria. São essas histórias, perdidas entre os igarapés, nas margens de rios barrentos, balançando em palafitas, contadas sob a revolta de quem descobriu tarde demais que foi enganado, que esse suplemento vai contar.


A GUERRA DA BORRACHA


A enxada pela faca de seringa. A seca do Nordeste pela floresta Amazônica. A troca foi durante a Segunda Guerra Mundial, quando 55 mil agricultores nordestinos formaram o Exército da Borracha. Missão: salvar os países Aliados do colapso da borracha. Pelo menos 30 mil deles morreram em completo abandono.

A II Guerra Mundial, a floresta na Amazônia ou a seca no Ceará. De 1943 a 1947 esses três momentos da história se misturaram. Em Alto Santo, no Vale do Jaguaribe, leste do Estado, o plantador de feijão e arroz, Edgar Bezerra Mota, 72, fez a escolha. Há 55 anos, ele deixou a lida com a terra, a família, o lugar onde nasceu e virou seringueiro. Como ele, outros 55 mil nordestinos pegaram um navio para o Norte e mudaram, de um dia para o outro, suas vidas. Um exército - número igual ao de americanos mortos no Vietnã -, convocado às pressas pelo governo do Brasil para um esforço de guerra: a produção anual de cem mil toneladas de borracha.

Se fosse enredo de filme, poderia ter o título Sem Saída. Se fosse tema de livro, Tragédia Anunciada. Um pacto, os Acordos de Washington, assinado pelos presidentes Franklin Delano Roosevelt, dos Estados Unidos, e Getúlio Vargas, do Brasil, selou o destino do exército da borracha. Eles tinham uma importante missão nacional: salvar os países aliados do colapso na indústria bélica. Para os americanos, um quilo de borracha valia mais que um general e um batalhão juntos. Era o nervo da guerra. O problema mais urgente a ser resolvido. O produto mais crítico a ameaçar o êxito dos Aliados.

A comissão especial, formada para estudar o fornecimento e estoques de material de guerra, deu o alarme. Em 1944, cerca de 27 milhões de automóveis na América teriam que ser abandonados pela falta de pneus. Além dos carros, sairia afetada a produção de calçados, isolantes, cinturões, peças para rádio e telefones, por exemplo. O estoque armazenado daria para, no máximo, doze meses. Os planejadores militares entraram em pânico. Mas a indústria de armamento teria prioridade. Melhor o desconforto que a derrota.

O relatório final da comissão não deixou dúvidas. Se não fossem assegurados novos suprimentos, as exigências militares esgotariam o estoque - 641 mil toneladas -, antes do verão. O jeito foi partir para o sacrifício. No início, de civis americanos e, logo depois, de milhares de nordestinos brasileiros. Para reduzir o consumo de pneus, os EUA racionaram gasolina, limitaram em 56 quilômetros por hora a velocidade e em oito mil quilômetros o percurso médio anual dos carros e ainda suspenderam a produção e venda de automóveis, até segunda ordem.

A produção do aço, do cobre, do alumínio, das ligas ou da gasolina de aviação estava garantida. Havia estoque considerável à disposição das forças armadas. Mas a crise da borracha atingiu a todos os Aliados. A Inglaterra tinha apenas 100 mil toneladas de estoque. O Canadá, 50 mil. A Austrália, 20 mil. A estratégia era buscar toda a matéria-prima existente na América Latina. Pelo menos até que a borracha sintética, um antigo projeto dos EUA, fosse um sucesso e passasse a ser fabricada em escala, permitindo a comercialização. Um total de 50 novas fábricas trabalhava para isso. 


Quando a guerra terminou, a produção de borracha sintética já alcançava um milhão de toneladas anuais. Mais que o volume de toda a borracha importada em um ano, antes do conflito mundial. Mas isso foi só em 1945. Ainda no auge da crise, um boletim informativo do governo brasileiro trouxe boas novas: a existência de 300 mil árvores da hévea brasiliensis, mais conhecida como seringa, espalhadas por toda a Amazônia. Era, como se diz, a “sopa no mel”. Isso significava um potencial de 800 mil toneladas anuais, numa área de quase um milhão de milhas quadradas, incluindo o Brasil, Peru, Bolívia e Colômbia. A metade dessa produção já resolveria a crise dos Aliados.

