Política fundiária
Expulsos por Belo Monte,
Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país.
Conheça o Brasil que você
desconhece
ELIANE BRUM Altamira
El País – O Jornal Global
Uma
das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo
Monte. /LILO CLARETO
Raimunda
decidiu viver, ainda que carregando seus pedaços. João não sabe como viver.
Para ele, só há sentido na morte em sacrifício.
Neste
momento, João e Raimunda vivem esse impasse.
Enquanto
isso, a Norte Energia espera apenas que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) dê a Licença de Operação da
hidrelétrica, mesmo sem que a empresa tenha cumprido as medidas de redução e
compensação do impacto, para começar a encher o lago de Belo Monte.
O terceiro
ato ainda é uma incerteza.
Ato 1: João perde a fala e trava
as pernas para não matar
Segunda-feira,
23 de março de 2015. João Pereira da Silva estava diante do preposto da Norte
Energia, a empresa que venceu o leilão de Belo Monte, apresentada como uma das
três maiores hidrelétricas do mundo. Ele esperava receber um valor justo pela sua
casa, roça e demais benfeitorias, na ilha da qual era expulso pela barragem. Em
vez disso, impuseram-lhe o valor de 23 mil reais, insuficiente para comprar uma
terra onde pudesse voltar a plantar, pescar e extrair os frutos da floresta
para ganhar o sustento. João percebeu ali que estava condenado à miséria, aos
63 anos. E que, para ele, a Lei não valia. Desde os oito anos de idade ele
peregrinara por vários Brasis em busca de uma terra sem dono, arrancando cada
dia da força dos braços. Depois de um percurso de faltas, João acreditou ter
encontrado uma casa e uma existência sem fome na ilha do Xingu. E agora
arrancavam-no também dali. João sentiu que era a vida que lhe roubavam, e que
ele já não tinha mais juventude nem saúde para recomeçar. Para João, já não
haveria uma última fronteira, a esperança de todos os brasileiros sem lugar.
Acabavam de lhe tirar tudo, e também o sentido. Para ele, o
passado-presente-futuro fora reduzido a um tempo só, que se repetia.
João quis matar o homem na sua frente. Matar não como uma vingança é
preciso compreender. Matar como um sacrifício.
– Se eu
fizesse um dano com um grande, um grande lá de dentro, talvez melhorasse para
os outros. Eu sacrificava a minha vida, mas a dos outros melhorava. Se eu
pudesse, eu passaria por dentro do maior chefe dessa firma, passaria por dentro
umas duzentas vezes. E não tenho medo de dizer. Eu era muito satisfeito de
fazer isso, mesmo que na mesma hora minha vida se acabasse.
João não
conseguiu fazer o gesto. O desejo de matar não virou movimento. João descobriu
ali que matar não era um ato possível para ele. As pernas travaram, a fala
travou. João imobilizou-se por inteiro para não matar aquele que encarnava a
obra que acabava de matá-lo. Sacrificou a si mesmo. Teve de ser carregado pela
mulher, Raimunda, e por uma das filhas, para fora do escritório da Norte
Energia.
– Eu
perdi… Chegou a um ponto de eu perder a fala. Perdi tudo. Ficava só espumando.
E o nervo travou tudo. Travar de não poder andar. Hoje eu ando um pouco, mas
minhas pernas doem, e incham. Minha senhora, não é fácil, ter tanta raiva que
trava o corpo.
Desde então,
João é um homem traumatizado. Não no sentido banal que a palavra “trauma”
ganhou ao se popularizar, mas no sentido do “trauma” como aquilo que não é
possível simbolizar, do buraco que não vira marca. Sem saber para onde ir nem
onde está, João só consegue andar uns poucos passos e logo precisa sentar-se
num banquinho. Quando sai, perde-se porque já não reconhece o território. João
tornou-se um desterrado de tudo e também de si. Dias atrás um amigo ligou para
Raimunda: “Seu João está sentado no meio do nada, debaixo do sol. Vai morrer
ali”. Raimunda pediu a uma das sete filhas para resgatá-lo.
E se, em vez
de paralisar, João tivesse conseguido falar naquele dia, o que teria dito?
– Muié, eu
teria dito muita coisa. A primeira delas é que o país brasileiro não tem
justiça.
João faz uma
pausa antes de esclarecer:
– Muié, você
tem que entender uma coisa. Não era falar, era fazer. Eu tenho nojo desse
pessoal. Que Deus me perdoe, mas eu tenho nojo.
Sem palavra
e sem ato, João é uma vítima de catástrofe. E torna-se vítima duas vezes,
porque essa catástrofe não é reconhecida pelo seu país. Assim, João também
torna-se um sem país, na abissal condição de sentir-se dentro e fora ao mesmo
tempo, atingido por uma lei não escrita, ignorado pela lei que deveria
inscrevê-lo na trama da cidadania. Para referir-se ao Brasil, a expressão mais
frequente de João é “o país brasileiro”. Nessa escolha de linguagem, o Brasil é
um corpo ao qual ele não pertence. E, assim, João é condenado como pária.
– Cheguei a
dizer e digo. Digo pra Dilma, digo pra Deus, pro Satanás e para qualquer cão
que aparecer, que a justiça do país brasileiro é dinheiro. Se Jesus bater aqui,
nesse país, os altos empresários catam ele e compram ele. E, se ele se
abestalhar, é vendido. Entendeu?
João repete
a interrogação “entendeu” muitas vezes. Depois de escutá-lo por algum tempo
percebe-se que não é uma bengala de linguagem, como se poderia supor, mas sua
certeza de não ser compreendido.
Ato 2: Raimunda descobre que sua
casa virou cinzas
Terça-feira,
1 de setembro de 2015. Raimunda Gomes da Silva, 56 anos, chamou um conhecido,
comprou dez litros de gasolina para a viagem no rio e fez “um rancho e um
frito” para comer no caminho de sua ilha, a Barriguda, no lugar batizado de
Furo do Pau Rolado. Partiram às 5 horas da manhã. Um dia antes, na
segunda-feira, haviam ligado da Norte Energia: “Dona Raimunda, quando nós
podemos tirar os seus resíduos lá da ilha?”. “Resíduos” eram as posses de
cozinha e de pesca de Raimunda. Ficou combinado que ela retiraria seus
pertences na terça-feira cedo. Depois de duas horas e meia de rio, Raimunda
alcançou a sua ilha.
Sua casa,
feita de acapu, madeira resistente, ainda queimava.
– Você sabe
que, pra te falar a verdade, amiga, eu desci do barco e não senti o solo. Eu
não senti o chão no pé, porque aquilo me deu um branco. Ali, na hora, eu não
sei o que senti. Porque, quando eu vi de longe, eu não achei que tinha...
Quando nós chegamos lá, que eu vi minha casa queimada, eu desci, subi a
barreira, sentei, e me apagou, branqueou, eu não sei. Não sei nem lhe falar o
que eu sei, o que eu senti, não sei, porque eu não senti nada... Eu fiquei
anestesiada do que vi. Porque, como que eles ligam pra eu tirar o que é meu e
queimam a casa toda um dia antes? Fiquei parada, pensando na vida, só, viu. Que
mundo é esse que a gente vive?
