Cinema Mudo
(O cinema mudo falava, na
pesssoa de LOUISE)
Publicado em cinema por Ricardo Scarelli,
em obviusmagazine
A atriz do cinema mudo que agitou e desprezou a Hollywood das primeiras
décadas do século passado com seu espírito inquieto e contestador.
Mary Louise
Brooks nasceu em 1906 no Kansas e desde sempre foi muito precoce: aos quatro
anos participava de espetáculos de dança nas proximidades de sua cidade
incentivada pelos pais, um advogado e uma dona de casa, ambos liberais na
educação dos quatro filhos e igualmente admiradores das artes.
Um dia sua
mãe Myra, vanguardista sem se dar conta, propôs um novo penteado à garotinha
então com dez anos de idade: não mais as tranças e sim um corte curto, com a
franja caindo sobre a testa. As pessoas o identificavam com o do personagem de
quadrinhos Buster Brown – mas isto não chega a ser a pré história do
bullying; com algumas felizes adaptações este corte seria sua marca ao longo de
toda sua vida pública adulta.
Nos anos 20
tal penteado passou a ser um símbolo da mulher moderna e identificado como La
Garçonne, numa referência à personagem do romance homônimo de Victor
Margueritte. E também como uma variável do famoso corte Chanel.
Mas
voltando desta viagem estética cabe ressaltar que aos quinze anos ela já atuava
com destaque na Denishaw Dance Company de Nova York, a principal companhia de
dança moderna da época, de onde seria expulsa devido ao seu comportamento
rebelde, segundo a diretora do grupo. Pouco tempo depois Louise ingressou na
lendária trupe de Ziegfeld Follies mas não se sentiu de toda satisfeita com sua
participação nos espetáculos da Companhia.
Presença
assídua na boemia artística, a jovem foi convidada a atuar como atriz; relutou
mas, incentivada pela família, partiu para Hollywood para realizar testes e
logo estrearia seu primeiro filme “The Street of Forgotten Men” (O Mendigo
Elegante) em uma participação que não lhe renderia sequer o seu nome nos
créditos finais.
Esta,
aliás, era uma prática corriqueira dos estúdios da época e aceita passivamente
pelos atores da incipiente indústria cinematográfica, quando a relação de poder
entre estes últimos e os produtores era bem distinta e desproporcional ao que
notamos atualmente.
Tal detalhe
seria bastante questionado pela estreante atriz naquele que seria o seu
primeiro atrito junto aos produtores. Ainda assim ela participaria, com o seu
nome nos créditos, de 14 filmes entre 1926 e 1929. Neste último ano ela
reivindica melhores condições salariais e ao ter o pedido negado parte para a
Alemanha, onde filmaria seu filme mais emblemático, “A Caixa de Pandora.”
Inspirado
na peça de Wedekind, a protagonista Lulu era uma prostituta manipuladora que na
versão cinematográfica do diretor G. W. Pabst surge como uma jovem sedutora
envolvida em um suposto triângulo amoroso entre seu poderoso amante e o filho
deste, porém, retratada também como uma vítima da falta de caráter dos homens
da alta sociedade.
Louise
interpretou tal ninfa com maestria e o filme causou certo mal estar na
hipocrisia reinante entre os homens de bem de Berlin. Tempos depois ela
escreveria, com precisão: “Meu desempenho de uma trágica Lulu sem sentido do
pecado manteve-se geralmente inaceitável por um quarto de século.”
De fato,
Lulu incorpora uma ambiguidade entre o poder de sedução e uma aparente
fragilidade que a torna única entre as representações da femme fatale, tal como
sua intérprete fora das telas. Destaca-se ainda que Lulu também seduziria uma
mulher, naquela que é provavelmente a primeira referência ao desejo homossexual
feminino no cinema mainstream.
Naturalmente
todas essas mensagens eram transmitidas de forma muito sutil, mas devidamente
captadas pelo público, o que não evitou certo rebuliço moralista à época.
