sábado, 26 de setembro de 2015

XILOGRAVURA: A ARTE EM MADEIRA

A arte da xilogravura







Publicado por Anna Anjos,
é ilustradora e artista plástica. Atua para publicidade, editorial, moda, mobiliário e cenografia. Apaixonada por música, mitologia, folclore e antropologia cultural. | www.annaanjos.com


Saiba mais sobre a xilogravura, uma das mais antigas técnicas de impressão do mundo.



xilogravura é um processo de impressão que utiliza como matriz um carimbo de madeira. A superfície da placa recebe uma cobertura de tinta (normalmente composta de óleo e fuligem) e é então impressa sobre o papel. Barata e bastante simples em sua execução, esta técnica permite aos gravadores o desenvolvimento de suas próprias ferramentas de corte para os entalhes na matriz.
Há indícios de imagens egípcias que já se valiam da técnica da xilogravura (por volta do século 6 ou 7). A primeira imagem datada, entretanto, é o Sutra do Diamante. Trazendo um dos discursos do Buda, ele foi encontrado em uma caverna na região leste do Turquistão e impresso na China por Wang Chieh, por volta do ano 868.


"Sutra do Diamante", xilogravura de oração Budista impressa na China, 868
Em 1418, a técnica da xilogravura foi introduzida na Europa através da Espanha islâmica. Naquele período a xilo era utilizada principalmente para a impressão de cartas de baralho, ilustrações para livros (Iluminuras) e também para confeccionar documentos religiosos. A chegada das coloridas gravuras japonesas à Europa revolucionou a técnica da xilogravura que, por sua vez, exerceu grande influência sobre as artes do século 19.


Matriz para xilogravura, Biblioteca Nacional de Paris

Países como Itália, Alemanha, França e Holanda tornaram-se então os centros de excelência em xilogravura, onde a técnica influenciou fortemente a produção artística. Artistas como Albrecht Dürer, Lucas Cranach, Albrecht Altdorfer, Thomas Bewick e Hans Burgkmair foram alguns dos expoentes europeus que utilizaram a xilogravura como técnica de impressão de suas obras.

"Adão e Eva no Paraíso" (Adam and Eve in Paradise), xilogravura de Lucas Cranach, 1509

"O Rinoceronte" (Rhinocerus), xilogravura de Albrecht Dürer, 1515
Neste período apenas uma pequena parcela da população europeia sabia ler e escrever. Os livros eram raríssimos e caros, pois tinham de ser copiados a mão, um a um. Assim, as feiras semanais próximas aos vilarejos eram a forma mais eficiente tanto para a manutenção econômica das famílias, como também para incentivar a socialização e conhecimento de novas histórias. Acompanhados por um alaúde (parente antigo dos violões e violas que conhecemos atualmente), os jograis e menestréis começavam a contar histórias de todo tipo: desde aventuras, romances, até lendas de reis, como Carlos Magno e seus doze cavaleiros. Para que pudessem decorar todas as músicas, as rimas ajudavam os artistas a se lembrar dos versos seguintes, até chegar ao fim da história. E foi pela popularização dos relatos orais recitados por estes artistas ambulantes que nasceu a literatura de cordel. A origem do termo cordel se deve a forma como tradicionalmente os folhetos de qualidade rústica eram expostos à venda em Portugal, geralmente pendurados em cordas e barbantes.
Com a invenção da prensa móvel por Gutenberg (o primeiro livro impresso foi a Bíblia, por volta de 1450) passou-se a combinar textos impressos a ilustrações desenvolvidas em xilogravura. Entretanto, apesar de tornar o processo de ilustração muito mais simples e barato, a partir de 1500 a xilo começou a perder espaço com o surgimento da calcografia (impressão em metal), que permitia a obtenção de traços mais delicados através de linhas menos espessas. Com a Revolução Industrial e os avanços tecnológicos na área da fotografia, a xilogravura viu-se em desvantagem, pois o uso de substâncias químicas em contato com a matriz de madeira não assegurava a mesma longevidade da matriz de metal.

"A Grande Onda de Kanagawa" (The Wave), xilogravura de Katsushika Hokusai, entre 1830 e 1833

"Pavão" (Peackock), de Bairei Kono, 1899

"Madonna" (Liebendes Weib), de Edward Munch, 1895
Condenando ao desemprego os xilógrafos de reprodução, a técnica de xilogravura então ressurgiu no campo artístico sendo utilizada como uma nova expressão plástica por artistas como Edvard Munch, Paul Gauguin, Matisse e o grupo alemão expressionista Die Brücke.