A Norte
Energia não considerava a casa de Raimunda uma casa. Disseram a ela que era um
tapiri. Raimunda retrucou: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí. Mas, na
minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela, viu?”. Quando encontrou a casa em
cinzas, Raimunda sentou-se na beira do rio.
– Eu nunca
imaginei que eles iam tocar fogo. Se eu for tocar fogo no escritório deles,
fico presa pro resto da vida. Eles botam fogo na minha casa e não acontece
nada. É a profecia do fim do mundo que o meu pai falava, a roda grande passando
por dentro da pequena.
Raimunda fez
uma Certidão de Ocorrência na Polícia Federal de Altamira. Relatou que, naquele
momento, as demolições e “remoções” dos ribeirinhos estavam suspensas pelo
IBAMA. A medida havia sido tomada depois que uma inspeção realizada em junho
revelara uma série de violações de direitos humanos no processo de expulsão das
famílias, em relatório assinado pelo Ministério Público Federal, instituições públicas,
organizações não governamentais e acadêmicos do porte de Manuela Carneiro da
Cunha (USP/UChicago), Mauro de Almeida (Unicamp) e Sônia Magalhães (UFPA). Mas,
ainda assim, a casa de Raimunda queimava.
Ela
concluiu:
– Eles têm
certeza que podem fazer o que quiserem e nunca vão ser punidos.
E Raimunda,
o que acha?
– Eu acho
que eles tão certo. Eles têm certeza do que fazem. Talvez eu não tenha certeza
do que digo. Mas eles sabem o que fazem.
A procuradora da República em Altamira, Thais Santi, comunicou ao IBAMA o
descumprimento da ordem de suspensão das “remoções” e demolições no caso de
Raimunda. “A violência dessa atitude de demolir e incendiar a casa dessa
moradora é imensurável, pois simboliza a soberania do empreendedor, que mesmo
diante de tantos pronunciamentos, das mais diversas instituições, retorna com a
mesma postura. A empresa descumpre a determinação do IBAMA, com a certeza de
que a consequência não advém. Talvez receba uma multa”, afirma a procuradora.
“A empresa está blindada pelo Estado e tem a segurança de que,
independentemente do que fizer, obterá a Licença de Operação.”
O Ministério
Público Federal já entrou com 23 ações contra Belo Monte, por descumprimento
das medidas obrigatórias de redução e compensação do impacto da obra sobre o
meio ambiente, os povos tradicionais e a população rural e urbana. Nenhuma
delas conseguiu fazer com que a lei fosse cumprida. Seis delas tiveram decisões
favoráveis, que em seguida foram derrubadas pelo instrumento autoritário da
Suspensão da Segurança, que autoriza a continuidade da obra em nome do
“interesse nacional”. A Defensoria Pública da União acaba de entrar com uma
ação no valor de R$ 3,5 bilhões contra Belo Monte, para compensar a violação de
direitos dos atingidos pela barragem.
Nem o IBAMA
nem a Norte Energia responderam aos pedidos de entrevista do EL PAÍS até o fechamento
da reportagem.
Diante das
cinzas da sua ilha, Raimunda procurou seu pé de pinhão-pajé, plantado na frente
da casa.
– Esse
pinhão era meu amigo principal. Porque eu acreditava assim. Se eu chegasse de
manhã cedo, e ele tivesse com as folhinhas moles, bem coladinhas, naquele dia
eu não saía pro rio. Porque ele tava me dizendo algo, na linguagem dele. Tava
buscando me proteger de alguma coisa. Mas, se ele tava todo arregaçadinho, eu
já tava sabendo que tava tudo bem comigo.
Raimunda
buscou seu “amigo principal”, mas ele já era um não havia.
– Agora eu
não tenho mais quem me guie.
Raimunda
então canta diante das cinzas.
– É muito
difícil você ver o que é seu ser queimado. A única maneira pra me expressar é
cantando. Pra que a minhas plantas saibam que eu jamais queria que elas fossem
queimadas, ou fossem lesionadas. Pra que elas sintam que eu tou aqui. Como elas
não sabem falar, e eu não sei a linguagem das plantas, eu canto pra elas. Digo
pra elas que o mundo não acaba aqui porque minha casa tá sendo queimada. O
mundo ainda tá de pé. Enquanto Deus me der a vida, eu vou levar comigo isso,
esperança e fé. Que um dia a Justiça seja verdadeira. Porque agora a Justiça é
uma visagem, uma lenda. Dizem que existe, mas os pobres nunca veem.
O Antes: O pai ensina Raimunda a
caminhar sem fazer barulho
Raimunda
desfila pelo corredor com suas sandálias havaianas. “Olha, caminho com qualquer
calçado sem fazer nenhum barulho”, ela diz. Eu faço uma brincadeira que só uma
branca que leu muitos contos de fadas é capaz de fazer: “Andar de princesa, né,
dona Raimunda?”. Ela me chicoteia na hora: “Andar de quem passou a vida na casa
dos outros”.
O pai é a
raiz de Raimunda. Ela vai repetindo seu ensinamento enquanto apresenta a
dissolução do seu mundo, como se um pudesse costurar o rasgo do outro. Natalino
Gomes era bisneto de escravos com muita dor no falar, e uma avó índia canela
para apimentar o sangue africano com tropicalidades.
– Meu
bisavô passou a corrente para o meu avô, que passou para o meu pai, e assim
sucessivamente. Nunca deixou de ser escravo, o meu pai, porque só sabia
trabalhar pros outros. Não sabia mexer com esse negócio de dinheiro, nem sabia
ler. Meu pai ensinou todos os filhos a não fazer barulho ao andar. Eu fui
criada nessa cultura do sim senhor, não senhor. Mas, não, nunca me acostumei.
Talvez
Raimunda tenha herdado o arrebatamento da mãe, Maria Francisca Gomes. Ela era
mãe de santo do candomblé, desafiando o catolicismo do pai. A mãe era alegre, era
livre, no dizer de Raimunda. Tão livre quanto a pobreza permite. Um livre de
viver em outras realidades, para além das correntes. A mãe era também arretada,
não deixava homem nenhum botar-lhe canga, nem mesmo o marido, muito menos o
marido. Quebradeira de coco de babaçu, partia para a lida com uma saia de
meninos rodopiando ao seu redor. Raimunda carrega coco desde os cinco anos,
quebra-os com o facão desde os sete. Guarda na mão as cicatrizes desse ofício
que mutilou tantas crianças, amputando-lhes dedos e futuros. Mas isso foi antes
de trotar para a casa dos outros, com passinhos de feltro, aos 10 anos de
idade. Aprendeu a ler sozinha, juntando uma letra na outra para ver no que
dava. Escola, não conheceu.
Raimunda
avisa:
– Eu não
levo recado, eu dou.
