Cinema
Publicado por Gustavo Serrate
A Guerra Fria afetou a
indústria cinematográfica americana de forma brutal. Foi um período de intensas
perseguições a talentos ligados ao pensamento comunista, mas também foi marcado
por extrema criatividade. Das cinzas brotava o Cinema Noir, outro tipo de
cinema em ascensão retratava o medo da catástrofe nuclear através de metáforas
ou mensagens diretas. Após este período o cinema nunca foi o mesmo.
“Vida fora de equilíbrio... um estado de vida que clama por outra forma de viver”, esta é a tradução para a palavra ‘Koyaanisqatsi’, falada pelos Hopis, etnia indígena preservada até hoje no nordeste dos EUA. A palavra denomina o documentário (parte da trilogia Qatsi) dirigido por Godfrey Reggio, entremeado pelo poder da música minimalista de Philip Glass. Sem falas, o filme nos leva a um passeio pela natureza e por paisagens urbanas, evocando aos poucos o poderio bélico americano, como se aguardasse para ser utilizado: Milhares de tanques estacionados em fileiras gigantescas, testes atômicos, usinas nucleares e cidades. Algumas destruídas, outras respirando com vivacidade, como se aguardassem por um bombardeio a qualquer momento. O documentário Koyaanisqatsi resume a tensa atmosfera e a necessidade de mudança de uma época marcada pelo medo nuclear e pela propaganda americana contra o comunismo soviético quando o assunto era Guerra Fria.
Com o fim da segunda guerra mundial, Estados
Unidos e União Soviética disputavam a supremacia mundial através de conflitos
ideológicos e políticos. A Guerra Fria foi uma guerra subentendida - “se você
atacar, eu ataco”, - entre duas nações com propostas de mundo divergentes. De um
lado os EUA e países aliados, representantes do ‘primeiro mundo’, na defesa do
modelo capitalista. Do outro lado estavam os países de ‘segundo mundo’,
liderados pela União Soviética comunista, e por último, o ‘terceiro mundo’
subdesenvolvido, do qual o Brasil fez parte. (Vale lembrar que essa
categorização foi muito questionada por historiadores, sociólogos e formadores
de opinião). Viver no mundo pós-guerra significava estar em meio aos destroços
ansiando por reconstrução e ser obrigado a escolher de qual lado você gostaria
de viver; os comunistas ou os capitalistas?
Nesse contexto, o cinema sentiu o dissabor do
pessimismo, efeito não necessariamente negativo para a qualidade das obras
produzidas. Pelo contrário, a criação cinematográfica vivenciou uma época
ímpar. Na Itália por exemplo, o pessimismo pós-guerra nos presenteou com o
triste, mas inesquecível, Alemanha, ano zero, (1947) de Roberto Rossellini. O
filme foi o último, da trilogia da guerra, ao lado de Roma, cidade aberta
(1945) e Paisá (1946). Nos Estados Unidos o movimento do cinema Noir (cinema
negro) teve seu auge durante as décadas de 1940 e 1950, um dos movimentos mais
influentes da indústria cinematográfica. Caracterizado pelas cenas escuras,
cheias de mistério e sombras. O cinema noir versava sobre temas de crime,
violência e decadência moral. Surgiu a figura da femme fatale, a mulher
poderosa que se utiliza da sedução para conseguir o que quer. Figura
controversa para o movimento feminista, movimento social ascendente a partir de
1960. Apesar de desprezado pela crítica da época, o cinema Noir influenciou
gerações seguintes de cineastas.
O filme Noir costuma ser violentamente
fatalista, seus protagonistas, de forma geral, tentam escapar de um passado
sujo. Por mais que se esforcem, estão sempre prestes a encontrar o destino
cruel. O tom cínico adotado pelos realizadores de filmes Noir foi resumido pelo
roteirista e diretor, Abraham Polonsky, nesta declaração compilada pelo livro
Film Noir: “Foi uma guerra extraordinária, horrível. Campos de concentração,
massacres, bombas atômicas, pessoas mortas por razão nenhuma. Isto pode tornar
qualquer pessoa um pouco pessimista”. Polonsky foi o filho mais velho de uma
família de Russos/Judeus imigrantes, os ideais socialistas do pai influenciaram
a ideologia marxista de Polonsky e sua posterior filiação ao Partido Comunista
Americano.
Parte do medo incitado pela propaganda
anticomunista da guerra fria, era o medo anti- espionagem. Qualquer um que
defendesse ideias esquerdistas era considerado imediatamente suspeito de
espionagem. A pergunta central era: “Você é membro do partido comunista?”. Foi
criada a ‘lista negra de hollywood’, com o objetivo de boicotar músicos,
diretores, atores e roteiristas simpatizantes do comunismo. Abraham Polonsky
foi um dos nomes listados, ao lado de personalidades como: Charles Chaplin e
Luiz Buñuel.
