Televisão: teledramaturgia
Publicado em artes e ideias por Sílvia Marques
Se você assistiu apenas novelas com final feliz, provavelmente você não
viu Roque Santeiro.
Com
protagonistas imorais, Roque Santeiro deu um banho de realismo no contexto de
Asa Branca, uma cidade fictícia do estado da Bahia, que poderia ser qualquer
cidade existente.
Acredito
que a novela Roque Santeiro é digna de muitas dissertações e teses. Roque
Santeiro mostrou que novela pode ser muito boa sem conceder ao grande público.
Roque Santeiro mostrou que novela pode ser a mais fina manifestação da cultura
popular. Roque Santeiro não teve final feliz. Para os bonzinhos, vale lembrar.
Porque para o carismático vilão Sinhozinho Malta foi só alegria no último
capítulo.
Diferentemente
de novelas convencionais a curva dramática de Roque Santeiro declina na parte
final. Equívoco dos autores? Não. Um toque de arte na televisão. O mito vence o
homem. A superstição a verdade. Falando em verdade, quem precisa dela? Os
corruptos continuam no poder e para o povo só resta acreditar em milagres já
que não podemos confiar em mais nada.
Roque
Santeiro foi escrita por Aguinaldo Silva e Dias Gomes, com argumento baseado em
uma peça teatral de Gomes. Ninguém é santo na novela. Cada um tem a sua parcela
de culpa, seus segredos , suas mentiras. Cada personagem é muito real e humano,
até mesmo o intelectual da cidade, professor Astromar, que vira lobisomem em
noite de lua cheia. Sacada interessante. Em um país como o Brasil se dedicar ao
estudo teórico parece coisa de gente do outro mundo mesmo.
Professor
Astromar, intelectual da cidade interpretado por Rui Rezende, deseja quebrar o
mito de Roque por duas razões: uma intelectual e outra pessoal. Astromar é
apaixonado por Mocinha, ex-noiva ( Lucinha Lins) de Roque( José Wilker).
Muitos
personagens apresentam importantes arquétipos: o fazendeiro poderoso com sua
amante extravagante, o padre reacionário, o padre que quer mudar o mundo, o
político covarde, a beata, o comerciante próspero e mesquinho, a mocinha que
idealizou o amor perfeito e ficou aprisionada no passado.
A viúva que
inventam para Roque Santeiro torna-se para ele mais real do que sua verdadeira
ex-noiva. Mais uma metáfora de como uma mentira pode sobrepor a verdade.
Roque
Santeiro foi uma aula em 209 capítulos da cultura popular brasileira,
principalmente da nordestina. Apesar da cidade ser fictícia, os dramas e mitos
vividos em Asa Branca revelam o jeito de ser brasileiro, o sincretismo
religioso, como as questões são resolvidas, o quanto as leis não são cumpridas
e como vale o lema " Quem pode mais, chora menos".
A fé que
deveria ser vivenciada com mais sobriedade torna-se um remédio para todas as
dores da vida, carregada de superstição e negando, muitas vezes, a nossa
responsabilidade em relação à vida, a nossa necessidade de lutarmos por aquilo
que acreditamos. Asa Branca depende do mito no sentido econômico de forma
exclusiva. A cidade não desenvolveu nenhuma outra potencialidade. A quebra do
mito poderia levar a dois caminhos extremos: a destruição da cidade ou a
reconstrução em novas bases. Quem detém o poder, não quer pagar para ver.
Falando em ver, a novela apresenta uma metáfora muito instigante: o ceguinho
Jeremias que tudo sabe e tudo "vê", brincando com a ideia de que o
pior cego é aquele que não quer ver.
Os
personagens de Roque vivido por José Wilker e do revolucionário padre Albano,
por Claudio Cavalcanti querem fazer valer a verdade e quando esta está pronta a
ser revelada, um incidente acontece reforçando o mito. Neste momento, padre
Albano percebe que para o povo acreditar no mito é mais interessante. Enfim,
ele tenta defender as pessoas de algo que elas desejam para elas pois desde
sempre foram acostumadas a todo tipo de manipulação e não sabem viver de outro
modo, esperando sempre algo que vem de cima: ou de Deus ou das camadas
dominantes da sociedade.
Roque se
arrepende e tenta corrigir as consequências homéricas de seu erro. Mas corrigir
o passado é muito complexo pois envolve inúmeras pessoas e situações que fogem
ao nosso controle.