E então dá:
– A
escravidão não acabou, ela só camuflou. A escravidão taí, nua e crua. Num outro
modelo, mas tá. Porque ser escrava é isso. É não ter direitos. Olha o que
aconteceu com a minha pessoa e com milhares de outros com essa Belo Monte? E
cadê a Justiça? Taí, um monte de injustiças na cara da justiça. Então, sou
escrava.
Em seguida,
Raimunda acha que o recado ainda está curto e decide dá-lo todo:
Raimunda, no rio, com
uma bandeira do Brasil na cabeça porque diz que o país também é dela. / LILO CLARETO
– O negro
sempre tá na segunda parte da história. Nunca na primeira. Ou na terceira, quem
sabe? O primeiro lugar pro negro é muito difícil. É quase impossível.
Se as
correntes encurtavam os passos silenciosos de Natalino, o pai de Raimunda,
ainda assim ele sonhou. E foi pelo sonho, por essa esperança fininha que
circula no corpo dos brasileiros que ainda hoje andam o mapa inteiro em busca
de uma terra sem dono, que ele carregou a família para a Amazônia, no encalço
de uma terra para quem nada tinha. Não conseguiu, e é por isso que Raimunda diz
que o pai morreu escravo. Raimunda seguiu sendo babá, empregada doméstica, em
casa alheia, também nas Amazônias do Pará.
Para ela, o
pai legou uma série de dizeres, e também algumas profecias. Uma delas é esta,
na qual Raimunda vai fazendo pontes entre o passado de escravidão e o presente
de escravidão, entre o desterro de um continente ao outro e o desterro dentro
do desterro.
– Meu pai
dizia que um dia o mundo ia ser movido por um papel. E taí, o dinheiro. Não foi
isso o que aconteceu? Belo Monte chegou impondo, derrubando, passando por cima
e jogando umas migalhas de papéis que são os dinheiros que eles dão. Não veem
que acabaram com aquela pessoa por dentro quando lhe tiram a sua casa.
Entendeu? Tiram tudo da pessoa e jogam uns papeizinhos, daí fica assim.
Entendeu?
Como João,
seu marido, Raimunda também usa esse “entendeu” para concluir as frases,
fazendo da interrogação quase uma faca no pescoço do interlocutor. Mas a esse
“entendeu” ela dá um outro sentido. Raimunda acredita que ainda pode ser
compreendida.
E assim,
continua.
–
Ninguém vive de dinheiro. Se perde no mato com uma sacola de dinheiro e vê o
que o dinheiro vale: nada! Mas fica no mato sem uma sacola de dinheiro,
perdido, que você consegue sobreviver. Você acha uma planta, você acha uma
fruta, você bebe água. A mata lhe oferece tudo o que você precisa pra viver,
pra sobreviver até alguém lhe encontrar. E você, com dinheiro, você morre com
ele nas costas, não serve de nada.
Raimunda
agarra-se ao chão que são as palavras do pai. Ela ali tem uma raiz que ninguém
pode lhe arrancar. E como a catástrofe já estava prevista por aquele que
arrastava as correntes, a sensação de que tudo está para além de qualquer
controle é brutal, mas não a paralisa: “O papel acabou com o mundo, como meu
pai dizia. Ele sabia”. O pai também dizia: “Siga as trilhas”. Raimunda, como se
verá mais adiante, sempre dá jeito de encontrar uma trilha.
O Antes: abandonado pelo pai,
João ganha o trecho e vira barrageiro
João também
nasceu no Maranhão, mas esta não é uma terra de pertencimento para ele. João
não migrou, como Raimunda, ele tornou-se um indo. Seu pai foi acometido por uma
febre mais forte do que a malária, e que dura muito mais. E às vezes também
mata. A do ouro. “Bamburrar”, encontrar tanto ouro que a pobreza será só uma
fotografia empoeirada no passado, é o que faz bater o coração de milhares de
homens Brasil afora. A cada “fofoca”, como se chama a descoberta de um novo
veio de ouro, eles se lançam no território em barco, em ônibus, em pau de
arara, em pés, com pouco mais do que a roupa do corpo e um sonho feroz. É a sua
maneira de recusar-se a uma só sina, a da miséria, ou a de viver uma vida de
aventuras e de consumição, uma vida, como um dia um garimpeiro me disse, de personagem
de livro. Ao me dizer, esqueceu-se de que não sabia ler.
Como costuma
acontecer no Brasil, em que os pobres são criminalizados toda vez que recusam
seu destino e levantam a cabeça caçando horizonte, os garimpeiros são tratados
como bandidos, enquanto as grandes mineradoras, as multinacionais, as que
arrasam enormes porções de floresta e concentram o lucro, estas são purificadas
pela palavra “negócio” ou “empreendimento” ou ainda “desenvolvimento”. Essa
metamorfose também acontece neste momento, quando Belo Sun, a mineradora
canadense, tenta se instalar bem perto de Belo Monte para explorar imensa
jazida de ouro, esmagando os garimpeiros artesanais que por lá vivem há décadas.
Se conseguir, terminará de arrasar com o Xingu e com os povos tradicionais, que
pertencem à floresta e a preservam para o Brasil e o mundo.
O pai de
João era um destes homens febris, que abandonou a família e também esse filho
pequeno para consumir-se em seu eldorado íntimo. Tinha terra no chão nordestino
e até um pouco de gado, mas não era homem plantado. Embrenhou-se nos garimpos
de Itaituba, no Pará, lá onde hoje cresce o cerco do governo para mais duas
grandes hidrelétricas: São Luiz do Tapajós e Jatobá. Como a maioria dos
garimpeiros, encontrou uma mulher nova, e possivelmente várias outras. As
prostitutas chegam antes dos garimpeiros nas fofocas, ou pelo menos junto com
eles. Lá são chamadas de “mulher livre”, e os arranjos são variados. Podem ser
mulher de um homem só em troca de uma quantidade previamente acertada de gramas
de ouro, e cozinhar e lavar e namorar na “corrutela”, a vila que se forma no
garimpo, como se esposa fossem. E às vezes se tornam. Quando o pai veio buscar
o filho para levá-lo com ele ao garimpo, era tarde para um encontro que nunca
houve. O pai tentou duas vezes, numa delas apareceu até de avião. João
desacreditou das asas do pai e recusou-se a seguir com ele. Preferiu fazer-se
homem quando ainda era menino.
Primeiro
João trabalhou na roça de parentes, com oito anos de idade, um fiapo de gente.
Aos 12, desgarrou-se. Lançou-se no “trecho”, uma das palavras mais enigmáticas
na linguagem variada dos Brasis, que vai ganhando significados diferentes país
afora. O trecho é o mundo, é a estrada, é a vida em movimento, é um fora prenhe
de possibilidades. João viveu no trecho, trabalhando duro, carregando mais
pedras do que podia, inventando músculos quando ainda não os tinha, porque a
vida de menino pobre e sem letras é sustentada na força dos braços. Condenado
pelo pai, que dizia que “escola de menino é cabo de enxada e cabo de facão”.
