Cultura – cinema
Documentário de Asif Kapadi, de 'Senna', mostra retrato devastador da
cantora.
A história que não queriam contar de
Amy Winehouse
DIEGO A. MANRIQUE Madri 18 JUL 2015
El País – O jornal Global, Facebook
Amy, o documentário que triunfou em Cannes e
que estreou no Reino Unido e em vários países neste mês (no Brasil, a
expectativa é que ele chegue aos cinemas até setembro), apresenta uma questão
inquietante: quais novidades se pode contar sobre uma celebridade do século
XXI? Como a de tantas celebridades de hoje, a vida pública de Amy
Winehouse aconteceu em horário nobre, sendo vista pelo mundo inteiro. De
alguma forma, até sua morte trágica parecia prevista, predestinada, assumida
com antecedência.
Na verdade,
nossa informação era escassa e incorreta. Quando morreu, em julho de 2011,
todos pensaram que a “pobre Amy” tinha sofrido uma overdose de drogas ilegais.
Para surpresa geral, a investigação dos legistas determinou que a causa
imediata foi intoxicação aguda com uma droga legal: tinha consumido uma
quantidade enorme de vodca.
O diretor do documentário, Asif Kapadia - o mesmo
que dirigiu Senna (2010), sobre o piloto de Fórmula 1 e
ídolo brasileiro Ayrton Senna, se encontrou com um dilema muito próprio do
tempo presente: tinha muitos documentos audiovisuais da cantora, incluindo
muito material nunca exibido. A primeira
montagem de Amy durava três horas e os poucos que assistiram dizem
que era devastador. Em sua forma
final, são 128 minutos e, mesmo assim, ainda deixa um gosto amargo.
Tecnicamente, Kapadia tinha suficientes imagens e
sons de Amy para que ela pudesse contar suas experiências em primeira pessoa.
Mas não era suficiente: tudo foi muito rápido e nem ela entendia a experiência
terrível que foi sua profissionalização, coincidindo com sua entrada na vida
adulta. O filme precisava de outras vozes: amigos, família, colegas, médicos. E
todos eles intervêm: a abundância de cenas de Amy Winehouse permite que o
cineasta evite esse tema dos documentários que é a sucessão de cabeças
falantes.
Essa opção
narrativa por parte de Kapadia também tem seus perigos. Amy nos
submerge em uma vida tumultuada sem permitir nem descanso ou reflexão. Kapadia
inclusive reflete sobre o que podia sentir Winehouse quando saía na rua,
atacada pelos flashes dos paparazzis e os holofotes das câmeras de TV.
Embora mencionem a possibilidade de que seu telefone pudesse estar grampeado,
não é explorada a relação – em seu caso, mais parasitária que simbiótica –
entre os meios de comunicação e os famosos que são caçados por eles. É
retratada a crueldade gratuita dos apresentadores de televisão, esses heróis do talk
show que encenavam as maldades de seus fabricantes de gags.
A potência
da montagem de Amy esconde, no entanto, uma clara divisão de heróis
e vilões. Mitch Winehouse não termina com uma boa imagem: o pai da artista foi
para a ilha caribenha, onde ela estava tentando se recompor, acompanhado de uma
equipe de filmagem, disposto a gravar um documentário que terminaria se
chamando Saving Amy (Salvando Amy). Foi Mitch que
decidiu que sua filha não precisava ir para a reabilitação, inspirando, de
quebra, a memorável canção Rehab, mas também facilitando o
aprofundamento de seus problemas.
Blake
Fielder-Civil, o grande amor da vocalista, é retratado como um cafetão em todos
os sentidos da palavra: o dinheiro de sua namorada servia para pagar o silêncio
do dono de um pub que Fielder-Civil e outros amigos atacaram, um suborno que o
levou a uma severa pena de prisão.
Não devemos
esquecer de Raye Cosbert, o segundo manager, que tomou a decisão
fatal de enviá-la em turnê quando Amy estava frágil, como se achasse que a
estrada tem virtudes que podem salvar artistas com problemas. Ela era muito boa
ao vivo, mas o grande número de apresentações coincidiu com seus momentos de
fraqueza; precisou enfrentar plateias envenenadas, que talvez secretamente
esperavam que ela fizesse coisas ridículas.