Outro
aspecto interessante trabalhado pela trama é mostrar o embate entre dois tipos
muito diferentes de religiosos. Padre Hipólito, interpretado por Paulo Gracindo
apresenta uma igreja conservadora, moralista no mau sentido da palavra e ligada
ao poder. Padre Albano apresenta a igreja dos pobres e desvalidos, a igreja que
mescla espiritualidade com política e a necessidade de lutar contra as
injustiças sociais e os desmandos dos poderosos. Padre Albano é tão humano e
visceral que acaba se apaixonando por Tania (Lídia Brondi), a filha do vilão
Sinhozinho Malta. O casal que não chega a concretizar seu amor, forma o par
mais consciente e equilibrado da novela. E o amor de ambos não se realiza por
causa das amarras da Igreja tradicional e despótica que insiste em manter o
celibato em nome da ordem e da preservação do poder.
Outro casal
que merece destaque é o vivido por Armando Bogus na pele de Zé das Medalhas e
Lulu, interpretada por Cássia Kiss. A iludida Lugolina passa por doente mental
e vive entrando em situações embaraçosas e complicadas. Mas para quem assistiu
a novela inteira, pode perceber que Lulu é provavelmente a personagem feminina
mais transgressora no bom sentido da palavra. Tania também é. Porém, Tania
estudou e tem bom poder aquisitivo, ferramentas importantes para desenvolver
uma maior independência intelectual e afetiva. Lulu é uma moça sozinha, sem
recursos, com dois filhos para criar, um marido obsessivo. E mesmo assim, no
último capítulo, ela entende que para se libertar de uma vida sufocante e
doentia, ela precisará lutar sozinha. A personagem buscou pela ajuda de um
homem que a amasse para salvá-la, mas no final ela descobriu que só ela mesma
poderia libertar-se num estilo à moda Malu mulher. Coincidência ou não, sua
personagem recebeu como trilha sonora uma música de Ivan Lins. E é ao som de "Vitoriosa"
que a nossa heroína atrapalhada e intensa vai embora de Asa Branca.
Outro fato
muito importante é a escolha final de Porcina, interpretada por Regina Duarte.
Ela opta por Sinhozinho ( Lima Duarte) e não por Roque. A decisão conservadora
desagradou ao público, mas faz muito sentido. Em primeiro lugar, a ordem foi
reestabelecida e tudo voltou aos seus lugares. Realidade que vivenciamos. CPI
após CPI tudo continua na mesma, sobre uma gigantesca pizza. Os personagens que
tentam punir os corruptos em Asa Branca têm suas forças neutralizadas. Não foi
à toa que a primeira versão de 1975 foi censurada.
Por outro
lado, depois de assistir a novela muitas vezes, percebi que o par de Porcina
era mesmo Sinhozinho. Ela viveu com Roque o mito do estrangeiro, descrito por
Lotman.
O
estrangeiro causa encantamento e um se deslumbra com o outro. Porém, passada a
fase da paixão, provavelmente, Roque e Porcina formariam um casal desconexo e
bizarro. Com Sinhozinho, ela vivia a cumplicidade, o entendimento, o
companheirismo típicos de um casal de verdade no sentido mais profundo da
palavra.
O elenco é
um show à parte. Formado por muitos atores de peso, a novela é além de tudo um
brinde a quem valoriza interpretações consistentes. Roque Santeiro marcou a
estreia de Patrícia Pillar e Claudia Raia na teledramaturgia. Patrícia Pillar
viveu Linda Bastos, uma atriz que deve interpretar Porcina em um filme. A
novela além de tudo apresenta uma relação quase metalinguística ao mostrar a
produção de um filme dentro de uma novela. Claudia Raia vive uma dançarina da
boate Sexus, que encanta o delegado da cidade, interpretado por Maurício do
Vale.
Patrícia
Pillar como Linda Bastos. A atriz se divide entre o pedante marido ( Luiz
Armando Queiroz) e o neurótico cineasta Gerson do Vale ( Ewerton de Castro).
Fábio Jr vive Roberto Matias , ator boa pinta e mulherengo que deve interpretar
Roque. O núcleo de cinema é humor na veia e ao mesmo tempo uma crítica à
precariedade das produções cinematográficas brasileiras da época.
Roque
Santeiro como qualquer obra significativa e densa não perde o seu brilho com o
passar do tempo e a cada vez que a assistimos, podemos nos surpreender com um
detalhe a mais. Um marco da nossa teledramaturgia. Uma obra imortal da cultura
brasileira.
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