João não se
filiou ao garimpo, esta era a escolha do pai, do qual ele não se considerava
mais filho. Preferiu fazer sua própria filiação. Entre as sinas dos brasileiros
pobres, ele escolheu a de se tornar barrageiro, um operário de barragem que vai
seguindo a trilha dos grandes projetos do governo. E, quando não há nenhuma
grande usina para construir, alista-se em contratos fora do país, negócios
assumidos pelas gigantes do setor de construção. “Trabalhei na Mendes Júnior,
trabalhei na Queiroz Galvão, trabalhei na Camargo Corrêa, trabalhei na
Odebrecht, trabalhei na Andrade Gutierrez, trabalhei na Constran, trabalhei na
Construpar. Trabalhei em outras firminhas sem vergonha. Eu sei que foram umas
12 firmas que eu trabalhei.”
João foi
peão num jogo que tem como tabuleiro a Amazônia e o Brasil. Nos anos 50, no
governo democrático de Juscelino Kubitschek, as empreiteiras construíram
Brasília e nunca mais saíram do centro do poder. Cresceram e multiplicaram seus
lucros logo em seguida, nos grandes projetos da ditadura civil-militar
(1964-1985), com ênfase nas obras megalômanas na Amazônia, como a
Transamazônica, uma entre tantas que aniquilaram floresta e vidas. Seguir o
dinheiro das grandes empreiteiras é contar pelo menos 60 anos da história do
Brasil, um período que vai da segunda metade do século 20 até esses primeiros
15 anos do século 21. Os empregadores de João hoje amargam a cadeia, acusados
pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal. A operação investiga a corrupção
em contratos da Petrobras e, mais recentemente, também do setor elétrico. Delatores já revelaram a prática de propina em Belo
Monte, paga ao PMDB e ao PT. A investigação está em curso.
No começo de
sua vida de barrageiro, João foi trabalhador braçal. Depois, conquistou uma
profissão e tornou-se operador de máquinas. Sua primeira grande hidrelétrica
foi Itaipu, no Paraná, a obra binacional que afundou uma das maravilhas do
mundo, as Sete Quedas, uma obscenidade sem reparação. Mas foi só em outra
hidrelétrica, Tucuruí, que João compreendeu seu papel descartável no jogo
comandado por reis e depois por uma rainha. No momento dessa descoberta, João
começava o capítulo definitivo da sua vida, ao lado de Raimunda.
O casamento: João e Raimunda se
encontram num “pancadão”
Raimunda
tinha 16 anos quando conheceu João num baile. “Era um pancadão”, ela informa.
“Eu olhei ele, ele olho nimim.” Foi assim, entre o azulado do olho
de João e o negro de Raimunda, que se quiseram de imediato. Raimunda foi logo
avisando que não era “da tradição de gente que se junta, se quiser me dê
aliança e sobrenome e vamos fazer história”. Fizeram. Tempos depois se
oficializaram num casamento coletivo. Raimunda enfeitou-se com um vestido
lilás, segundo ela “a cor da mulher”. Em seguida, inauguraram uma fileira de
filhas, no total de sete mulheres, todas com nome iniciado pela letra “L”. E
apenas um filho homem, que morreu de meningite com um ano e cinco meses,
batizado como Leodeí:
– Eu
trabalhei na casa de uma senhora, e ela tinha um filho que era militar. E ele
morreu numa cidade chamada Indonésia. Então eu guardei aquele nome na cabeça,
Indonésia... E o sonho da mãe era conhecer essa cidade porque o filho morreu,
ficou pra lá. Anos depois, trouxeram os restos mortais, mas não era mais o
filho. Eu fiquei pensando comigo... Indonésia... Se a Indonésia é uma cidade
que foi guerreada numa guerra inútil, e ela hoje tem paz, quero que a minha
filha tenha esse nome. Aí coloquei Lindionésia. E depois vieram a Lindionisia,
a Livia, a Liviane, a Leidiane, a Luciene e a Liliane.
Lindionésia
é uma síntese e um desejo: depois de João e Raimunda atravessarem uma vida de
guerra, a paz inscrita no corpo de letras da filha. A saga, porém, ainda não
tem conclusão na concretude dos dias. A paz, na vida de Raimunda e de João,
ainda não deixou de ser palavra para virar a coisa que representa. O “L” tem
outro porquê:
– É de
liberdade. Liberdade de expressão, né? Queria que minhas filhas fossem livres,
que tivessem livre expressão de estudar, de brincar, de ser o que quisessem na
vida.
Raimunda
persegue a paz desde que se entende como Raimunda. Mas, sobre a paz, o pai não
deu certeza.
– Meu
pai colocou um ‘talvez’, talvez o mundo um dia tenha paz. Ele não deu como
certo, e morreu sem encontrar a paz. E eu continuo procurando a paz.
Nesta busca,
um dia João apareceu anunciando:
– Tão
contratando em Tucuruí.
Foi ali que
Raimunda descobriu, como ela diz, “que tem sangue doce pra barragem”. E a
condição de peão revelou-se para João em toda a sua magnitude. Se antes ele
andava de barragem em barragem, de obra em obra, agora ele tinha uma família.
João não podia mais percorrer o trecho, ele precisava enraizar-se. Enquanto uma
das barragens mais devastadoras da ditadura era construída também pelas suas
mãos, no rio Tocantins, no Pará, João e Raimunda fizeram pouso e fizeram casa.
Ao final, descobriram o que acontecia quando o rio é barrado, a floresta é
inundada e um pedaço da Amazônia se finda. É Raimunda quem conta sobre o
momento em que o círculo se fechou para João, e ele teve a revelação:
– Meu João
trabalhou em Tucuruí a partir de 1976. Em 1983, ele se deu conta que tava feito
pombo. Porque o pombo, ele faz o ninho, e no dia em que ele bota o ovo, ele
começa a desmantelar o ninho. No dia em que termina de tirar o derradeiro
fagulho do ninho, o filho já foi embora. E ele tava fazendo isso, mesmo. Porque
ele trabalhou, comprou uma terra e uma casa com o dinheiro da barragem que
construía, e essa mesma barragem alagou tudo nosso.
A
Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na
ditadura:
– E lá a
gente era, eu não vou dizer burra, mas desinformada. O que aconteceu? Meu lote
valia dois barão. Naquele tempo, era um dinheiro muito alto. Então, a
Eletronorte falou o seguinte: “Eu não posso lhe depositar esse dinheiro sem o
título da terra”. Nós tinha terra legalizada. E nunca mais nós vimos esse
título. E não podia provar, porque era a palavra deles contra a nossa. Então,
além de perder tudo, ficamos por mentirosos, de frente pra uma Justiça que tava
lá. Por isso que eu me revolto com a Justiça, por conta disso. Nunca tivemos o
que fazer. Não tinha como pagar um advogado, não tinha como pagar nada. Deram
outra terra pra gente, que não tinha quem aguentasse os mosquitos nem as
pragas. A água subiu por causa da barragem, e apodreceu toda a vegetação. Se
formou um mar de insetos. Não tinha como sobreviver ali. O que que nós fizemos?
