A arte da xilogravura
Publicado por Anna Anjos,
é ilustradora e artista plástica. Atua para publicidade, editorial,
moda, mobiliário e cenografia. Apaixonada por música, mitologia, folclore e
antropologia cultural. | www.annaanjos.com
Saiba mais sobre a xilogravura,
uma das mais antigas técnicas de impressão do mundo.
A xilogravura é
um processo de impressão que utiliza como matriz um carimbo de madeira. A
superfície da placa recebe uma cobertura de tinta (normalmente composta de óleo
e fuligem) e é então impressa sobre o papel. Barata e bastante simples em sua
execução, esta técnica permite aos gravadores o desenvolvimento de suas
próprias ferramentas de corte para os entalhes na matriz.
Há indícios de imagens egípcias que já se
valiam da técnica da xilogravura (por volta do século 6 ou 7). A primeira
imagem datada, entretanto, é o Sutra do Diamante. Trazendo um dos
discursos do Buda, ele foi encontrado em uma caverna na região leste do
Turquistão e impresso na China por Wang Chieh, por volta do ano 868.
Em 1418, a técnica da xilogravura foi
introduzida na Europa através da Espanha islâmica. Naquele período a xilo era
utilizada principalmente para a impressão de cartas de baralho, ilustrações
para livros (Iluminuras) e também para confeccionar documentos religiosos. A
chegada das coloridas gravuras japonesas à Europa revolucionou a técnica da
xilogravura que, por sua vez, exerceu grande influência sobre as artes do
século 19.
Países como Itália,
Alemanha, França e Holanda tornaram-se então os centros de excelência em
xilogravura, onde a técnica influenciou fortemente a produção artística.
Artistas como Albrecht Dürer, Lucas Cranach, Albrecht Altdorfer, Thomas Bewick
e Hans Burgkmair foram alguns dos expoentes europeus que utilizaram a
xilogravura como técnica de impressão de suas obras.
Neste período apenas uma pequena parcela da
população europeia sabia ler e escrever. Os livros eram raríssimos e caros,
pois tinham de ser copiados a mão, um a um. Assim, as feiras semanais próximas
aos vilarejos eram a forma mais eficiente tanto para a manutenção econômica das
famílias, como também para incentivar a socialização e conhecimento de novas
histórias. Acompanhados por um alaúde (parente antigo dos violões e violas que
conhecemos atualmente), os jograis e menestréis começavam a contar histórias de
todo tipo: desde aventuras, romances, até lendas de reis, como Carlos Magno e
seus doze cavaleiros. Para que pudessem decorar todas as músicas, as rimas
ajudavam os artistas a se lembrar dos versos seguintes, até chegar ao fim da
história. E foi pela popularização dos relatos orais recitados por estes
artistas ambulantes que nasceu a literatura de cordel. A origem do termo cordel se
deve a forma como tradicionalmente os folhetos de qualidade rústica eram
expostos à venda em Portugal, geralmente pendurados em cordas e barbantes.
Com a invenção da prensa móvel por Gutenberg
(o primeiro livro impresso foi a Bíblia, por volta de 1450) passou-se a
combinar textos impressos a ilustrações desenvolvidas em xilogravura.
Entretanto, apesar de tornar o processo de ilustração muito mais simples e
barato, a partir de 1500 a xilo começou a perder espaço com o surgimento da calcografia (impressão
em metal), que permitia a obtenção de traços mais delicados através de linhas
menos espessas. Com a Revolução Industrial e os avanços tecnológicos na área da
fotografia, a xilogravura viu-se em desvantagem, pois o uso de substâncias
químicas em contato com a matriz de madeira não assegurava a mesma longevidade
da matriz de metal.
Condenando ao desemprego os xilógrafos de
reprodução, a técnica de xilogravura então ressurgiu no campo artístico sendo
utilizada como uma nova expressão plástica por artistas como Edvard Munch, Paul
Gauguin, Matisse e o grupo alemão expressionista Die Brücke.