Os técnicos que fizeram os cálculos esqueceram, no entanto, de computar alguns detalhes importantes. Um deles era a questão da distância. Na Amazônia, em meio acre de floresta, pode-se encontrar, no máximo, três ou quatro seringueiras. Outro ponto não levado em conta era a falta de mão-de-obra para reorganizar os seringais amazônicos, abandonados na década de 30, quando a extração brasileira de borracha caiu para 6 mil toneladas, ou seja, 0,2% da produção mundial. Resultado: eram grandes as chances de as coisas não caminharem tão de acordo com o que foi colocado na ponta do lápis.

Não poderia ter outro nome. A operação que aconteceu no Vale Amazônico em pleno conflito mundial passou a ser chamada de Batalha da Borracha. Os técnicos fizeram, então, novas contas. Em toda a região Amazônica, deveriam restar apenas 35 mil seringueiros, remanescentes do primeiro ciclo da borracha. Era preciso trazer, e urgente, mão-de-obra para a extração de látex suficiente para resolver a carência dos países Aliados. Em troca, o Brasil tinha a promessa de ver resolvida uma lista de pendências: 20 tanques leves, 100 tanques de porte médio, quatro metralhadoras antiaéreas e ainda US$ 200 milhões para equipamentos militares.

Com os olhos no Norte do Brasil, os Estados Unidos tinham pressa. Na base do “custe o que custar”, o plano era o de obter o máximo de borracha em um mínimo tempo. Os americanos não se interessavam nem pelo desenvolvimento da Amazônia e nem pelo bem-estar da população, embora alardeassem isso. Enquanto eles arcavam com o ônus maior, envolvendo-se diretamente no conflito, o resto da América devia participar do esforço de guerra, no fornecimento de matérias-primas à indústria bélica e na manutenção da ordem interna, para se evitarem alterações nos compromissos políticos e econômicos assumidos. 


Franklin Roosevelt queria mais que a produção de borracha do Brasil. Getúlio Vargas cedeu. Aumentou o número de tropas de manutenção nas bases aéreas do Norte e Nordeste, liberou a construção de instalações militares e navais e a permissão para que as aeronaves americanas usassem o espaço aéreo nacional. Em alguns casos, oficiais brasileiros chegaram a entregar o comando das tropas para oficiais americanos. Mas tudo isso ainda não foi suficiente.

A vida do agricultor Edgar Bezerra Mota, por exemplo, também entrou na negociação. Ele e outros milhares de nordestinos, grande maioria adolescentes, foram colocados na mesa como trunfos do Brasil nessa política de boa vizinhança. Na barganha do toma-lá-dá-cá, a mão-de-obra, tratada pelos jornais como tropa de flagelados, era algo importante a se oferecer no sacrifício da guerra. Só no ano de 1945, esse exército recrutado aumentou o estoque de borracha natural de 93.650 para 118.715 toneladas. Uma reportagem publicada no New Chronicle, de Londres, denunciou a tragédia: 31 mil migrantes nordestinos morreram na tentativa de garantir matéria-prima para os Estados Unidos.


O deputado federal Café Filho, representante do Rio Grande do Norte, pediu a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a situação dos trabalhadores enviados à Amazônia. A CPI da Borracha ouviu depoimentos, realizou doze sessões e foi dissolvida sem conclusão nenhuma. O que a CPI não disse em seu relatório é que, com o fim da guerra, a situação nos EUA se normalizou e os americanos já não precisavam mais do Brasil. Em consequência, o País também não precisava mais dos 55 mil homens que mandou para a Amazônia. Poucos conseguiram voltar para casa.

A Batalha da Borracha não deixou nada para o Brasil. Os seringais, a maioria falidos ou hipotecados, seriam, anos mais tarde, presa fácil de especuladores de terra que começaram a atuar na região. Manaus, o centro do esforço de guerra, estava arruinada e não era, nem de longe, uma sombra do luxo e deslumbramento do começo do século. Já os trabalhadores foram entregues à própria sorte. Enquanto isso, os Estados Unidos conseguiram, finalmente, sua produção de borracha sintética e a Inglaterra recuperou suas possessões e cultivos de seringueiras. O mundo voltava, aos poucos, à normalidade. A reportagem do New Chronicle resume: “agora os mortos continuam absolutamente mortos”.

Origem: Jornal O POVO, Ceará e Centro Espírita Beneficente UNIÃO DO VEGETAL

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