Pegamos os filhos pequenos e fomos pra Marabá (na beira da Transamazônica) no
finalzinho de 1985. Não deu certo. Em 1988 fomos pra Altamira.
Em Altamira,
João e Raimunda descobriram que havia um lugar para pobre ficar rico: a
floresta. Mas isso foi depois.
Antes, João
passou por ainda mais duas provações. Logo depois de Tucuruí, ele partiu para o
Iraque, contratado pela construtora Mendes Júnior Internacional. João, que se
sentia vítima de uma guerra não declarada, foi despachado para o outro lado do
mundo, para construir “uma pista para tanques de guerra”. Sofreu um ano longe
da família. Quis voltar lá pelo meio, mas tinha assinado contrato. De lá ditou
a Francenildo, o amigo que sabia escrever, uma carta para Raimunda. Terminou
dizendo: “Só o amor constrói”. A carta está plastificada, como uma prova de que
o amor deles constrói pontes entre exílios.
Depois da
expulsão pela Hidrelétrica de Tucuruí, Raimunda tornou-se uma documentadora.
Guarda tudo, registra tudo, agarra-se aos papéis. João também mudou. Da
experiência de construir em países do Oriente Médio, ele faz uma analogia com
Belo Monte:
– Conheci
vários países, mas só vi o que acontece aqui, no país brasileiro, em lugar com
terrorismo. Aqui, a empresa escolhe o dia de matar hoje e o dia de matar
amanhã. Entendeu? Justiça não existe.
Em outra
ocasião, João migrou pelo “país brasileiro” em busca de trabalho. Explica com
essa lembrança por que não é capaz de pedir esmola, embora não tenha mais como
ganhar o pão, desde que foi expulso da ilha:
“Tenho cara de morrer de fome,
mas não tenho coragem de pedir. E com que força eu vou recomeçar tudo agora,
velho e doente?”
– Eu
nunca pedi nada, me acho com vergonha. Eu não tenho cara pra isso. Eu tenho
cara de morrer de fome, mas não tenho coragem de pedir. Entendeu? Numa ocasião
eu fui pra uma firma em Imperatriz (Maranhão), lá perto de Marabá (Pará). Eu
tava com 50 contos. E já tava com três dias sem comer. Não comia porque aquele
dinheiro era pro transporte. De noite eu tô num banco lá na rodoviária, um cara
diz pra outro: “Rapaz, lá na cidade de Balsas (Maranhão) tão fichando gente por
3 e por 4”. Eu saí e comprei a passagem com os cinquenta contos. Sobrou cinco.
Cheguei lá, eram cinco horas da manhã. Já passei na frente do escritório e vi
logo a placa. “Não ficho ninguém. E não insista”. Mas eu, pra tirar a dúvida,
tomei um café lá na rodoviária, de cinco contos sobrou só um, e fui caçar
emprego. Quando eu passava nos restaurantes, naqueles restaurantes que tavam
comendo, eu pedia um copo de água e bebia. Quando foi meio dia, eu voltei lá e
falei pro cara: “Rapaz, não tem emprego e eu não tenho dinheiro pra nada.
Acabou a minha condição”. Ele disse: “Olha, deixa a boroca (bolsa) aí. Você
trabalha de estivador?”. Eu respondi: “Trabalho de qualquer coisa”. Arrumou uma
carreira com oitocentos sacos de adubo, pra descarregar na fazenda perto. Aí, o
que acontece? Antes do meio da carreta, eu já não dei mais conta. Tinha uma
garrafa de água assim, e eu bebi a água e fui me esmorecendo, me esmorecendo,
até que eu arriei mesmo. Contei que fazia quatro dias que não comia. Quando
terminaram de botar o adubo, a mesa tava lá, pronta pro pessoal jantar. Queria
que a senhora visse, de tudo. E botei duas colheres de arroz assim, botei um
pedacinho de carne no prato. Mexi assim, comi a metade. Aí saí pra beber um
copo de água. E vomitei tudinho. Na farmácia tomei uma injeção. Aquela injeção
pra fortalecer. Fiquei lá um mês e pouco trabalhando. Mas nunca perdi a
resistência e nem a esperança. Mas, muié, o que faz eu perder tudo é na
situação que eu tou. Com que força eu vou trabalhar, agora que tou velho e
doente? Eu não tenho mais resistência pra começar tudo de novo. E não sei
pedir.
Quando
reencontrou o rio, agora não mais para violentá-lo, mas para colher os peixes,
João encontrou-se.
A virada: João e Raimunda se
descobrem ricos
A virada do
milênio marcou a descoberta da floresta. Não como um contra ou um fora, mas
como parte. Depois de peregrinar pelo que era chamado de progresso e só
encontrar tribulação, João e Raimunda foram acolhidos por uma das centenas de
ilhas do Xingu. Aprenderam a extrair o alimento da floresta, a plantar sem
violar a terra, a pescar e a navegar no rio. Adotaram a vida dos ribeirinhos
pescadores e agroextrativistas, que há séculos vivem em dupla casa, uma na rua,
uma na ilha ou na beira do rio. “Rua” é como o povo que mora na floresta chama
a cidade, o que já é muito revelador de sua visão de mundo. A casa na rua é
para a venda dos produtos na feira, para resolver as oficialidades da
burocracia, que sempre são muitas, para buscar tratamento para doenças mais
enroscadas, para o estudo dos filhos; a casa na ilha ou na beira do rio é onde
se ganha a vida e se vive livre. Pela primeira vez, João e Raimunda sentiram
que haviam chegado. Tinham um lugar, nada lhes faltava. A fome era um passado.
Trataram de enraizar-se
fundo. A vida era assim:
– Tinha
nossa casa na ilha, de onde a gente trazia o peixe, o feijão, o milho, o
abacaxi, a banana, o murici, a cebolinha, o cheiro verde, a chicória. Tudo isso
era fonte de renda. Tudo isso eu fazia dinheiro. Do rio, eu tirava a cédula
maior. Vinha pra cidade com as coisas que plantava, e com o meu peixe, e já
cheguei a fazer mil e duzentos reais na semana, em dinheiro livre. Eu mesma
ficava mais na rua, porque comecei a me envolver com movimento social. Meu
marido morava lá na ilha. Quando ele vinha com o peixe, no sábado, eu vendia o
peixe na feira e voltava com ele. E vinha de lá na quarta-feira no barco de
linha. Ficava aqui esperando ele de novo com o peixe. A nossa rotina era essa.
Nas férias, final de ano, eu ficava lá, com ele. Então, a nossa vida era um
vaivém. Quando você vive no rio, você entende o rio que nem ele lhe entende.
Você respeita o limite dele, que ele respeita o seu. É uma parceria entre você
e as águas. É assim, ó: o remo é a minha caneta e o rio é a minha lousa.
Primeiro
João e Raimunda compraram uma palafita nos baixões de Altamira, depois
construíram uma casa de alvenaria. Raimunda faz questão de esclarecer que mesmo
na palafita ela deu jeito de ter suíte, porque gosta muito de suíte.
