Marcel Coelho
Publicado em literatura por Marcel Coelho
Obvious – Mundo em Transe
Eram
dois amigos. Opiniões e personalidades muito distintas. Apenas um fortuito
encontro após um cansativo dia de trabalho. Estavam eles em um café na região
central de Belo Horizonte. À noite, o ambiente transpirava elegância. Baixa
iluminação e colagens de eventos e pessoas importantes das décadas que se
foram. Thauã era um profissional das letras, enquanto João, das leis. Pediram
dois expressos e no meio-tempo, João acendeu sua usual cigarrilha.
Após
perceber uma morena bonita que passava se esgueirando e expondo suas curvas por
entre mesas, João intercedeu:
-
Deus abençoe as Alterosas. Thauã, como está o trabalho?
-
Sabe como é… Tento fazer o melhor. Mas os alunos contemporâneos têm o mundo nas
mãos e a cabeça no chão. Parecem não querer voar. Tento estimulá-los mas se
comportam como se estivessem acorrentados aos calabouços platônicas.
-
Calabouços platônicos?
-
Sim. Só conseguem ver as sombras. Por vezes me sinto como o palhaço Pierrot.
Logo eu, antes apaixonado pela docência.
Seguiram-se
risos.
-
Vítimas do tempo. Apenas filhos do tempo. E você, meu caro, deveria se
apaixonar por algo melhor que a docência. João apontou com um olhar de soslaio
para uma loira que também se esgueirava por entre mesas, portando curvas ainda
mais acentuadas que a anterior.
-
Essa é a inspiração para continuarmos na luta. Sabes que a docência também tem
seus privilégios. Seguiram-se mais risos.
-
Conte-me sobre sua carreira de magistrado. Satisfeito?
-
Nem tanto. Caricaturando, os representantes das partes mentem e nós escolhemos
aquela que é a mais convincente entre as mentiras.
-
Uma verdade bem inventada acaba por se tornar realidade. É a luta dos homens.
Vale tudo.
-
Luta... Thauã, você continua com aquelas ideias sobre luta de classes ou já
amadureceu?
-
Não me venha com suas frases feitas. A luta de classes é apenas uma busca
sincera por justiça. Não existe relação entre esta e amadurecimento. Você,
homem das leis, deve entender mais que ninguém sobre a justiça dos homens. A
propósito, para você, o que é justiça?
-
Sei que não concordas, mas para mim justiça é a lei e deve representar sempre
as aspirações de uma sadia coexistência social.
Thauã
escutou calmamente o amigo. Um semblante enigmático o acompanhava não deixando
transparecer se concordava ou não com a definição de justiça proferida.
-
E na sua visão, rubro mancebo, o que é justiça?
Thauã,
com o movimento rápido, bebeu todo o café. Após um suspiro, ergueu sua cabeça e
apontou para a colagem de um senhor que estava localizada na parede por detrás
de João.
João
se virou em um lento movimento e encarou a colagem não reconhecendo aquele
senhor.
-
Quem é, Thauã?
-
É um escritor. Escreveu um livreto de onde pode ser extraída uma bela definição
de justiça.
-
Conte-me sobre esse livreto.
-
Trata-se de um pequeno romance, João. O protagonista é um pescador de idade já
avançada. Santiago estava enfrentando uma maré de azar. Há muito não pescava um
peixe. Tal sorte já durava 84 dias. Transformara-se em motivo de chacota entre
os seus.
-
Então, queres dizer que o conceito de justiça virou uma estória de pescador.
Estás a gozar-me, Thauã?
-
Claro que não, João. Escuta ao invés de apenas esperar sua vez de falar.
Santiago era homem de poucos amigos. O mais íntimo, um garoto que havia
ensinado a pescar ainda quando na mais tenra infância. O velho, após a
desafortunada temporada, decidiu sair ao mar uma vez mais. O garoto insistiu em
acompanhá-lo. Santiago negou. Aventurou-se como um ermitão em seu barco na
esperança de encerrar aquele lapso de má sorte. Após algum tempo, Santiago
conseguiu iscar um peixe enorme. Era o maior que havia visto. Empenhado em uma
árdua e incessante luta, Santiago conseguiu trazê-lo junto a si. Não foi
possível embarcá-lo em consequência de suas gigantescas dimensões. O pescado
estava destinado a regressar amarrado à proa. Era um peixe-espada daqueles que
se vê uma vez em vida. A disputa durou dias. O contato com a linha fizeram as
mãos de Santiago sangrarem. O sol, a água salgada e o esforço físico haviam
exaurido suas forças. Não obstante, o velho estava feliz. Feliz por reencontrar
a aldeia de pescadores com a certeza que a péssima fase havia terminado. Sabia
que reconquistaria o respeito dos seus. Quando estava retornando com esse
mosaico de sensações dentro do peito, Santiago avistou um conjunto de barbatanas
o espreitando. Os tubarões passaram a avançar em sua direção com a intenção de
se alimentarem daquela imobilizada presa. Santiago iniciava uma segunda luta,
agora para proteger os louros da pescaria. Com um arpão, tentava espantar
àqueles oportunistas do mar caribenho. Infrutífero esforço. Quando voltou à
praia, somente restaram a pele e as estruturas internas daquele que tinha sido
o maior peixe já capturado pelos da região. Exausto, desembarcou. Os outros
assistiam à cena com um sentimento de piedade.
João
interrompeu a narrativa.
-
Tudo bem, Thauã. Parece-me uma estória fabulosa e muito sensível, entretanto
estou buscando imaginar de onde extraíste o conceito de justiça.
-
Quais dos personagens nesta estória foram mais fortes, João?
-
Ouso dizer que foram os tubarões.
-
Aí está.
-
Aí está o que, Thauã?
-
O conceito de justiça.
Seguiu-se
uma interjeição. João movimentou suas mãos como que não entendendo. Ao fazer o
movimento, as cinzas que já se acumulavam em sua cigarrilha se espatifaram por
sobre a mesa.
-
Justiça, meu querido amigo, é a do mais forte.
-
Hum. Usaste a maiêutica para me convencer. Acreditava que isso já estava
démodé. Um estranho conceito de justiça para um homem que se diz à esquerda.
Queres dizer que essa é a justiça dos homens? Àquela do mais forte. Legitimas o
privilégio de poucos sob essa lógica, Thauã. Não vês?
-
Privilégio de poucos, Ham?
Thauã
suspirou. Olhou para o grande vidro transparente que dava para a rua. Voltou o
olhar para o retrato de Hemingway e balbuciou...
-
Quem disse que estes poucos são mais fortes?
*
As ideias contidas neste texto são fortalecidas por elementos absolutamente
ficcionais.
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