sábado, 18 de julho de 2015

ANÁLISE DO POEMA HORAS VIVAS, DE MACHADO DE ASSIS: APROXIMAÇÕES COM O ROMANTISMO



  
Publicado em literatura por Gilmar Luís Silva Júnior,
é apaixonado por livros, música, leite com achocolatado (tudo nessa ordem).

O poema Horas Vivas, do primeiro livro de poemas de Machado, Crisálidas, encerra a valorização do sono como princípio ativo de anseio por uma vida melhor. Atende aos pressupostos do Romantismo, que via o homem alijado da paz, e tangencia até mesmo Freud. Descubra mais nesta análise.


Abaixo, o poema Horas Vivas, de Machado de Assis:
Noite: abrem-se as flores... Que esplendores! Cíntia sonha amores Pelo céu. Tênues as neblinas Às campinas Descem das colinas, Como um véu.
Mãos em mãos travadas, Animadas, Vão aquelas fadas Pelo ar; Soltos os cabelos, Em novelos, Puros, louros, belos, A voar.
— “Homem, nos teus dias Que agonias, Sonhos, utopias, Ambições; Vivas e fagueiras, As primeiras, Como as derradeiras Ilusões!”
— Quantas, quantas vidas Vão perdidas, Pombas mal feridas Pelo mal!
Anos após anos, Tão insanos, Vêm os desenganos Afinal.
— “Dorme: se os pesares Repousares, Vês? – por estes ares Vamos rir; Mortas, não; festivas, E lascivas, Somos – horas vivas De dormir!” –



Poema leve, de estrutura diversa, quase canta rolante, encerra, contudo, a discussão acerca de duas categorias implícitas sobre o conceito de Romantismo: a psicológica e a histórica. Assevera J. Guinsburg, na obra O Romantismo: "A categoria psicológica do Romantismo é o sentimento como objeto da ação interior do sujeito, que excede a condição de simples estado afetivo: a intimidade, a espiritualidade e a aspiração ao infinito, na interpretação tardia de Baudelaire. (...) A primazia da vertente alemã (de 1796 em diante), a primeira a empregar, numa conotação crítica e histórica, a palavra ‘romântico’, e que selaria a fortuna teórica desse termo, o qual passou desde então a significar um estado de poesia e uma atitude em relação à literatura, resultou de uma ascendência intelectual; pois que ligada ao classicismo de Weimar (Goethe e Schiller), e particularmente sensibilizada pela problemática schilleriana da poesia ingênua dos antigos e da poesia sentimental dos modernos, a escola germânica nasceu no clima universitário estimulante de Iena, de uma geração posterior ao Sturm und Drang, ao mesmo tempo que o idealismo pós-kantiano".
Esse momento do poema – a aspiração ao infinito – afilia-o ao Romantismo à Casimiro de Abreu, em especial no poema Assim, a seguir posto:
Viste o lírio da campina? Lá s'inclina E murcho no hastil pendeu! - Viste o lírio da campina? Pois, divina, Como o lírio assim sou eu! Nunca ouviste a voz da flauta, A dor do nauta Suspirando no alto mar? - Nunca ouviste a voz da flauta? Como o nauta É tão triste o meu cantar! Não viste a rola sem ninho No caminho Gemendo, se a noite vem? - Não viste a rola sem ninho? Pois, anjinho,
Assim eu gemo, também! Não viste a barca perdida, Sacudida Nas asas dalgum tufão? - Não viste a barca fendida? Pois querida Assim vai meu coração! 


Em ambos os versos – de Machado e de Casimiro – assiste-se à quebra da relação clássica entre natureza e eu, no que concerne ao fato de que, no Classicismo, as leis gerais da natureza se imiscuíram na regência de toda a vida humana. Isto é, havia uma maneira peculiar de comunicação entre os mundos exterior e interior do homem, promovendo um achatamento do sujeito, “encaixado como sujeito universal do conhecimento, a uma Natureza cuja ordem e cuja regularidade se prolongam na ordem e na regularidade dos discursos científico, religioso, estético, jurídico e político do século XVIII (Guinsburg, 1988)”.
O princípio romântico intenta, por conseguinte, romper essa similitude de regularidades, por meio do rompimento das características imutáveis dadas pelo Classicismo aos elementos constituintes do Universo. No poema machadiano, o substantivo Noite se encontra personalizado tal qual uma mulher presente na primeira estrofe – Cíntia – ressurgindo o antigo simbolismo de deificação do elemento noturno:
"Para os gregos, a noite (nyx) era a filha do Caos e a mãe do Céu (Urano) e da Terra (Gaia). Ela engendrou também o sono e a morte, os sonhos e as angústias, a ternura e o engano. As noites eram frequentemente prolongadas segundo a vontade dos deuses, que paravam o Sol e a Lua, a fim de melhor realizarem suas proezas. A noite percorre o céu envolta num véu sombrio, sobre um carro atrelado com quatro cavalos pretos, seguida do cortejo de suas filhas, as Fúrias, as Parcas. Imola-se a esta divindade ctônica uma ovelha negra (Chevalier, 2012)".
A segunda estrofe é o enlace pueril dos casais apaixonados – “Mãos em mãos travadas/Animadas,/Vão aquelas fadas/Pelo ar;/Soltos os cabelos,/Em novelos,/Puros, louros, belos,/A voar”. Aproxima-se do lirismo de Casimiro, no tocante à presença do tom infantil nas ações, totalmente desprovidas de conteúdo sensual.
Similar ao poema de Casimiro exposto acima, a terceira estrofe discorre sobre as agruras do destino do homem. Mais uma vez, a circunspecção do tema não resvala para o niilismo tão caro a Machado tampouco para os devaneios ególatras da segunda geração romântica, o afamado Mal do Século. Às agonias contrapõem-se os sonhos e as utopias, ainda que tais elementos não sejam suficientes para sanar os percalços: sonhos e utopias se esfumaçam com o passar do tempo. Os poetas, no entanto, dirimem a gravidade disso. Na quarta estrofe, as vidas perdidas pelo desengano são comparadas a pombas malferidas. A simbologia da pomba submete-se a um vigoroso sentimento religioso. No Novo Testamento, a pomba representa o Espírito Santo, um dos elementos da Santíssima Trindade. Na mitologia grega, a pomba era a ave que Afrodite trazia próxima a si e espelha a realização amorosa que o amante oferta ao objeto de desejo. Pureza e desejo são as linhas de tensão presentes na pomba; o poema, porém, não alude ao quinhão sensual, visto que os adjetivos elencados carecem desse apelo: vivas, fagueiras, louros, puros. O poema se fecha valorizando o sono como saída para os óbices da vida, retomando a figuração da função onírica como espaço para a expressão ou a realização de um desejo reprimido, na visão freudiana.
Machado aspira, nesta estrofe, à valorização do sono como um anseio de retomada de um estado puro anterior e dota o ato de dormir com componente ativo, chamando-o de horas vivas.


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