PARTE 2



Rótulo da cachaça "Engenho Açoriano", xilogravura, por volta de 1700
A xilogravura adentrou o Brasil através da colonização portuguesa. (Além desta técnica estar intimamente ligada à tradição cordelista brasileira, durante muito tempo a xilo foi também utilizada no Brasil para a confecção dos primeiros rótulos de cachaça, sabonetes e doces). Os primeiros poetas populares que narravam as sagas da literatura de cordel começaram a surgir a partir de 1750. Analfabetos em sua grande maioria, eles recitavam suas histórias nas feiras ou nas praças, às vezes, acompanhadas por música de violas, muito similar à tradição europeia.


"Os Dez réis do Governo", folheto raro do poeta Leandro Gomes de Barros, 1907

Os primeiros cordéis brasileiros eram publicações de folhetos de versos de no máximo oito páginas, impressas em papel barato. Este tipo de publicação popularizou-se no período da inserção da indústria gráfica no sertão, isso por volta da década de 1960-70. A fotografia não conseguia penetrar no imaginário sertanejo e isso fez a xilogravura reinventar-se, transformando-se na técnica que melhor retratava o fantástico. A imagem acima refere-se a um folheto muito raro datado do início do século 20. No texto, seu autor Leandro Gomes de Barros (considerado por muitos com o pioneiro do cordel no Brasil) abordava a abusiva cobrança dos impostos durante a República Velha.



"A Perna Cabeluda - Prenúncios da Besta-Fera", de Guaipuan Vieira



"O Encontro de Lampião com a Negra dum Peito Só", de José Costa Leite


"Um Mosquito no Motel", de José Costa Leite
Devido ao desenvolvimento de técnicas de impressão mais modernas, assim como aconteceu na Europa, a xilogravura aplicada ao cordel começou a perder terreno no Brasil. Nas artes plásticas, os gravuristas brasileiros Lasar Segall e Osvaldo Goeldi foram os pilares iniciais que desenvolveram a xilogravura artística. Através de pesquisas sobre o cordel (sua origem e, principalmente, sua importância no contexto sociocultural brasileiro) diversos estudiosos e folcloristas como Câmara Cascudo trouxeram um olhar mais atento sobre a literatura cordelista. A partir de então, diversos outros gravuristas surgiram, como Gilvan Samico, Carlos Scliar, J. Borges, José Lourenço, Mestre Noza, Abraão Batista e José Costa Leite. Em cem anos, o Brasil publicou cerca de 20.000 folhetos de cordel, embora em pequenas tiragens (entre 100 e 200 exemplares cada).

"Abandono", xilogravura de Oswaldo Goeldi, 1937

"Feriado", xilogravura de Lasar Segall, 1920
Na rica produção cordelista nordestina há uma grande variedade de temas, que refletem a vivência popular, desde problemas atuais, além de contos e lendas medievais. Um bom exemplo do sincretismo cultural presente na essência da literatura de cordel brasileira é a música Pavão Mysteriozo, do cantor e compositor cearense Ednardo, que tem como referência a obra cordelista O Romance do Pavão Misterioso, escrita ao final dos anos 1920 por José Camelo de Melo Rezende. Em 1976, a música de Ednardo (vídeo abaixo) foi trilha sonora da novela Saramandaia, de Dias Gomes, veiculada pela Rede Globo. A obra em cordel de Pavão Misterioso foi inspirada no conto popular do Oriente Médio Mil e Uma Noites.

"As Mil e Uma Noites" - Scheherazade e Xeriar (Shariar)

"O Pavão Misterioso em Quadrinhos", de José Camelo; ilustrações de Sérgio Lima, Editora Luzeiro, 2010
Mais de uma década após o sucesso de "Saramandaia", foi fundada em 1988 a ABLC (Academia Brasileira de Literatura de Cordel), no Rio de Janeiro. O objetivo era reunir os expoentes deste gênero no Brasil. O poeta Gonçalo Ferreira da Silva capitaneou a fundação no Rio que, com apoio da Federação das Academias de Letras no Brasil, culminou com a aquisição de sede própria.

"Mudança de Sertanejo", de J. Borges, 1999

"O devorador de estrelas", de Samico, 1999
O projeto História do Brasil em Cordel (EDUSP, 1998) reuniu mais de 300 folhetos que narram em Cordel à história de nosso país. O autor Mark Curran traz uma reflexão sobre a temática cordelista, sua história, estrutura formal e seus principais autores. Tendo a literatura de cordel do Brasil como o reflexo dos anseios e sonhos do povo, vemos que a adoção da xilogravura como técnica de impressão destes folhetos no Brasil não se deu apenas por sua relativa facilidade de execução, como também por ser esta a técnica que permitiu reinventar epopeias, criando universos fantásticos que até hoje ratificam nossa fusão cultural e riqueza do folclore popular.



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