PARTE 2
A xilogravura adentrou o Brasil através da
colonização portuguesa. (Além desta técnica estar intimamente ligada à tradição
cordelista brasileira, durante muito tempo a xilo foi também utilizada no
Brasil para a confecção dos primeiros rótulos de cachaça, sabonetes e doces).
Os primeiros poetas populares que narravam as sagas da literatura de cordel
começaram a surgir a partir de 1750. Analfabetos em sua grande maioria, eles
recitavam suas histórias nas feiras ou nas praças, às vezes, acompanhadas por
música de violas, muito similar à tradição europeia.
Os primeiros cordéis
brasileiros eram publicações de folhetos de versos de no máximo oito páginas,
impressas em papel barato. Este tipo de publicação popularizou-se no período da
inserção da indústria gráfica no sertão, isso por volta da década de 1960-70. A
fotografia não conseguia penetrar no imaginário sertanejo e isso fez a
xilogravura reinventar-se, transformando-se na técnica que melhor retratava o
fantástico. A imagem acima refere-se a um folheto muito raro datado do início
do século 20. No texto, seu autor Leandro Gomes de Barros (considerado por
muitos com o pioneiro do cordel no Brasil) abordava a abusiva cobrança dos impostos
durante a República Velha.
Devido ao desenvolvimento de técnicas de
impressão mais modernas, assim como aconteceu na Europa, a xilogravura aplicada
ao cordel começou a perder terreno no Brasil. Nas artes plásticas, os
gravuristas brasileiros Lasar Segall e Osvaldo Goeldi foram os pilares iniciais
que desenvolveram a xilogravura artística. Através de pesquisas sobre o cordel
(sua origem e, principalmente, sua importância no contexto sociocultural
brasileiro) diversos estudiosos e folcloristas como Câmara Cascudo trouxeram um
olhar mais atento sobre a literatura cordelista. A partir de então, diversos
outros gravuristas surgiram, como Gilvan Samico, Carlos Scliar, J. Borges, José
Lourenço, Mestre Noza, Abraão Batista e José Costa Leite. Em cem anos, o Brasil
publicou cerca de 20.000 folhetos de cordel, embora em pequenas tiragens (entre
100 e 200 exemplares cada).
Na rica produção cordelista nordestina há uma
grande variedade de temas, que refletem a vivência popular, desde problemas
atuais, além de contos e lendas medievais. Um bom exemplo do sincretismo
cultural presente na essência da literatura de cordel brasileira é a música Pavão
Mysteriozo, do cantor e compositor cearense Ednardo, que tem como
referência a obra cordelista O Romance do Pavão Misterioso, escrita
ao final dos anos 1920 por José Camelo de Melo Rezende. Em 1976, a música de
Ednardo (vídeo abaixo) foi trilha sonora da novela Saramandaia, de
Dias Gomes, veiculada pela Rede Globo. A obra em cordel de Pavão
Misterioso foi inspirada no conto popular do Oriente Médio Mil
e Uma Noites.
Mais de uma década após o sucesso de
"Saramandaia", foi fundada em 1988 a ABLC (Academia Brasileira de Literatura de
Cordel), no Rio de Janeiro. O objetivo era reunir os expoentes deste gênero no
Brasil. O poeta Gonçalo Ferreira da Silva capitaneou a fundação no Rio que, com
apoio da Federação das Academias de Letras no Brasil, culminou com a aquisição
de sede própria.
O projeto História do Brasil em
Cordel (EDUSP, 1998) reuniu mais de 300 folhetos que narram em Cordel à
história de nosso país. O autor Mark Curran traz uma reflexão sobre a temática
cordelista, sua história, estrutura formal e seus principais autores. Tendo a
literatura de cordel do Brasil como o reflexo dos anseios e sonhos do povo,
vemos que a adoção da xilogravura como técnica de impressão destes folhetos no
Brasil não se deu apenas por sua relativa facilidade de execução, como também
por ser esta a técnica que permitiu reinventar epopeias, criando universos
fantásticos que até hoje ratificam nossa fusão cultural e riqueza do folclore
popular.
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