A
personagem Lulu, diziam alguns, teria muita inspiração na própria Louise, cuja
vida era assumidamente repleta de amantes, entre os quais constam, registrados
nas biografias que pipocam em Hollywood, os casos com Charles Chaplin e uma
noite de amor com Greta Garbo.
Após mais
três filmes na Europa, com destaque para o igualmente polêmico “Diário de uma
Garota Perdida” (com severas críticas ao sistema reformatório de jovens) Louise
retorna aos EUA quando sua carreira passa a ser boicotada ao mesmo tempo em que
findava o cinema mudo.
É algo
evidente que houve tal retaliação por parte de Hollywood sendo que entre os
estúdios corria a informação de que sua voz era horrível, o que foi um tiro
certeiro naqueles tempos de sonorização do cinema. De fato, suas primeiras
experiências no cinema falado não foram satisfatórias nem a ela mesma mas,
ironicamente, tempos depois ela seria locutora na rádio CBS.
Há de se
ressaltar, contudo, que Louise não foi uma frágil vítima perseguida pela
indústria cinematográfica pois antes ela fez sua opção por desprezá-la e dois
momentos, além de sua temporada na Alemanha, ilustram bem isso: quando se
recusou a sonorizar seu personagem por discordar da remuneração oferecida pela
Paramount e, em seguida, ao refutar um convite para estrear “Inimigo Público”,
preferindo passar mais uma temporada com seu amante em Nova York.
Um ano
depois o diretor William Wellman a reencontrou e recebeu, incrédulo, o motivo
de sua recusa: “Eu não odeio fazer filmes. Eu odeio Hollywood”. Louise ainda
participaria de algumas produções, sem grande destaque. Em 1940 encerra sua
carreira de atriz, aos 34 anos, retornando a Nova York, onde dedica-se á dança,
pintura e literatura.
Mas quinze
anos após abandonar Hollywood, quando da exposição "60 Anos de
Cinema" realizada em Paris, um imenso cartaz com seu belo rosto
recepcionava o público na entrada do Museu de Arte Moderna. Ao ser indagado
porque ela e não as estrelas da época, o diretor da Cinemateca Francesa, Henri
Langlois, foi enfático: "Não existe Garbo. Não existe Dietrich. Existe
apenas Louise Brooks".
Há de se
descontar o exagero de Langlois, talvez necessário já naqueles tempos sem
memória, pois muito antes das citadas estrelas, ainda no cinema mudo, ele bem
sabia: “existiram” tantas outras musas. Ou ao menos Clara Bow e Lillian Gish...
Nos últimos
anos a memória de Louise Brooks vem sendo lentamente resgatada e cultuada
graças a restauração de seus filmes, especiais de TV e o advento da internet.
Entretanto, o mundo pop já lhe fez pontuais referências muito antes disso tudo
acontecer.
Em meados
dos anos 60 o quadrinista italiano Guido Crepax teve como declarada inspiração
visual a atriz ao criar a personagem da sexy fotógrafa Valentina Rosselli,
clássico dos quadrinhos adultos artísticos, abordando temas como sadomasoquismo
e bissexualidade.
E no inicio
dos anos 90 a banda de synthpop OMD (Orchestral Manoeuvres in The Dark) gravou
a música “Pandora's Box”, com referências ao incrível poder de sedução que ela
continua exercendo a quem vê sua imagem.
Louise
viveu reclusa por muito tempo e chegou a escrever uma autobiografia que ela
mesma destruiria sem torná-la publica. Faleceu em 1985, aos 78 anos de idade.
É notório
que a independência e o temperamento de Louise Brooks contribuíram para selar o
seu destino em Hollywood, mas ela o traçou como bem quis e fez suas escolhas. E
foram essas mesmas características de sua personalidade que a transformaram em
um símbolo do espírito libertário de qualquer época e ainda nos fascina.
Além, é
claro, da sua mais absoluta sensualidade. Igualmente atemporal.
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