– O sonho de
uma casa na terra firme era muito longo. Ter um casa no chão. O rio nos deu.
Consegui comprar minha geladeira, consegui comprar minha televisão, meu fogão a
gás, meu botijão. Consegui comprar a minha cama, o meu colchão do jeito que eu
queria. Eu fui na loja, comprei, porque eu sabia que o rio ia me dar retorno,
eu ia poder pagar a prestação. O rio era meu banco, era meu cartão de crédito,
era meu supermercado, era a minha farmácia, a minha loja. Tudo eu tirei do rio.
Tudo o que eu tenho hoje veio de dentro do Xingu. O que o rio não dava, a terra
dava.
Já não eram
mais migrantes, João e Raimunda haviam finalmente chegado. Raimunda então
entranhou-se nas lutas de Altamira e da Amazônia. A das mulheres, a da terra, a
do meio ambiente. Filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), tornou-se
militante de movimentos sociais. Ela agora pertencia. Seu verbo não era mais um
ir, mas um ficar. Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o poder, pela
primeira vez, em 2003, os movimentos sociais de Altamira e da região acreditaram
que o projeto da hidrelétrica de Belo Monte estaria sepultado de vez.
Desde os
anos 70, na ditadura civil-militar, a usina no Xingu era uma ameaça que
ressurgia a cada governo, mesmo na redemocratização do país. No passado, a
Eletronorte a chamou de Kararaô, palavra que é um grito de guerra na língua dos
Kaiapó. Em 1989, produziu-se a cena histórica: a índia Tuíra encostou um facão
no pescoço do diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes. Tuíra
demonstrava no gesto a resistência à barragem de um rio mítico, que era vida,
cultura, espiritualidade e sustento para os povos tradicionais. A fotografia
correu mundo. A Eletronorte recuou e trocou o nome da usina para Belo Monte.
Nenhum governo conseguiu tirar Belo Monte do papel. E então Lula assumiu o
poder com o voto da maioria das lideranças e dos militantes dos movimentos
sociais da Amazônia. Um trabalhador, um sofredor, um homem do povo que conhecia
a dor do povo. A partir daquele momento, Raimunda achou que a paz tinha
chegado. O talvez do pai virava certeza.
É nesse
momento, e não em qualquer um, que Sofia entra na vida de Raimunda. E torna-se
sua mais íntima companheira. “É uma neguinha, cabelinho ruim, amarradinho”,
descreve Raimunda. Sofia é uma boneca, a primeira boneca da vida de Raimunda.
Ela estava num encontro de mulheres, em Belém do Pará, quando viu um homem
vendendo bonecas na rua. Sofia custou cinco reais. Raimunda achou caro. Mas já
tinha se encantado. Deu a ela esse nome por conta de uma história contada por
uma freira de Manaus, sobre uma alemã chamada Sofia, que havia sido uma criança
pobre e, ao crescer, criou uma instituição para cuidar de crianças pobres.
Sofia agora cuida de Raimunda. E já acompanhou-a na Marcha das Margaridas, das
trabalhadoras rurais, extrativistas, indígenas e quilombolas, na Rio+20, por
todo canto. Escondida, porque João garante que “vão bulir” com Raimunda se
descobrirem que ela carrega uma boneca na bolsa, ela, uma avó de 15 netos. “A
Sofia significa para mim uma paz profunda, que não tem resposta”, poetiza
Raimunda.
É no momento
em que encontra um lugar que Raimunda pode ter até uma boneca.
– Eu não fui
criança, porque trabalhei muito. Também não tive juventude. Por isso não dou
minha velhice. Não abro espaço pra ninguém. Minhas filhas dizem que tou ficando
perturbada. Nada, eu tou é vivendo.
Demorou
alguns anos para que Raimunda e tantos outros compreendessem que haviam sido
traídos. Lula era um sindicalista do ABC paulista, sua visão de mundo era a da
indústria, do concreto, da cidade grande. Progresso, para um operário, era ter
carro, TV de tela plana, churrasco no fim de semana. Progresso, para um país,
era transformar a Amazônia em soja e pasto pra boi, exploração de minérios por
grandes mineradoras para exportação de commodities(matérias-primas).
Lula não tinha o menor conhecimento sobre esse outro viver, o da floresta.
Mudança climática não fazia parte do seu universo. Seu projeto para a Amazônia
era o mesmo da ditadura, que considerava a região uma questão de segurança
nacional, um deserto de gente e um corpo para espoliação. A única voz no
governo federal e no PT com alguma força para se contrapor a essa visão
estacionada no século 20 era Marina Silva, ambientalista que se criou nos
seringais do Acre e teve como um dos mentores o líder Chico Mendes, assassinado
em 1988 por sua luta pela floresta. Marina só suportou a pressão até 2008,
quando deixou o Ministério do Meio Ambiente e logo depois o PT.
Raimunda e
as principais lideranças do Xingu perceberam tarde demais que somente Lula
poderia tirar Belo Monte do papel. Ao trair os compromissos de campanha, por um
lado o PT no poder desmobilizou os movimentos sociais, por outro os cooptou. A
resistência, que por décadas foi coesa, rachou. O setor elétrico atravessou
governos como um feudo do coronel do Maranhão, o oligarca José Sarney (PMDB).
Um exemplo: José Antônio Muniz Lopes, o homem que teve o facão de Tuíra no
pescoço, em 1989, é hoje, em 2015, o presidente do Conselho de Administração da
Eletronorte e o diretor de transmissão da Eletrobras, já tendo ocupado diversos
outros cargos de comando, nas décadas de 90 e 2000. “A Eletronorte é a mesma
antes e agora”, resume Raimunda. “Só mudou a coleira, o cachorro é o mesmo.”
Mas só o PT e Lula teriam força política para minar a resistência e fazer de
Belo Monte uma realidade de toneladas de concreto no meio do Xingu.
Essa é a
arquitetura que se mostrou capaz de consumar uma obra gigantesca e
ultrapassada, na aliança entre os grupos que atuam desde o passado e o grupo do
presente, uma alquimia que talvez a Operação Lava Jato possa começar a
desvendar. São também esses interesses que atravessam governos que podem
explicar por que Belo Monte vai se tornando fato consumado, mesmo violando a
Constituição, com um governo cada vez mais fragilizado e parte dos donos das
empreiteiras que a constroem presa por corrupção. Belo Monte é o nó que, quando
totalmente desfeito, revelará o Brasil.
Para
Raimunda, restou uma conclusão. O PT, para ela, não significava um partido a
mais no poder, mas um projeto político que se confundia com sua busca de um
lugar no país – e com a crença de que esse lugar existia. O simbolismo para ela
era uma literalidade. Ao sentir-se traída, desacreditou:
– Se o Lula
visse esse povo que o elegeu, jamais faria Belo Monte. É difícil pra mim falar
isso, mas eu votei no Lula e votei na Dilma. E eles nos traíram. Porque o Lula
disse claramente que Belo Monte não ia sair. E depois a Dilma falou que Belo
Monte era preciso, que não tinha como voltar atrás. Eles são traidores da
humanidade. Ah, meu pai do céu! Se eu visse eles, eu não diria. Eu avançaria na
cara deles tudo, pra tomar vergonha. Que presidente é esse que mente pra nação?
