Veronique GreenwoodDa BBC Future
Na
despensa moderna, o leite ocupa um lugar curioso.
Ele está bem ali ao lado do pão como um dos alimentos mais básicos e
importantes do Ocidente. Nos Estados Unidos, durante as ameaças de furacões e
tempestades avassaladoras, os supermercados esgotam seus estoques de pão e
leite (e papel higiênico).
Mas a popularização do leite é um fenômeno relativamente recente.
Na Europa e nos Estados Unidos do século 19, eram fundamentalmente as
crianças que se alimentavam regularmente do leite de vaca.
O leite fresco puro ficava cada vez mais perigoso para o consumo quanto
mais se afastava da fazenda onde foi produzido – servindo como terreno fértil
para bactérias ou ainda sendo adulterado com giz e água por vendedores
inescrupulosos.
'Antídoto' à vida urbana
Sua ascensão como alimento perfeito é algo que a
historiadora Deborah Valenze, da Universidade Columbia e autora do livro Milk: A Local and Global History("Leite: Uma
história local e global", em tradução literal), acredita se dever a vários
fatores isolados que coincidiram no fim do século 19 e início do século 20.
Como a mortalidade infantil nas cidades crescia, ganharam importância as
técnicas e padrões de qualidade para tornar o leite mais seguro, como a
pasteurização.
Na mesma época, havia um interesse cada vez maior na cura pela
alimentação, uma corrente que defendia dar às pessoas doentes apenas comidas
simples e puras.
Foi uma ideia compartilhada por John Harvey Kellogg, o inventor do
cereal matinal de flocos de milho e médico-chefe de um famoso sanatório holístico
no Estado de Michigan, nos Estados Unidos.
"Naquela época, já se pregava uma alimentação e hábitos
saudáveis", afirma Valenze.
Segundo a historiadora, na lógica da época, a vida moderna era algo
complicado e corrompido, mas o leite, consumido por todos os seres humanos no
início da vida, era simples, mundano e natural (ajudado pelo fato de ser
branco, a cor da pureza).
Para completar, era um alimento com gorduras,
carboidratos e proteínas, os três componentes de que o organismo necessita.
'Supercomida' da era industrial
Cada país teve suas próprias variações da história: na Alemanha da
virada do século 20, o advento de homens adultos bebendo leite estava ligado
aos movimentos sociais contrários ao consumo de álcool, assim como à busca por
uma alimentação mais básica, segundo a historiadora Barbara Orland, da
Universidade da Basileia, na Suíça.
Em uma tentativa de mudar a cultura do consumo de cerveja e destilados,
especialmente entre operários, foi feita uma pressão para que se servisse leite
nas fábricas.
Nas primeiras décadas do século passado, conforme cientistas
aprofundaram seus conhecimentos sobre nutrição, o leite passou a ser
considerado como alimento perfeito. Seu papel como uma fonte das
recém-descobertas vitaminas e a ideia de que ele de alguma maneira poderia
corrigir as deficiências de qualquer dieta o fizeram decolar.
Elmer McCollum, bioquímico e nutricionista,
escreveu um influente livro em 1918, chamado The Newer Knowledge of
Nutrition ("O mais novo conhecimento sobre nutrição",
em tradução literal), no qual descreveu o leite como "nosso alimento mais
importante".
Isso agradou à indústria de laticínios, porque os fazendeiros estavam
produzindo muito mais do que conseguiam vender.
Até então, muito leite era usado no preparo de doces ou leite em pó
infantil e até na fabricação de plástico – segundo Valenze, na Segunda Guerra
Mundial, o plástico feito de leite era usado em aviões.
Propriedades questionadas
Mas fazer as pessoas beberem leite era uma prioridade para os
fazendeiros.
O ambiente perfeito surgiu por volta de 1920, quando agricultores,
cientistas e governos se uniram com a mensagem sobre a perfeição nutricional do
leite.
Hoje, há menos consenso. O excesso de gordura no leite integral,
principalmente, gera certa desconfiança. Grandes estudos tampouco conseguiram
encontrar uma relação entre o consumo de leite e menos casos de fraturas
ósseas, um de seus supostos benefícios.
Sabe-se atualmente que é possível seguir uma dieta saudável e
equilibrada sem leite. Mas ainda achamos que se trata de um alimento
fundamental.
Entender como o leite se tornou o queridinho de hoje nos faz pensar em
perguntas interessantes.
Será que poderíamos estar tomando outra coisa toda manhã? Uma vitamina
de trigo, talvez? Ou suco de tomate?
E o leite se beneficiou de um tratamento cultural específico, uma
história que se desenvolveu a partir de suas qualidades químicas e sociais e
que o levou a níveis de adoração que talvez não merecesse.
Há algum alimento hoje que esteja recebendo o mesmo tratamento que o
leite?
"As pessoas estão sempre procurando um produto mágico", afirma
Valenze.
Hoje, as "supercomidas" e suas justificativas científicas
estão por toda parte. Será interessante saber se a popularidade de algum desses
alimentos vai durar.
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