Bruno Braz
Simples. Inspiração. Escrita.
Discernimento. Entrelinhas. Ilusão. Crítica. Loucura. Perspectiva.
Singularidade. Interação. Amor. Infinito. Pensamento. Escolha. Ser. Ponte.
Vida. Transformação. Profundidade. Introspecção. Exposta.
em obviusmagazine
A linguagem é, por si só, um reino humano à parte — uma representação
humana da realidade. Mas até que ponto conseguimos reconhecer seu poder
destrutivo de generalização e abstração? Como lidamos com seu aspecto criativo?
Afinal, é possível separar a dádiva da maldição?
A linguagem é precursora de qualquer tecnologia que
exija o acúmulo de conhecimento e a coordenação de atividades humanas. Todas as
criações da civilização, das pirâmides às estações espaciais, se baseiam em
símbolos. Sem diagramas, instruções, especificações, guias, programas de
computador, dinheiro, textos científicos, leis, contratos, cronogramas ou
bancos de dados, como poderíamos construir um microchip, uma bomba atômica ou
um telescópio? Conseguiríamos operar um aeroporto ou até uma prisão?
Ao
discutir tecnologia, surge também uma questão inevitável: "É possível
separar a dádiva da maldição?" Assim como os exemplos acima deixam claro,
também devemos questionar a linguagem. Afinal, ela é a base desse reino humano separado e,
desde o princípio, nos oferece tanto o poder de criar quanto de destruir. O
potencial destrutivo da linguagem se encontra na própria natureza da
representação. As palavras, e particularmente os substantivos, forçam uma
infinidade de objetos e processos únicos em um número finito de categorias. As
palavras ignoram a singularidade de cada momento e experiência, reduzindo-os à
"isso" e "aquilo". Nos concedem o poder de manipular e
controlar, através da lógica, as coisas as quais se referem. No fim, algo se
perde — a própria essência das coisas. Pela generalização de características em
categorias, as palavras tornam invisíveis qualquer diferença. Ao chamar
"A" e "B" de árvores, nos condicionamos ao rótulo, cegos às
peculiaridades de "A" e "B". O rótulo afeta nossa percepção
da realidade e, consequentemente, o modo como interagimos com ela.
Algumas
culturas "primitivas", anteriores aos rótulos genéricos, eram
animistas e acreditavam que cada animal, planta, objeto e processo eram a
própria manifestação de um espírito singular. Imagine uma época em que uma
árvore não era apenas "uma árvore", mas um indivíduo distinto. Quando
considerada apenas uma árvore, uma entre todas da floresta, derrubá-la não é tão
grave. Afinal, nada de único será removido do mundo. Porém, quando considerada
singular e insubstituível, só a derrubaríamos com muita cautela e por um
propósito muito digno. Assim, ao converter todos esses seres únicos em apenas
"muitas árvores", não pensamos nem duas vezes antes de devastar
florestas inteiras.
O
mesmo se aplica, é claro, aos seres humanos. O distanciamento produzido pela
linguagem facilita a exploração, a crueldade, o assassinato e o genocídio.
Quando outras pessoas, o "outro lado" de uma relação, são meros
membros de uma categoria genérica (seja "cliente",
"terrorista" ou "colaborador"), encaramos a exploração e o
assassinato com mais facilidade — às vezes até com indiferença. Epítetos
raciais também se aproveitam do que chamamos de "desumanização da
vítima". Entretanto, a desumanização não ocorre apenas no contexto racial,
mas em qualquer categorização — até mesmo em "humano".
Não
estou pregando a abolição dos substantivos, mas a conscientização da relativa
fantasia que representam. Quando nos perdemos no reino artificial das abstrações
(análises estatísticas, nomes de países, números em planilhas) e
acreditamos que são reais, cometemos um ato de violência.
Quando
reconhecemos cada rosto, não há motivos para generalizá-los em
"pessoas". Nossos ancestrais experimentaram um nível de intimidade
que mal conseguimos imaginar atualmente, vivendo entre estranhos. Entre as palavras,
asfixiamos não só a riqueza social, mas a totalidade da experiência sensorial.