Eu não voto é mais nunca. Se eu não precisasse do título de eleitor, eu
rasgava. Como eu preciso dele, não posso rasgar. Meu plano é não botar mais meu
voto na urna. Eu vou lá e justifico. Eu não sei se é certo, mas esse é o meu
plano.
Belo Monte é
onde o PT traiu não a classe média, mas sua razão de ser: os mais frágeis e os
mais desprotegidos, os historicamente arrancados da sua terra, como os
indígenas, os historicamente exilados dentro do próprio país, como Raimunda e
João. É nesse ponto do mapa, a última fronteira para quem palmilhou o Brasil
inteiro em busca de paz, que o discurso petista em defesa dos pobres gira em
falso há muito mais tempo. Mas como a Amazônia é um longe para o centro-sul,
essas vozes foram ignoradas.
Raimunda
quer falar:
– Eu vou
dizer mais uma coisa: o rio tá doente, os peixes tão noiados, tão tudo grogues
por causa do pouco oxigênio. Ninguém tem noção do tamanho desse monstro aí no
Xingu. Ninguém sabe o que vai acontecer quando começar a funcionar. Ninguém.
Interrupção: “Belo Monstro” barra
a vida de Raimunda e de João
Depois de
travar as pernas e a fala no escritório da Norte Energia, João não voltou mais
a ser o mesmo homem que varou Brasis e fomes. Em maio de 2015, Raimunda o levou
para a capital, Belém do Pará, em busca de tratamento. Só voltariam de lá no
fim de agosto. Nesse período, as filhas trataram de fazer a mudança da casa na
cidade, porque sabiam que a mãe não permitiria se estivesse em Altamira,
disposta a resistir até que o valor fosse justo. Quando Raimunda e João
voltaram, já não tinham mais casa “na rua”. Em troca, tinham recebido 84 mil reais,
valor insuficiente para comprar uma casa do mesmo tamanho e qualidade, e em
localização similar. Raimunda reciclou 3.500 tijolos das casas demolidas dos
vizinhos para começar a sua num loteamento fora da cidade. A canoa São
Sebastião, nome dado em homenagem ao santo injustiçado, flechado tantas e
tantas vezes, tornou-se um monumento à insanidade, objeto deslocado nos fundos
da casa, em terra firme e a quilômetros do rio. Raimunda planeja fazer dela um
banco para visitas quando a casa ficar pronta.
Dos três
cachorros que viviam com João e Raimunda na ilha, dois não suportaram viver
amarrados na cidade e morreram. Barão do Triunfo, um cachorro grande, mestiço
de Fila, que se instalava na proa do barco para cuidar da casa na ilha, quando
os donos estavam fora, morreu primeiro. “Dei esse nome porque ele era um
lorde”, explica Raimunda. Xena, uma pitbull que ganhou o nome por ser “tão
autoritária quanto a princesa”, personagem de filmes e de animação, foi a
segunda a amanhecer morta. “Eu não podia deixar eles soltos na rua, porque na
cidade eles são violentos. Mas não sabia que iam morrer. Se soubesse, tinha
deixado eles morrerem soltos, pra morrer livres. Morreram na coleira”, lamenta
uma Raimunda culpada. “Eu mesma não sei se um dia vou me libertar dessa coleira
que a Norte Energia me botou. Vivo errando, me perdendo, indo pra uma casa que
não existe mais. Deus não deu asas pra cobra porque ela já tinha veneno. Essa
Norte Energia tem os dois, asas e veneno.” O único que restou foi o vira-lata
Negão, “um cachorro que não se emociona assim tão fácil”. Negão, sem nome de
princesa nem de barão, é um sobrevivente. Como Raimunda.
Ela
documentou em fotos e vídeos o “antes, o durante e o depois de Belo Monte”.
Assim, pode provar tudo o que diz. No “durante”, duas de suas filhas chegaram a
trabalhar na construção da hidrelétrica, uma na cozinha, outra na mecânica.
Raimunda peleou com elas. “Isso é que nem dinheiro de jogo, vocês não podem
fazer isso comigo”, esbravejou. “Demorou, mas libertei minhas filhas.” De
máquina fotográfica cor de rosa em punho, registrou até a Força Nacional
protegendo Belo Monte do povo: “Veja bem, eles acham que sou eu a ameaça!”.
A
documentação de Raimunda é um percurso de memória, ao mesmo tempo brutal e
poético. Ela vai narrando a sua travessia enquanto mostra as imagens, ela vai
narrando a sua travessia.
A vida antes
de Belo Monte:
– Documentei
toda a minha história esperando o futuro, e o futuro taí. Antes de Belo Monte,
a minha história era essa. Ó, a minha casa. O meu plantio, o meu pomarzinho,
tudo limpo. Tudo varridinho, direitinho. Aqui o meu velho com a roça dele,
limpando o chão. Aqui é capim-de-cheiro pra remédio, pra dor de barriga, essas
coisa assim. Aqui é o murici carregado, é uma outra fase. Olhe esse pé de
murici! Eles queimaram. Tá tudo queimado. Aqui, amigos me visitando. Macaxeira,
muito bonito de se ver. Olhe. O meu cachorro, o Negão, aqui. Então, isso aqui,
pra eles, não é nada. Pra mim era tudo. O meu amigo é esse aqui que eu tou
falando, que era o pé de pinhão. Chegava em casa era o primeiro que eu via. Meu
pinhão pajé. Olhe a beira do rio. Aqui, ó. O meu outro cachorro, que morreu só
de tristeza porque não era acostumado com coleira, e eu amarrei. Aqui a gente
vai parar.
A vida
durante Belo Monte:
– Agora vou
lhe mostrar durante Belo Monte. Durante o processo de vaivém, vaivém, vaivém.
Aqui é o meu barco. Aqui, ó. Esse aqui é o meu fogão a gás, à lenha... A sobrevivência
do rio é muito gostosa. Pra quem sabe o que é isso. Pra quem não sabe, não dá
valor. Meu marido roçando... Óia. Plantando macaxeira, que ia chegar a chuva,
então já tava se prevenindo. O meu cachorro, que já não tenho mais...O outro
cachorro, também morreu. O meu velho. São 38 anos de convivência, sempre
juntos. Eu corto, e ele planta. Hoje ele tá sentado numa cadeira, esperando
sair minha casa. Aqui o final de semana em que eu cerquei, por causa das
galinhas, pra fazer um plantio de cebolinha, mas não deu certo, porque as
galinhas são mais rápidas do que eu. Esse aqui é meu velho branco de olho azul,
um gato. Que hoje tá... Eu digo pra ele que ele não tá inútil, porque eu ainda
vejo ele na minha frente. Então, ele ainda é meu gato. E tem um outro ângulo da
ilha, aqui, que é onde ela tá produtiva. Deixa eu lhe mostrar aqui...As plantas
que foram queimadas. As que eram mais próximas da casa eles queimaram, acabaram
com tudo. Aqui é no inverno. Ó, a gente planta e colhe durante a cheia, por
conta que a cheia, ela vem, mas ela tem a data certa. Olhe o meu canteiro, as
cebolinhas...Cheiro verde... Eu tirando o tomate, o gengibre, que é pra dor de
cabeça, dor de barriga e bucho inchado. Remédio caseiro. E aqui eu, dentro
d’água, que eu adoro água, também. Aqui, eu com medo de uma cobra, que ela
tinha ido na minha frente, eu fui atrás dela. Mas ela foi mais rápida que eu,
foi embora. A gente dorme na rede durante o inverno. O meu neto, que ia pra
ficar umas férias comigo. Meu pé de capim-santo, ele também não morre na água,
ó, fica um tempo submerso. Só se cobrir essas folhinhas aqui que ele morre.
