Apesar de condenada pela ONU, países da África e no Oriente Médio mantêm
a prática; a mutilação consiste em cortar partes do clitóris e dos pequenos e
grandes lábios da vagina.
Por
Amanda
Campos - iG São Paulo
A gaze ao
redor do tornozelo esquerdo da pequena Boche, de 10 anos, esconde o que seu
olhar triste não consegue disfarçar. Após se recusar a ter as partes genitais
mutiladas, a criança que mora em uma aldeia do norte da Tanzânia teve o pedaço
da pele da perna arrancada à faca pelo próprio pai.
Boche faz
parte do contingente de milhões de meninas e mulheres que vivem em países da
África e do Oriente Médio onde persiste a prática da mutilação genital
feminina, uma tradição de ao menos cinco mil anos de história que consiste em
cortar partes do clitóris e dos pequenos e grandes lábios da vagina. Em alguns
locais o corte ainda é feito à navalha.
O
procedimento teria função sanitária – a mulher se tornaria mais limpa após o ato
– e também atenderia a questões culturais: o clitóris é visto por sociedades
patriarcais como a falsa representação do pênis e, portanto, competiria com a
virilidade masculina. Na maioria dos casos, a mutilação da vagina veta à mulher
o direito ao prazer sexual.
De acordo
com o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef, a mutilação genital é
realizada em cerca de 3 milhões de meninas e mulheres todos os anos e se
concentra em 29 países entre o continente africano e o Oriente Médio.
Até agora,
mais de 130 milhões de meninas e mulheres já foram submetidas ao procedimento
e, se essa tendência for mantida, outras 30 milhões poderão ser mutiladas nos
próximos dez anos. Somado ao impacto do crescimento populacional, o índice pode
atingir 63 milhões até 2050, de acordo com o Unicef.
"De
todas as histórias que eu já presenciei, a de Boche é a que mais me comoveu.
Ela é só uma criança...", diz ao iG Julian Marcus, presidente da Tanzânia
Development Trust (TDT), ONG que acolhe vítimas da mutilação e ajuda a
erradicar a cultura no país e para onde Boche foi encaminhada.
Entre os
países que praticam a circuncisão feminina, a Somália tem o maior número de
casos: 98% das mulheres entre 15 e 49 anos já tiveram a vagina mutilada,
segundo o estudo "Female Genital Mutilation/Cutting: A statistical
overview and exploration of the dynamics of change", do Unicef, divulgado
em 2013. A Guiné tem o segundo maior índice, 96%. Djibouti e Egito têm,
respectivamente, 93% e 91% da população feminina mutilada. Em Eritreia e no Mali,
o número chega a 89%. Em Serra Leoa e no Sudão, a prevalência é de 88%.
Formas de mutilação
Em dezembro
de 2012, uma resolução da ONU (67/146) condenou a prática. Para dribá-la, no
entanto, alguns países têm medicalizado o procedimento. No Egito, por exemplo,
o corte no clitóris é feito superficialmente por profissionais de saúde
treinados, o que reduz o risco de infecções e morte da paciente.
Mas esse
não parece ser o procedimento padrão em todos os países listados pelo Unicef.
Théo Lermer, ginecologista, sexólogo e colaborador do ambulatório de
sexualidade do Hospital das Clínicas (HC), explica que tribos ainda realizam a
mutilação genital extrema, onde a mulher tem o clitóris e os pequenos lábios
arrancados por meio de facões e navalhas sem o menor nível de profilaxia.
"Nesses
casos, a vagina é costurada e se torna, basicamente, os orifícios para urinar e
menstruar. Depois disso, durante a relação sexual, essa mulher sente bastante
dor e, quando engravida, corre sério risco de morrer. Se ambos sobreviverem, é
provável que a mulher sofra com fístulas", afirma.
Para Melanie Sharpe, assessora de imprensa do Unicef em Nova York, "acabar com a mutilação genital não é uma questão de simplesmente impor valores. O fim da prática é uma ação que inclui governos nacionais, líderes religiosos locais, os meios de comunicação e o mais importante, comunidades e famílias".
Questão de cultura
A origem da
mutilação genital feminina é milenar, mas incerta. Segundo Olga Regina Zigelli
Garcia, pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), há estudiosos que apontam para a época da venda de
escravas no mercado árabe – elas seriam circuncidadas antes do negócio. Outros
falam da invasão do Vale do Nilo por tribos nômades que realizavam o
procedimento e o espalharam pelo Egito e países vizinhos por difusão nos anos
3.100 a.C.
Para
Claudio Bertolli Filho, professor de antropologia da Unesp, Universidade
Estadual Paulista, como a mutilação genital feminina tem uma representatividade
grande nas sociedades africanas, sua permanência deve ser discutida e, em
muitos casos, respeitada.
"Essa
é uma cultura que passa de geração para geração. Para nós, por exemplo, é
normal a mulher fazer cirurgia de reconstituição de hímen para ficar virgem
novamente. Se a circuncisão não for total e a mulher quiser manter a tradição,
não acho que deveria ser erradicada", pondera.
Já a
socióloga Olga considera a mutilação genital uma violação dos direitos humanos
e herança das sociedades patriarcais e, por isso, não deve ser mantido apenas
por seu "questionável valor cultural".
"A
prática, além de violar a dignidade humana, também viola os direitos da
criança, já que meninas entre quatro e oito anos também são violadas. Não
podemos legitimar crueldades e desigualdades com a desculpa da tradição",
afirma.
Foi para
apresentar a filha à sociedade que o pai da tanzaniana Verônica, de 14 anos,
quis obrigá-la a se submeter ao ritual. Durante seu relato para a ONG que a
acolheu, a jovem afirmou ter sido informada de que "deveria ser mutilada
porque tinha terminado a escola primária e já tinha idade para casar."
Como se
recusou, a adolescente passou a ser espancada sistematicamente pelo pai.
"Meu pai dizia que com a mutilação eu teria um dote maior. Seriam cinco
vacas que meu pai utilizaria para vender e mandar meu irmão para uma escola
particular", disse ela em depoimento à BBC. Verônica fugiu de casa e
buscou refúgio na Tanzânia Development Trust (TDT).
O Fundo de
População das Nações Unidas, que atua em 22 países do continente, afirma que
cerca de oito mil comunidades na África concordaram em abandonar a mutilação
genital feminina. De acordo com Melanie Sharpe, foi criado em 2008 um programa
conjunto entre o Unicef e o UNFPA para acelerar a mudança em 15 países da
África Ocidental, Oriental e do Norte.
Cenário econômico e social
A baixa
escolaridade e os níveis expressivos de pobreza ajudam a difundir e manter a
prática no continente africano, segundo a ONU. Segundo a ONU, o continente,
cuja população geral ultrapassa os 889 milhões de habitantes, tem algumas das
áreas com os piores níveis de saneamento básico do mundo.
Na África
Subsaariana – que abrange países como Tanzânia, Somália, entre outros – o
porcentual de saneamento básico não passa de 30%. Metade da população vive com
menos de um dólar por dia e até dois terços dos países estão entre os que têm
os menores IDHs.
É nessa
região que há também a maior prevalência de favelas urbanas do planeta: elas
devem abrigar 400 milhões de pessoas em 2020. O rápido crescimento urbano e a
falta de planejamento têm aumentado os assentamentos impróprios e, por
consequência, o número de catástrofes recorrentes de desabamentos, entre
outros.
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