Ao denominar, abstrair e reduzir o mundo, empobrecemos nossa percepção do
mesmo. A linguagem é a base e o modelo para a padronização, generalização e
abstração implícitos na ciência e indústria atuais. Na ciência, encontram-se na
suposição de leis universais que
se aplicam de forma geral à um substrato de partículas fundamentais. Na
indústria, encontram-se na padronização de componentes e processos.
Ocasionalmente,
temos a sorte de vislumbrar um momento de percepção sem mediação da linguagem
ou qualquer outro sistema de representação. O mundo parece vibrar com uma
riqueza indescritível de sons e cores. Na simples tentativa de descrevê-lo, nos
distanciamos da verdadeira realidade e, enfim, essa experiência divina
desaparece. Habituados a interpretar o mundo indiretamente através de
representações simbólicas, mantemos a maravilhosa realidade que nos cerca
constantemente à distância.
A
compreensão do poder da linguagem em nos distanciar da realidade remonta a
milhares de anos, desde a época de Lao Tzu, como demonstra o início do Tao Te
Ching: "O Tao que pode ser descrito, não é o verdadeiro Tao. O nome que
pode ser nomeado, não é o verdadeiro nome." As primeiras linhas de um dos
maiores clássicos da literatura espiritual é um aviso, uma advertência sobre a
deficiência da linguagem em representar a verdade. O Sutra do Coração, um dos
textos mais importantes do Budismo, aborda o "vazio de todos os
ensinamentos" e contém um alerta similar: "Não se encontra a verdade
nas palavras dos ensinamentos. É um erro assumir que as palavras, por si só,
contenham a verdade."
Por
outro lado, os antigos reconheciam na linguagem outro aspecto paralelo à
tendência em distanciar e iludir. Há uma linha mitológica que aponta para a
existência de um "Idioma Original", uma verdadeira linguagem que, de
alguma forma, não simbolizava ou abstraia a realidade, mas era, ela própria,
parte da realidade. Talvez seja o que Derrick Jensen chama de "uma
linguagem mais antiga que as palavras", algo como os clamores de animais
selvagens. Esse idioma praticamente desapareceu, a não ser por certas expressões
sobreviventes que ainda reverberam em nossa psique: "Aham",
"Eba", "Uau", "Amen", "Ahhh" e
"Ohhh".
No
idioma indígena norte-americano, havia uma mistura peculiar de expressões
verbais e não verbais, ou seja, a distinção entre som e palavra não era tão
clara como nos idiomas modernos. Além disso, palavras ou nomes não eram
compreendidos de forma simbólica ou dualística, pois a separação entre som e
significado simplesmente não era concebível. Distante dos rótulos, os nomes e
substantivos desse idioma eram aspectos intrínsecos e inseparáveis daquilo que
denominavam — ao nomear um ser, aspecto ou função do universo, o trazemos à
realidade. Portanto, os nativos americanos usavam o real nome das coisas com
grande cautela, pois dizer o nome de um urso, por exemplo, invocaria sua
presença.
O
poder criativo da fala é difícil de compreender sob uma perspectiva dualista
(apenas "falar" sobre algo não muda nada, certo?), mas ainda
observamos vestígios dessa compreensão em certas superstições. Falar sobre
coisas ruins ainda é um tabu na cultura chinesa, sob risco de torná-las reais.
Até mesmo aqui, ainda batemos 3 vezes na madeira.
Palavras
que não sejam rótulos estabelecidos arbitrariamente a uma realidade objetiva,
mas que tenham força criativa remetem à relação hindu entre certos sons e
forças divinas; à versão bíblica da "palavra de Deus"; à identidade
quase universal entre sopro e espírito. Afinal, o que é uma palavra senão um
tipo especial de sopro? A palavra é um sopro proposital, carregado de significado,
um sopro criativo, pois atribui sentido a um mundo que, de outra forma,
simplesmente seria.
Ao
compreender o verdadeiro propósito da linguagem, descobre-se um poder criativo
inacreditável. A partir da matéria-prima da natureza, descrevemos um reino
humano à existência, assim como Deus, em Gênesis, descreveu o mundo material à
existência. Tal como Deus, do qual somos feitos e fazemos parte, também
descrevemos mundos à existência.
A
linguagem destrói, mas também cria.
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