Winehouse, no 'Rock in Rio' de Madri, em 2008. /CLAUDIO ÁLVAREZ
Amy Jade Winehouse chegou em uma época boa para cantoras. Mas tinha argumentos
mais do que suficientes para se destacar no mercado. Em primeiro lugar, seu
ecletismo natural: dominava a sensibilidade pop do Brill Building nova-iorquino,
conseguia cantar standards, mantinha a pose na frente de
músicos de jazz, não era difícil se envolver com os ritmos jamaicanos, até
queria competir com rappers.
O segundo, e talvez não tenha sido suficientemente apreciado: compunha
com facilidade surpreendente, escrevendo letras cruas e precisas. Amy,
o documentário que estreia hoje na Espanha, inclui uma entrevista inédita onde
ela lamenta que agora não haja compositores como James Taylor e Carole King. Na
verdade, embora utilizasse linguagens diferentes, queria chegar a esse nível de
perspicácia e honestidade expressiva.
E o mais evidente: essa voz, com sua pitada desoul da
velha escola, felizmente sem maneirismos. Não pretendia ser uma nova Aretha
Franklin: era uma garota do bairro, abençoada por essa capacidade britânica de
absorver outras músicas, que usava seus ensinamentos para tentar se mostrar ao
mundo.
Seu exemplo reverbera em todo o pop triunfante da última década. O
impacto de Back in Black facilitou a aceitação global de
vocalistas londrinos polidos como Adele ou Sam Smith.
Graças à associação
com Amy, prosperaram os Dap-Kings, a banda oficial do selo Daptone; um de seus
produtores, Mark Ronson, arrasou recentemente com Uptown Funk,
cantada por Bruno Mars.
Por outro
lado, o papel de guardião paternal recai sobre Nick Shymanksy, primeiro
representante de Amy. Embora, vendo em retrospectiva, qualquer um pode apontar
os erros. Sua gravadora Universal Music também aparece bem, o que era
previsível: a multinacional financiou o documentário.
Sensível a
sua má reputação, a indústria musical se moveu com cautela ao redor de Amy: no
mês passado, o atual chefe da Universal Music no Reino Unido, David Joseph,
afirmava ter destruído os originais e outros materiais inéditos dela, para
evitar que no futuro saiam discos fracos ou os chamados desenterrados, onde são
colocados novos fundos instrumentais às pistas de voz. Com todo o respeito, é
difícil acreditar nisso; além disso, são feitas várias cópias de tudo que foi
gravado por uma figura importante.
Em geral, é
possível afirmar que a Universal não cedeu a seus piores impulsos na hora de
vender a música de Amy. Aceitou que ela não tinha energia suficiente para
tentar conquistar o mercado discográfico mais importante, o dos EUA. Lançou
edições corretas ampliadas dos dois álbuns publicados durante sua vida, Frank e Back
to Black. Como álbuns póstumos, só editou Lioness: Hidden Treasures (2011)
e Amy Winehouse at the BBC (2012).
O que não
se consegue explicar em Amy é a natureza complexa do jogo em que
ela se destacou. Sem subestimar seu imenso talento natural, era um produto do
prodigioso pop britânico, com suas academias especializadas e seus hábeis
mecanismos para cultivar projetos comercializáveis.
Aos 19
anos, sem ter gravado, Amy recebeu 250.000 libras (o que hoje chegaria a cerca
de 1,2 milhão de reais) a título de adiantamento de direito autoral por suas
canções presentes e futuras. Avançou na primeira divisão do negócio da música,
trabalhando com produtores nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que se
beneficiava do clima criativo do bairro londrino de Camden, onde
participava em jam sessions sem chamar a atenção.
Amy
Winehouse, em seu apartamento em Londres em 2011. / GETTY IMAGES
No entanto,
apesar de toda sua potência econômica, a indústria musical não tem um
Departamento de Saúde. Era óbvio que algo estava errado com Amy. Embora a
indústria discográfica não sabia nada dos antidepressivos ou dos episódios de
bulimia da juventude, era evidente seu emagrecimento, sua transformação física:
aquela menina ossuda parecia determinada a encarnar a versão 2.0 das
integrantes das exuberantes Ronnettes. Continuava praticando dieta romana:
comer até se fartar e depois vomitar.
Podemos
aceitar que Amy Winehouse tenha sido vítima dos modelos dominantes de beleza e
terminasse ferida por um relacionamento tóxico. Ao assistir ao documentário,
ficamos ainda mais espantados ao saber que sua baixa autoestima chegava até
mesmo a seus extraordinários poderes para compor e cantar. É o único que hoje
ninguém duvida.
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