Literatura brasileira
Conto de
Lima Barreto.
Afonso Henriques de Lima Barreto, mais
conhecido como Lima Barreto, foi um jornalista, contribuinte para alguns
periódicos anarquistas do início do século XX, e um dos mais importantes
escritores brasileiros.
Este caso se passou com um antigo colega meu
de repartição.
Ele, em começo, era um excelente amanuense,
pontual, com magnífica letra e todos os seus atributos do ofício faziam-no
muito estimado dos chefes.
Casou-se bastante moço e tudo fazia crer que o seu
casamento fosse dos mais felizes. Entretanto, assim não foi.
No fim de dous ou três anos de matrimônio, Anacleto
começou a desandar furiosamente. Além de se entregar à bebida, deu-se também ao
jogo.
A mulher muito naturalmente começou a censurá-lo.
A princípio, ele ouvia as observações da
cara-metade com resignação; mas, em breve, enfureceu-se com elas e deu em
maltratar fisicamente a pobre rapariga.
Ela estava no seu papel, ele, porém, é que não
estava no dele.
Motivos secretos e muito íntimos talvez explicassem
a sua transformação; a mulher, porém, é que não queria entrar em indagações
psicológicas e reclamava. As respostas a estas acabaram por pancadaria grossa.
Suportou-a durante algum tempo. Um dia, porém, não esteve mais pelos autos e
abandonou o lar precário. Foi para a casa de um parente e de uma amiga, mas,
não suportando a posição inferior de agregada, deixou-se cair na mais relaxada
vagabundagem de mulher que se pode imaginar.
Era uma verdadeira “catraia” que perambulava suja e
rota pelas praças mais reles deste Rio de Janeiro.
Quando se falava a Anacleto sobre a sorte da
mulher, ele se enfurecia doidamente:
— Deixe essa vagabunda morrer por aí! Qual minha
mulher, qual nada!
E dizia cousas piores e injuriosas que não se podem
pôr aqui.
Veio à mulher a morrer, na praça pública; e eu que
suspeitei, pelas notícias dos jornais, fosse ela, apressei-me em recomendar a
Anacleto que fosse reconhecer o cadáver. Ele gritou comigo:
— Seja ou não seja! Que morra ou viva, para mim
vale pouco!
Não insisti, mas tudo me dizia que era a mulher do
Anacleto que estava como um cadáver desconhecido no necrotério.
Passam-se anos, o meu amigo Anacleto perde o
emprego, devido à desordem de sua vida. Ao fim de algum tempo, graças a
interferência de velhas amizades, arranja um outro, num estado do Norte.
Ao fim de um ano ou dois, recebo uma carta dele,
pedindo-me arranjar na polícia certidão de que sua mulher havia morrido na via
pública e fora enterrada pelas autoridades públicas, visto ter ele casamento
contratado com uma viúva que tinha “alguma cousa”, e precisar também provar o
seu estado de viuvez..
Dei todos os passos para tal, mas era completamente
impossível. Ele não quisera reconhecer o cadáver de sua desgraçada mulher e
para todos os efeitos continuava a ser casado.
E foi assim que a esposa do Anacleto vingou-se
postumamente. Não se casou rico, como não se casará nunca mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário