Cultura: literatura
Nobel português anotava as dúvidas e o processo de escrita de seus
romances.
Cinco anos após sua morte, o EL PAÍS publica o ‘making of’ de ‘Ensaio
sobre a Lucidez’
Notas inéditas de 'Ensaio sobre a
Lucidez' (em espanhol)
FERRAN BONO, Madri
EL
PAÍS – O JORNAL GLOBAL, FACEBOOK
O escritor José Saramago, na praia Quemada de Lanzarote, onde foi
projetado um plano urbanístico ao final paralisado, em uma imagem de 2007
/ PEDRO WALTER
Anotava
sempre que lhe ocorria uma ideia para começar um romance. Podia ser de
madrugada ou viajando de trem. Expressava suas dúvidas sobre a qualidade do que
estava escrevendo ou manifestava sua desconfiança sobre o interesse de uma
trama quando ele mesmo já estava enfastiado de urdi-la. José Saramago
costumava anotar tudo, inclusive quando, de repente, decidia mudar o título de
um romance até que a opinião de sua mulher, Pilar del Río, o fazia desistir e
voltar a seu plano original.
Foi o que aconteceu com Ensaio sobre a
Lucidez, obra sobre a qual o EL PAÍS publica uma série de textos inéditos
(publicados originalmente em espanhol; em português foram publicados pela
revista Blimunda, da Fundação Saramago) no quinto aniversário da
morte do prêmio Nobel de Literatura de 1998. São notas escritas pelo autor
em 2003, durante a redação do livro que seria lançado um ano mais tarde, que
mostram o processo criativo, a construção do relato, a maneira como se fez o
romance (o que no cinema se chama making of).
Saramago (Santarém,
Portugal, 1922-Lanzarote, 2010) narra em Ensaio sobre a Lucidez a
história de uma cidade cujos habitantes decidem votar majoritariamente em
branco, o que provoca a reação virulenta do Governo. Estes são alguns
fragmentos das notas do autor:
4 de
fevereiro
“Na noite
de 30 para 31 de Janeiro acordei às 3 horas com o pensamento súbito de que o
assunto para um novo romance, de que mais ou menos conscientemente andava à
procura, afinal já o tinha. Era aquela “revolução branca” de que falei em Madri
e Barcelona na apresentação do Homem Duplicado, o voto em branco como única
forma eficaz de protesto contra o abençoado sistema “democrático” que nos
governa. Como se isto não fosse já suficiente, tive também a repentina, a
instantânea certeza de que tal livro, no caso de vir a existir, teria de levar
o título de Ensaio sobre a Lucidez, como se o fato de votar em
branco na atual situação do mundo fosse um ato exatamente ao contrário daqueles
ou da maioria daqueles que no Ensaio sobre a Cegueira se cometeram.
Durante estes dias, a convicção de haver acertado em cheio foi-se tornando mais
forte (...)”.
17 de março
“(...)
Cheguei à conclusão de que o título do romance determina que as personagens
sejam as que habitaram as páginas do outro Ensaio, o da cegueira. Provavelmente
não todas. Pensei que a mulher do primeiro cego se teria divorciado do marido e
que a mãe do rapazinho estrábico apareceu e tomou conta do filho. Os outros
—mulher do médico e marido, rapariga dos óculos escuros e velho da venda preta,
mantêm-se. E também o cão das lágrimas, que fechará o livro, com a mulher do
médico morta ao seu lado, assassinada por aqueles que decidiram que tudo
deveria voltar ao bom tempo antigo (...)”.
29 de março
“O primeiro
capítulo começará pela descrição (sumária, claro está) da tempestade de chuva e
vento que se abate sobre o país. A televisão e a rádio apelam à consciência
cívica dos eleitores para que, apesar do mau tempo, não se deixem ficar em
casa. Usar o palavreado balofo próprio das ocasiões patrióticas. Entrar em casa
das personagens principais: a mulher do médico e o marido (também o cão, que
vive com eles), a mulher divorciada do primeiro ladrão, a rapariga dos óculos
escuros e o velho da venda preta, mais o rapazinho estrábico (a mãe nunca
apareceu, ou sim?), o escritor e a família (toda? Recordo que era casado e
creio que tinha filhas). Às quatro horas da tarde todos saem para ir votar
(sairão igualmente os habitantes que ainda não haviam votado). Descrição da
caminhada sob a chuva. Bairros inundados, bombeiros, barcos. A rádio e a
televisão apressam-se a transmitir a notícia do inopinado acontecimento: os
eleitores da cidade X estão a dar um extraordinário exemplo de civismo,
arrostando com a intempérie para irem cumprir o sagrado dever (...)”.
19 de abril
Sobrevoando
o Mediterrâneo.
“A ideia de
que as personagens da Cegueira devam reaparecer em Lucidez parece-me cada vez
melhor. Se o título do novo livro indicia já uma continuidade, a presença das
personagens confirma-o definitivamente. No espírito das autoridades perplexas
nascerá a suspeita de que a mulher que não perdeu a visão na Cegueira poderá
ter algo que ver com o novo “fenômeno”. Passar dela para aqueles a quem ela
havia guiado é uma consequência lógica. Se o romance anterior tinha obedecido
escrupulosamente a uma certa lógica, este não poderá ficar atrás (...)”.
3 de junho.
Dia em que
Sophia de Mello Breyner ganhou o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana
“O final
não será como foi descrito acima. A mulher do médico será assassinada, mas não na
varanda das traseiras da casa. Será morta num jardim, aonde tinha levado o cão
das lágrimas a passear. O cão começará a uivar e será igualmente morto. Os
cegos perguntar-se-ão: Ouviste alguma coisa, Dois tiros, Mas havia também um
cão aos uivos, Já se calou, deve ter sido o segundo tiro, Ainda bem, o uivar
dos cães faz-me mal aos nervos”.
JAVIER MARTÍN,
LISBOA
Cinco anos após sua morte, José Saramago está muito presente. Em todo
mundo aumentaram os livros sobre ele, as representações teatrais, as traduções,
as cátedras e as mostras e até se publicou, postumamente, Alabardas, Alabardas, Espingardas,
Espingardas. “Chama-nos a atenção”, explicou Pilar del Río, viúva do
escritor e diretora da Fundação Saramago na quarta-feira em Lisboa, “que, sem
nossa iniciativa, muitas televisões recordam esta data”. Na Itália está sendo
preparada uma ópera baseada em As
Intermitências da Morte, e em São Paulo, a maior mostra sobre o
autor no Museu da Língua Portuguesa. Hoje, a Fundação estreia o
documentário Um Humanista por
Acaso Escritor, do brasileiro Leandro Lopes. E está sendo finalizado
um roteiro sobre O Fim da
Paciência, obra que nunca chegou a ser apresentada nos palcos.
Suas ideias também não morreram. Em 1998, o primeiro prêmio Nobel
português propôs em seu brinde no jantar da Academia sueca criar a Declaração
Universal dos Deveres Humanos. “não parece que os Governos tenham feito pelos
direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei,
estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades
agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra”.
Aquele brinde ao
sol foi retomado, 17 anos depois, pela Universidade Autônoma do México, que
organiza na próxima quarta-feira um congresso sobre a ideia dos Deveres
Humanos. O site Perspectivas do
Mundo da UNAM recolheu ideias, e intelectuais de todo o mundo
debaterão sobre o futuro que nos aguarda. “José não gostava de ser classificado
como intelectual”, recordou Pilar del Río, “ele era um humanista, mas um
humanista compassivo”.
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