Mas, se ele respirar, ele não morre. Minha casa, que pra Norte Energia não era
uma casa. Bananeira... ó, os cacho de banana. Tudo carregado. A macaxeira toda de
pé. Olha lá o milho. Aqui, ó. O milho todo carregado. Aqui, eu com medo da
cobra de novo. Ela com medo de mim, eu com medo dela. Então, isso aqui... é o
fim de uma história da vida de uma ilha, que pra mim é muito importante. Porque
eu não vivia na ilha. Eu vivia dela, e ela vivia de mim. Porque a gente era
como amiga. Abacaxi. Mais milho verde. Ó, o milho lá atrás. Olha esse cacho de
banana, o tamanho. Deixa eu pegar pra você ver. Essa aqui, olha, além de ser
uma fruta pra alimentação, ela é um antídoto contra inseto. Tem o pescador que
vive na ilha, e eu vivia da ilha. Cultivava ela, e ela me cultivava. A gente
era amiga. Entendeu? Deixa eu lhe mostrar uma foto aqui em que o rio se
despede, vai embora.
A vida
depois de Belo Monte:
– Aqui sou
eu, pensando... Quando será esse dia, que eu não quero sair? O meu genro
dizendo que já era, não tem mais jeito pra fazer nada, é isso mesmo. E eu
falando pra ele que eu ainda tinha esperança. Aqui eu dizendo pras minhas
plantas que eu ia, mas eu voltava. Mas era só história, que eu não voltei. Meu
véio pensando se voltava lá um dia, ou não: “Será que eu ainda volto aqui?”. Eu
falei: “Não sei, Deus que sabe”. Óia eu olhando pro horizonte, pedindo a Deus
que deixasse a gente ficar na ilha. Meu marido chorando. Isso aqui tá tudo
queimado. A Norte Energia queimou. Olhe aí. Toda aquela beleza que eu lhe
mostrei, aquele murici, aquela coisa mais linda...Tá aqui, sapecado. Eu fui lá,
registrei de novo. Registrei o antes, o durante e o depois de Belo Monte. Aqui,
ó. Não sobrou nada. Diz que um crime sempre deixa uma prova. Eles deixaram.
Aqui, ó. A impunidade só existe porque a Justiça não se manifesta. Enquanto a
Justiça tiver com aquela venda na cara, que é aquela estátua que fizeram lá em
Brasília, é assim, ó. A Justiça só vê quem ela quer. Quem não quer, ela não vê.
Raimunda
quer escrever um livro. Já tem o título: “História de um pescador: antes,
durante e depois de Belo Monte”. Começa a acreditar que o único lugar seu será
a sua cova. Já encomendou a mortalha: “de cetim, em branco da paz”.
Terceiro ato: o impasse
Raimunda
desenhou a planta da casa nova com o cuidado de que ela seja bem diferente
daquela que foi destruída. “Eu não quero mais porta que entre pela frente,
quero uma porta que entre de lado, porque quero que meu futuro seja diferente.
Então, comecei pela infraestrutura da casa”, explica. “Quando eu entrar nessa
casa hoje, eu não quero chegar pensando que tou na outra.” Raimunda marcou toda
a história na casa nova, ainda em construção: as paredes são verdes, “porque é
a esperança no futuro”, os rodapés são marrons, para mostrar “a barreira da
barragem”, as grades das janelas são pretas, “em sinal de luto”. “Tudo na minha
vida tem uma história”, ela reforça. E tem.
Raimunda é
uma criadora de sentidos, e por isso consegue seguir a vida. João, não. No dia
em que paralisou, ele perdeu a capacidade de criar sentidos. Por dentro, ainda
está travado. João viu demais, e o excesso de lucidez o cegou. Agora, não
consegue voltar. “Perdi a ponta da meada. Estou dentro dessa casa hoje, mas de
fato, toda hora, eu não tenho casa. Eu não tenho casa. Entendeu? Eu tou fora.
Me perco. Não sei onde tou. Perdi o rumo de tudo”, inflama-se, os olhos de rio,
mas um rio de amazônica tempestade. “Estou pior que a Dilma, porque ela perdeu
o rumo do país, mas eu perdi o rumo de casa.”
É este hoje
o impasse entre João e Raimunda.
Raimunda
diz:
– Sou uma
pindova, uma palmeira muito perseguida lá no Maranhão. Quanto mais casca Belo
Monte arranca de mim, mais eu me renovo. Fiquei queimada por dentro, como a
minha ilha, mas me renovo. A pindova é assim, ninguém mata ela com fogo nem
arrancando nem com nada. Ela volta. Como eu. Já venho de uma naturalidade de
pessoas muito sofridas, o sofrimento faz parte da nossa história. Não vou
morrer porque peguei porrada. De jeito nenhum, sou descendente de escravos e de
uma etnia indígena quase extinta. Então, venho de um povo sofrido lá da base.
Sou pindova e quero viver.
João
responde, e é como se os dois estivessem num diálogo de repentistas:
– Mas
eu não sou assim. Quando eu perdi a ilha, eu perdi a minha vida. Eu perdi a
linha. Parou ali, entendeu? Daqui pra frente eu só vejo escuridão na minha
vista. Eu não vejo mais aquele mundo limpo. Eu só vejo escuridão. Fico aqui,
olhando pro mundo, procurando a mim mesmo. Quem sabe me responder essa procura?
Ninguém. O buraco na minha vida, o buraco na minha vida...
O impasse
atingiu seu ápice em 4 de setembro de 2015. Nessa data, João “enlouqueceu”
dentro de casa. Raimunda conta:
- O João
chamou a família pra ir lá na ilha queimada. Pra servir de mártir. Ele quer se
matar lá, como protesto. Eu disse que não ia nem deixava ele ir. Se ele se
matar lá na ilha, avisei que deixo ele lá, pra ser comido pelos urubus. Por
isso tirei a canoa dele. Qualquer parte do rio ele vai a remo, nadando. Mas na
rua ele se perde.
João encerra
seu repente brutal:
– Eu quero
que o mundo saiba que Belo Monte me matou.
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