segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A GLOBALIZAÇÃO NÃO É PARA TODO [O] MUNDO






Publicado por Túlio Rossi,
é sociólogo, professor, cinéfilo, apaixonado por vinhos e cafés. Observador de olho torto, aspirante ao artesanato intelectual. Alguém que gosta de aprender, descobrir e partilhar aprendizados.


Considerações sobre o atual debate acerca dos movimentos migratórios de refugiados no continente europeu e no mundo.



Ilustração. (Autor desconhecido)
A imagem de uma criança síria encontrada morta em uma praia na Turquia ‘viralizou’ em redes sociais, trazendo à tona um debate público sobre as migrações na atualidade e seu saldo por vezes cruel. Contudo, nem o fenômeno, nem suas consequências amiúde trágicas, são exatamente uma novidade.
Pondero, com um gosto amargo, os usos e ressignificações políticas que imagens como a de uma criança morta assumem no atual contexto das mídias digitais. Tal contexto se caracteriza, nos mais diversos níveis, por um fetiche – ora sádico, ora masoquista, ou os dois – que porta uma dose de narcisismo no sentido de, via compartilhamento dessas imagens com legendas e hashtags de desaprovação, marcar posicionamentos morais carentes de “curtidas” e reconhecimento.
Embora o debate sobre circulação e usos das imagens em redes sociais seja particularmente interessante, ele não é o centro deste artigo, ainda que meu olhar sobre o tema esteja profundamente afetado por ele. Proponho, antes, uma provocação a respeito do que entendemos e aprendemos como “globalização”, a que os processos migratórios são inerentes.
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2014, p.85) sintetiza Globalização como “conjuntos de relações sociais que se traduzem na intensificação das interações transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou práticas sociais e culturais transnacionais”.
Nisso, é comum termos um imaginário da globalização pautado principalmente por valores e discursos de países desenvolvidos do hemisfério norte, especialmente da Europa. Livre comércio, mundo sem fronteiras, comunicação instantânea, direitos e oportunidades universais...
O discurso é para todos e velho conhecido nosso. Especialmente nesses dias de crise, nossa classe média alta sonha com o mundo global “civilizado” acima da linha do Equador, um outro planeta onde tudo funcionaria aparentemente sem a corrupção provinciana de nosso dia-a-dia.


Ilustração. (autor desconhecido)

Esse discurso, bem como suas imagens de sucesso e civilidade globalizaram-se sim. Mas não tanto o acesso a elas ou mesmo sua incorporação prática. No mundo globalizado, boa parte do sucesso do hemisfério norte provém justamente de suas restrições e da manutenção de desequilíbrios e obstáculos na balança das relações de poder. E como são muitos os que desejam uma fatia deste bolo, mas poucos são convidados para a festa, conflitos acontecem.
Deste modo, os conflitos entre “local” e “global” – sendo este último um modelo bem específico de “global” no qual os países do sul entram principalmente como fornecedores de matéria prima e mão de obra barata – ocorrem muitas vezes como consequência de tentativas de adequar culturas, valores, políticas e economias a modelos hegemônicos que dificilmente são inclusivos ou sequer aplicáveis em diferentes cenários.
Nesse sentido, fora do mapa do “mundo globalizado”, países pobres estão frequentemente em guerras, crises e alternando regimes ditatoriais pelos mais variadas razões, mas afetadas por suas relações tanto locais quanto internacionais. E, frequentemente, populações inteiras só se tornam parte dessas disputas por poder “locais” – embora multinacionalmente patrocinadas – enquanto massa de manobra, exército de guerrilha ou escudo humano.
Sabe-se que as causas de conflitos e da pobreza que geram populações inteiras de refugiados são difusas e não devem ser limitadas a um discurso simplista de “capitalistas bobos chatos e feios do norte”.
Contudo, em grande medida, é a esperança de sobrevivência conforme os valores, discursos e ideais deste capitalismo que mobiliza um sem número de migrantes: para terem acesso a oportunidades e condições que lhes foram ensinadas como universais e humanas. Mas se estes valores e oportunidades são mesmo “universais”, porque parecem tão restritos a um quadrante tão pequeno do globo?
Por que tantas pessoas perdem a vida para migrar para onde, em tese, esses direitos existem e, no entanto, quando chegam lá – se chegam – vivem cotidianamente a negação explícita desses direitos? Aqui recomendo o filme Samba (Eric Toledano, Olivier Nakache, 2014) que traz uma abordagem relativamente leve do tema sem contudo abrir mão da crítica.
Há que se considerar também os olhares seletivos com que aprendemos a ver o fenômeno das migrações, especialmente pela cor da pele dos migrantes, às vezes mais do que por suas origens em si. Aparentemente, não somente a globalização, como também a comoção gerada por seus infortúnios, paradoxalmente, cruza fronteiras geográficas, mas revela muralhas ideológicas e de preconceito.
Deste modo, muito menos do que apresentar uma crítica moral – ainda que pertinente – ao capitalismo globalizado, o que se sugere aqui é repensar as implicações desse fenômeno contemporâneo para além dos discursos e olhares eurocêntricos nos quais fomos formados, ao menos na hora de partilhar mensagens e hashtags sobre a fotografia de uma criança morta em redes sociais.
Convém questionar: com que olhos aprendemos a olhar e avaliar essa fotografia e todo esse fenômeno mais amplo? Seriam mesmo os nossos, ou seriam os daqueles que, do alto da linha divisória de nossas idealizações, escolhem, frequentemente, virar-nos a cara? A globalização, visivelmente, não é para todos, muito menos para nós, brasileiros, latino-americanos e mestiços, como não é para aquela criança síria. Mas porque precisamos olhar tão longe para enxergar isso?

América Invertida. (Torres García, 1943)



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