Publicado em literatura por Rodrigo Villela Pereira,
em obviusmagazine
Rodrigo
Alguém que considera profundamente triste uma vida sem jazz,
livros e torta de limão.
A Coreia do Norte não é apenas um pequeno pedaço de terra no leste
asiático, controlado por um ditador caricato e um governo fortemente armado.
Existe, por trás das cortinas, uma visão bastante perturbadora. Ainda jovem,
Shin Dong-hyuk fugiu de lá. Graças a isso, hoje sabemos um pouco mais sobre as
atrocidades que permeiam o cotidiano de vários norte-coreanos.
Soldados
das Forças Armadas da Coreia do Norte.
Faça um
teste: entre no Google, digite “Coreia do Norte” e verifique as notícias. Você
verá que muitas delas possuem termos como “nuclear”, “sanções”, “mísseis”,
“projéteis”, “julgamento”, “ameaça”, "testes", entre outros
semelhantes. As análises mais densas são quase todas sobre a capacidade militar
ou o projeto nuclear interno. Por ser uma localidade extremamente isolada no
cenário internacional, estudos sobre os elementos culturais, história, esportes
ou sociedade são, inevitavelmente, deixados em segundo plano pelo ocidente.
Sendo assim, a consequência é que apenas se destaque o que está em evidência,
ou seja, o militarismo e a exótica política naquele pequeno país.
Agora,
quando se trata de uma visão do que, de fato, é a Coreia do Norte, somos
inundados por uma concepção extremamente reducionista criada pelas mídias
sociais. De certa maneira, ela virou uma espécie de país de estereótipos: é o
local do líder com cara de bebê que gosta de doces e parque de diversões; o
local onde os soldados / sociedade são obrigados a fazer encenações um tanto
quanto ridículas em frente às câmeras; o país do governo que sequestrava
diretores japoneses; o país cujo líder é alvo eterno de piadinhas no youtube;
entre milhares de outras.
Esquece-se
que lá existe uma população de quase 24 milhões de pessoas, todas vivendo num
Estado falido e submetidas aos comandos de um excêntrico governo totalitarista.
Fico impressionado em como o caso da Coreia do Norte desperta tão pouca comoção
mundial se comparado com outras situações (como, por exemplo, a da Palestina,
Ucrânia ou Síria). O caso específico dos norte-coreanos não se trata de uma
suposição pois é baseado em evidências que estão disponíveis para qualquer um.
Frequentes relatórios apontam as violações dos direitos humanos provocadas sob
ordem governamental: são assassinatos e torturas; perseguições políticas e
religiosas; escravidão; abortos forçados; abuso sexual etc. A fome também é um
problema, principalmente em áreas mais pobres. Além disso tudo, o regime mantém
milhares de presos políticos espalhados pelo território. É possível que muitos
acreditem que isso é coisa do passado, pois campos de concentração ou de
trabalho são elementos pertencentes ao período histórico da 2ª Guerra Mundial
(1939-1945) ou da URSS (1922-1991). Não, meu amigo(a)... existem até hoje. Para
se ter uma ideia, confira o que Blaine Harden comenta na introdução de Fuga do
Campo 14 (Intrínseca, 2012):
“Os campos
de trabalho forçados da Coreia do Norte já duram duas vezes mais tempo que o
Gulag soviético e cerca de 12 vezes mais que os campos de concentração
nazistas. Não há controvérsia sobre sua localização. Fotografias de alta
resolução, feitas por satélites, acessíveis no Google Earth para qualquer
pessoa que tenha uma conexão à internet, mostram vastas áreas cercadas que se
esparramam entre montanhas escarpadas da Coreia do Norte.” -
Pág.22
Não pense
que ao ler Fuga do Campo 14 você simplesmente conhecerá uma previsível história
de vida de mais um refugiado. O que torna curiosa a biografia de Shin Dong-hyuk
é que este nasceu e cresceu no campo de trabalho sem ter tido, até então,
nenhum tipo de contato com o mundo exterior. Numa analogia bem ruim e cheia de
falhas, é uma espécie de Truman norte-coreano (quem assistiu "O Show de
Truman" vai entender). Por 23 anos, a única realidade que Shin tinha
vivido era aquela presente no campo, marcada por crueldades, denúncias e,
claro, muito medo.
Shin
Dong-hyuk durante o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Em
especial, o Campo 14 é um dos maiores da Coreia do Norte, com cerca de 15 mil
prisioneiros e muito conhecido pela repressão imposta, com frequência, pelos
seus guardas e administradores. Shin nasceu e tornou-se parte daquele lugar por
conta da absurda lei estabelecida no governo de Kim Il-sung (o Presidente
Eterno), em 1972. Esta diz:
“Inimigos de
classe, sejam eles quem forem, devem ter sua semente eliminada por três
gerações”.
O
jornalista Blaine Harden, com base no relato do próprio refugiado, estrutura o
livro através de várias fases da vida de Shin. Aborda, por exemplo, sua
conturbada relação com os familiares; a lavagem cerebral que esteve sujeito na
escola; as torturas que sofreu no subsolo; a arriscada fuga atravessando uma
cerca eletrificada; o período em que cruzou a fronteira para a China até a
chegada na Coreia do Sul e, posteriormente, nos Estados Unidos. No final da
obra, temos as “Dez leis do campo 14”, um conjunto de regras que todos devem
decorar na infância. Logo em seguida, temos alguns desenhos sobre a vida na
prisão. No geral, as imagens são fortes, pois mostram a tortura específica pela
qual tanto Shin quanto outros prisioneiros sofreram e, diga-se de passagem,
ainda sofrem enquanto você está lendo este texto.
A sensação
ao terminar o pequeno livro (apenas 230 páginas) é a mesma de um tapa de
realidade na cara. Blaine Harden trata, em grande parte, sobre a própria
condição da Coreia do Norte - política interna e externa -, apontando suas
falhas e suas peculiaridades. O autor não visa, unicamente, apresentar a vida
precária no campo de trabalho forçado sob a perspectiva de um dos presos, mas
demonstrar como as miseráveis condições de vida naquela região afetam toda uma
sociedade. Mesmo cercada por potências globais - China, Japão e Coreia do Sul
-, o pequeno país segue isolado (ou quase) do mundo.
© obvious: http://obviousmag.org/campo_de_visao/2015/05/o-que-aprendi-sobre-a-coreia-do-norte-com-o-livro-fuga-do-campo-14.html#ixzz3aUJKEftn
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