sábado, 9 de maio de 2015

O FASCÍNIO DE LOUISE BROOKS

Cinema Mudo

(O cinema mudo falava, na pesssoa de LOUISE)
 
Publicado em cinema por Ricardo Scarelli,
em obviusmagazine

A atriz do cinema mudo que agitou e desprezou a Hollywood das primeiras décadas do século passado com seu espírito inquieto e contestador.


Mary Louise Brooks nasceu em 1906 no Kansas e desde sempre foi muito precoce: aos quatro anos participava de espetáculos de dança nas proximidades de sua cidade incentivada pelos pais, um advogado e uma dona de casa, ambos liberais na educação dos quatro filhos e igualmente admiradores das artes.
Um dia sua mãe Myra, vanguardista sem se dar conta, propôs um novo penteado à garotinha então com dez anos de idade: não mais as tranças e sim um corte curto, com a franja caindo sobre a testa. As pessoas o identificavam com o do personagem de quadrinhos Buster Brown – mas isto não chega a ser a pré história do bullying; com algumas felizes adaptações este corte seria sua marca ao longo de toda sua vida pública adulta.
Nos anos 20 tal penteado passou a ser um símbolo da mulher moderna e identificado como La Garçonne, numa referência à personagem do romance homônimo de Victor Margueritte. E também como uma variável do famoso corte Chanel.
Mas voltando desta viagem estética cabe ressaltar que aos quinze anos ela já atuava com destaque na Denishaw Dance Company de Nova York, a principal companhia de dança moderna da época, de onde seria expulsa devido ao seu comportamento rebelde, segundo a diretora do grupo. Pouco tempo depois Louise ingressou na lendária trupe de Ziegfeld Follies mas não se sentiu de toda satisfeita com sua participação nos espetáculos da Companhia.



Presença assídua na boemia artística, a jovem foi convidada a atuar como atriz; relutou mas, incentivada pela família, partiu para Hollywood para realizar testes e logo estrearia seu primeiro filme “The Street of Forgotten Men” (O Mendigo Elegante) em uma participação que não lhe renderia sequer o seu nome nos créditos finais.
Esta, aliás, era uma prática corriqueira dos estúdios da época e aceita passivamente pelos atores da incipiente indústria cinematográfica, quando a relação de poder entre estes últimos e os produtores era bem distinta e desproporcional ao que notamos atualmente.
Tal detalhe seria bastante questionado pela estreante atriz naquele que seria o seu primeiro atrito junto aos produtores. Ainda assim ela participaria, com o seu nome nos créditos, de 14 filmes entre 1926 e 1929. Neste último ano ela reivindica melhores condições salariais e ao ter o pedido negado parte para a Alemanha, onde filmaria seu filme mais emblemático, “A Caixa de Pandora.”
Inspirado na peça de Wedekind, a protagonista Lulu era uma prostituta manipuladora que na versão cinematográfica do diretor G. W. Pabst surge como uma jovem sedutora envolvida em um suposto triângulo amoroso entre seu poderoso amante e o filho deste, porém, retratada também como uma vítima da falta de caráter dos homens da alta sociedade.
Louise interpretou tal ninfa com maestria e o filme causou certo mal estar na hipocrisia reinante entre os homens de bem de Berlin. Tempos depois ela escreveria, com precisão: “Meu desempenho de uma trágica Lulu sem sentido do pecado manteve-se geralmente inaceitável por um quarto de século.”
De fato, Lulu incorpora uma ambiguidade entre o poder de sedução e uma aparente fragilidade que a torna única entre as representações da femme fatale, tal como sua intérprete fora das telas. Destaca-se ainda que Lulu também seduziria uma mulher, naquela que é provavelmente a primeira referência ao desejo homossexual feminino no cinema mainstream.
Naturalmente todas essas mensagens eram transmitidas de forma muito sutil, mas devidamente captadas pelo público, o que não evitou certo rebuliço moralista à época.
A personagem Lulu, diziam alguns, teria muita inspiração na própria Louise, cuja vida era assumidamente repleta de amantes, entre os quais constam, registrados nas biografias que pipocam em Hollywood, os casos com Charles Chaplin e uma noite de amor com Greta Garbo.
Após mais três filmes na Europa, com destaque para o igualmente polêmico “Diário de uma Garota Perdida” (com severas críticas ao sistema reformatório de jovens) Louise retorna aos EUA quando sua carreira passa a ser boicotada ao mesmo tempo em que findava o cinema mudo.
É algo evidente que houve tal retaliação por parte de Hollywood sendo que entre os estúdios corria a informação de que sua voz era horrível, o que foi um tiro certeiro naqueles tempos de sonorização do cinema. De fato, suas primeiras experiências no cinema falado não foram satisfatórias nem a ela mesma mas, ironicamente, tempos depois ela seria locutora na rádio CBS.


Há de se ressaltar, contudo, que Louise não foi uma frágil vítima perseguida pela indústria cinematográfica pois antes ela fez sua opção por desprezá-la e dois momentos, além de sua temporada na Alemanha, ilustram bem isso: quando se recusou a sonorizar seu personagem por discordar da remuneração oferecida pela Paramount e, em seguida, ao refutar um convite para estrear “Inimigo Público”, preferindo passar mais uma temporada com seu amante em Nova York.
Um ano depois o diretor William Wellman a reencontrou e recebeu, incrédulo, o motivo de sua recusa: “Eu não odeio fazer filmes. Eu odeio Hollywood”. Louise ainda participaria de algumas produções, sem grande destaque. Em 1940 encerra sua carreira de atriz, aos 34 anos, retornando a Nova York, onde dedica-se á dança, pintura e literatura.
Mas quinze anos após abandonar Hollywood, quando da exposição "60 Anos de Cinema" realizada em Paris, um imenso cartaz com seu belo rosto recepcionava o público na entrada do Museu de Arte Moderna. Ao ser indagado porque ela e não as estrelas da época, o diretor da Cinemateca Francesa, Henri Langlois, foi enfático: "Não existe Garbo. Não existe Dietrich. Existe apenas Louise Brooks".
Há de se descontar o exagero de Langlois, talvez necessário já naqueles tempos sem memória, pois muito antes das citadas estrelas, ainda no cinema mudo, ele bem sabia: “existiram” tantas outras musas. Ou ao menos Clara Bow e Lillian Gish...
Nos últimos anos a memória de Louise Brooks vem sendo lentamente resgatada e cultuada graças a restauração de seus filmes, especiais de TV e o advento da internet. Entretanto, o mundo pop já lhe fez pontuais referências muito antes disso tudo acontecer.
Em meados dos anos 60 o quadrinista italiano Guido Crepax teve como declarada inspiração visual a atriz ao criar a personagem da sexy fotógrafa Valentina Rosselli, clássico dos quadrinhos adultos artísticos, abordando temas como sadomasoquismo e bissexualidade.
E no inicio dos anos 90 a banda de synthpop OMD (Orchestral Manoeuvres in The Dark) gravou a música “Pandora's Box”, com referências ao incrível poder de sedução que ela continua exercendo a quem vê sua imagem.
Louise viveu reclusa por muito tempo e chegou a escrever uma autobiografia que ela mesma destruiria sem torná-la publica. Faleceu em 1985, aos 78 anos de idade.
É notório que a independência e o temperamento de Louise Brooks contribuíram para selar o seu destino em Hollywood, mas ela o traçou como bem quis e fez suas escolhas. E foram essas mesmas características de sua personalidade que a transformaram em um símbolo do espírito libertário de qualquer época e ainda nos fascina.
Além, é claro, da sua mais absoluta sensualidade. Igualmente atemporal.


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