Publicado por Túlio
Rossi,
é sociólogo, professor, cinéfilo, apaixonado por vinhos e
cafés. Observador de olho torto, aspirante ao artesanato intelectual. Alguém
que gosta de aprender, descobrir e partilhar aprendizados.
Considerações sobre o atual
debate acerca dos movimentos migratórios de refugiados no continente europeu e
no mundo.
Pondero, com um gosto amargo, os usos e
ressignificações políticas que imagens como a de uma criança morta assumem no
atual contexto das mídias digitais. Tal contexto se caracteriza, nos mais
diversos níveis, por um fetiche – ora sádico, ora masoquista, ou os dois – que
porta uma dose de narcisismo no sentido de, via compartilhamento dessas imagens
com legendas e hashtags de desaprovação, marcar posicionamentos morais carentes
de “curtidas” e reconhecimento.
Embora o debate sobre circulação e usos das
imagens em redes sociais seja particularmente interessante, ele não é o centro
deste artigo, ainda que meu olhar sobre o tema esteja profundamente afetado por
ele. Proponho, antes, uma provocação a respeito do que entendemos e aprendemos
como “globalização”, a que os processos migratórios são inerentes.
O sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos (2014, p.85) sintetiza Globalização como “conjuntos de relações sociais
que se traduzem na intensificação das interações transnacionais, sejam elas
práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou práticas sociais e
culturais transnacionais”.
Nisso, é comum termos um imaginário da
globalização pautado principalmente por valores e discursos de países
desenvolvidos do hemisfério norte, especialmente da Europa. Livre comércio,
mundo sem fronteiras, comunicação instantânea, direitos e oportunidades
universais...
O discurso é para todos e velho conhecido
nosso. Especialmente nesses dias de crise, nossa classe média alta sonha com o
mundo global “civilizado” acima da linha do Equador, um outro planeta onde tudo
funcionaria aparentemente sem a corrupção provinciana de nosso dia-a-dia.
Ilustração. (autor desconhecido)
Esse discurso, bem como suas imagens de
sucesso e civilidade globalizaram-se sim. Mas não tanto o acesso a elas ou
mesmo sua incorporação prática. No mundo globalizado, boa parte do sucesso do
hemisfério norte provém justamente de suas restrições e da manutenção de
desequilíbrios e obstáculos na balança das relações de poder. E como são muitos
os que desejam uma fatia deste bolo, mas poucos são convidados para a festa,
conflitos acontecem.
Deste modo, os conflitos entre “local” e
“global” – sendo este último um modelo bem específico de “global” no qual os países
do sul entram principalmente como fornecedores de matéria prima e mão de obra
barata – ocorrem muitas vezes como consequência de tentativas de adequar
culturas, valores, políticas e economias a modelos hegemônicos que dificilmente
são inclusivos ou sequer aplicáveis em diferentes cenários.
Nesse sentido, fora do mapa do “mundo
globalizado”, países pobres estão frequentemente em guerras, crises e
alternando regimes ditatoriais pelos mais variadas razões, mas afetadas por
suas relações tanto locais quanto internacionais. E, frequentemente, populações
inteiras só se tornam parte dessas disputas por poder “locais” – embora
multinacionalmente patrocinadas – enquanto massa de manobra, exército de
guerrilha ou escudo humano.
Sabe-se que as causas de conflitos e da
pobreza que geram populações inteiras de refugiados são difusas e não devem ser
limitadas a um discurso simplista de “capitalistas bobos chatos e feios do
norte”.
Contudo, em grande medida, é a esperança de
sobrevivência conforme os valores, discursos e ideais deste capitalismo que
mobiliza um sem número de migrantes: para terem acesso a oportunidades e
condições que lhes foram ensinadas como universais e humanas. Mas se estes
valores e oportunidades são mesmo “universais”, porque parecem tão restritos a
um quadrante tão pequeno do globo?
Por que tantas pessoas perdem a vida para
migrar para onde, em tese, esses direitos existem e, no entanto, quando chegam
lá – se chegam – vivem cotidianamente a negação explícita desses direitos? Aqui
recomendo o filme Samba (Eric Toledano, Olivier Nakache, 2014) que traz uma
abordagem relativamente leve do tema sem contudo abrir mão da crítica.
Há que se considerar também os olhares
seletivos com que aprendemos a ver o fenômeno das migrações, especialmente pela
cor da pele dos migrantes, às vezes mais do que por suas origens em si.
Aparentemente, não somente a globalização, como também a comoção gerada por
seus infortúnios, paradoxalmente, cruza fronteiras geográficas, mas revela
muralhas ideológicas e de preconceito.
Deste modo, muito menos do que apresentar uma
crítica moral – ainda que pertinente – ao capitalismo globalizado, o que se
sugere aqui é repensar as implicações desse fenômeno contemporâneo para além
dos discursos e olhares eurocêntricos nos quais fomos formados, ao menos na
hora de partilhar mensagens e hashtags sobre a fotografia de uma criança morta
em redes sociais.
Convém questionar: com que olhos aprendemos a
olhar e avaliar essa fotografia e todo esse fenômeno mais amplo? Seriam mesmo
os nossos, ou seriam os daqueles que, do alto da linha divisória de nossas
idealizações, escolhem, frequentemente, virar-nos a cara? A globalização,
visivelmente, não é para todos, muito menos para nós, brasileiros,
latino-americanos e mestiços, como não é para aquela criança síria. Mas porque
precisamos olhar tão longe para enxergar isso?
Nenhum comentário:
Postar um comentário