O pivô da cruzada anticomunista nos EUA foi o
político americano Joseph Raymond McCarthy, senador do estado de Wisconsin
entre 1947 e 1957. Em 1950 McCarthy entregou uma lista com os nomes de 205
pessoas supostamente envolvidas no Partido Comunista que trabalhavam no
Departamento de Estado dos EUA. O medo da espionagem comunista alavancou a
carreira política do até então desconhecido McCarthy. Em resposta imediata à
lista entregue por McCarthy, os norte-americanos iniciaram uma “caça as
bruxas”, período também conhecido pela alcunha de ‘Macartismo’. O ‘Comitê de
investigação de Atividades Antiamericanas’ iniciou uma investigação da
indústria cinematográfica apontando ‘os dez de hollywood’, como supostos
praticantes de propaganda à União Soviética. A exacerbada patrulha
anticomunista, que caracterizam o Macartismo, destruiu a carreiras de muitos
profissionais do cinema, alguns entraram em depressão e cometeram suicídio,
como foi caso do ator Philip Loeb, retirado de uma carreira em ascensão por
acusações da patrulha anticomunista. Na década seguinte o Macartismo acabou
desacreditado e a lista negra caiu no ridículo, após anos contínuos de abuso
aos direitos constitucionais. McCarthy morreu no ostracismo político.
No década de 1960, tabus eram quebrados, mas
a Guerra Fria perdurava assim como a ameaça de uma hecatombe nuclear. Os filmes
B americanos perderam espaço nas produtoras americanas, mas ainda traziam em
sua ingenuidade a verdade cristalizada em pérolas oníricas: Mutações, aranhas e
pessoas gigantes ou diminuídas pela radioatividade. No Japão, a cristalização
do medo nuclear se transformou no monstro gigante, Godzilla (Gojira). Uma
ficção científica sobre um lagarto verde de centenas de metros de altura
nascido a partir de testes nucleares no atol de biquíni. O monstro atacava o
Japão destruindo cidades com seu bafo radioativo. Se você quisesse vender
filmes nos Estados Unidos, não se podia mencionar diretamente os estragos causados
pela bomba atômica, mas sempre foi possível falar através de metáforas. De
volta aos EUA, George Romero atacou com A noite dos mortos vivos (1968), em que
uma praga de zumbis infesta a cidade, e o protagonista tenta sobreviver no que
resta de uma pequena casa (um protagonista negro em plena ascensão do partido
Negro Revolucionário estadunidense, também conhecido como Os Panteras Negras).
Ainda no Japão, anos antes, Akira Kurosawa narra a história “A anatomia do
medo” (1955), sobre um empresário obcecado com a ideia de que o país não é
seguro, e de que só há um lugar pacífico e livre de riscos o suficiente para
não sofrer com as ameaças nucleares, um país da América do Sul chamado Brasil.
A Rússia e outros países como Letônia,
Estônia e Lituânia se declararam independentes da União Soviética dissolvendo a
nação comunista. Com o colapso da União Soviética a guerra fria chegou ao fim.
Os talentos do mundo vermelho surgem para o
mundo ocidental, rompendo barreiras e renovando a arte. Nikita Mikhalkov e Andrei
Tarkovsky são alguns dos artistas que representam a produção da extinta União
Soviética. Tarkovsky, decididamente desvinculado do cinema comercial, e autor
de alguns filmes que figuram hoje entre algumas das mais importantes
realizações cinematográficas do mundo.
Em declaração para um documentário de TV,
Tarkovsky declara sua concepção de arte que aproxima os artistas do oriente ao
ocidente. Divididos por um oceano e por uma visão de mundo - ‘tão longe, tão
perto’ - os artistas tem uma razão única para existir: “O artista existe porque
o mundo não é perfeito. A arte seria inútil se o mundo fosse perfeito. O homem
não buscaria por harmonia, simplesmente viveria nela. A arte nasceu de um mundo
doente”, disse Tarkovsky mencionando os tempos em que viveu.
Parte da criatividade
cinematográfica do período da Guerra Fria se deve a criatividade dos políticos
do mesmo período. Poucos sabem, mas o conceito de Guerra nas Estrelas nasceu
antes mesmo do filme homônimo de George Lucas. A corrida armamentista, somada à
corrida espacial, criaram ainda durante o governo de Richard Nixon, o desejo de
implantar uma guerra ocorrendo através de rotas espaciais. Mas foi preciso que
um membro a indústria cinematográfica de Hollywood se tornasse presidente para
quebrar a política de boa vizinhança com a União Soviética e reativar a velha
proposta de Guerra nas Estrelas. O autor da proposta de ficção científica foi o
ex-ator de cinema Ronald Reagan.
O diretor de cinema George Lucas
trabalhava na produção de Apocalypse Now (1979), o famoso clássico de Francis
Ford Coppola. No livro “The Making of Star Wars”, George Lucas explica como
preferiu iniciar seu projeto pessoal ao invés de permanecer trabalhando no
projeto de Coppola: “Boa parte do meu interesse em Apocalypse Now foi carregado
para o Guerra nas Estrelas. Eu essencialmente lidei com alguns dos mesmos
interessantes conceitos e os converti em fantasia espacial. Então você tem um
amplo e tecnológico império perseguindo um pequeno grupo de seres humanos
lutadores pela liberdade. O império é como a América, dez anos depois de agora.
Após os mafiosos nixonianos matarem o imperador e elevarem-se ao poder através
de eleições fraudulentas. Foi criada desordem civil, instigando protestos
raciais, grupos rebeldes e permitindo que a criminalidade aumentasse até o
ponto em que o total controle da polícia se tornasse bem vindo. Ai então as
pessoas poderiam ser exploradas”, conclui George Lucas.
Definitivamente, a Guerra Fria
foi um período único para a história do mundo, como fonte de matéria prima para
as mentes criativas e ao menos naquele momento de brutais convulsões na esfera
política e social, respondeu à questão: A vida imita a arte, ou a arte imita a
vida? A segunda opção, neste caso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário