Cultura
Publicado por Constance von Krüger,
Sonhadora e pretensiosa. Dou-me a chance de tentar ser como quem admiro.
Só faço o que acho justo, me recuso a caminhar com a multidão. Tenho quase
orgulho em nadar contra a corrente. Sou feita de fragmentos: me reinvento todos
os dias como escritora, música, pintora, desenhista, poetisa, cineasta,
fotógrafa. Talvez eu não passe de uma iludida, mas, enquanto sonhar me for
permitido, é por essa estrada que eu vou.
Salvador Dalí e Pedro Almodóvar
- dois espanhóis influenciados pelo cavaleiro de La Mancha
DALÍ – UM QUIXOTE SURREALISTA
“Ninguém poderia
esquecê-la, uma vez vista”, é o que teria dito a esposa de Salvador Dalí
(1904-1989), pintor espanhol, ao ver, pela primeira vez, a obra “Los relojes
blandos” . Também conhecida como “La persistencia de la memoria”, a pintura
tornou-se marco mundial do surrealismo, e, mais que isso, é a estampa de uma
visão contemporânea acerca de um dos temas que mais intrigam o ser humano: a
memória e suas falhas, ou o esquecimento. A partir da repercussão sobre tal
obra, Dalí permitiu-se ter a personalidade pela qual seria conhecido
mundialmente: excêntrico e paranóico. A obsessão pela memória talvez seja o
elemento motivador da aura de louco que o pintor deixou-se parecer ter –
Salvador Dalí, o artista catalão, célebre por seus bigodes finos, compridos e
curvos, foi a encarnação simbólica de Quixote no século XX. Vejamos a razão.
A MEMÓRIA, O
ESQUECIMENTO E A LOUCURA NA OBRA DE CERVANTES
A trama escrita por
Cervantes retrata como a loucura, ou a perda da razão, pode advir de uma condição
de esquecimento. Escrito em dois volumes pelo escritor espanhol Miguel de
Cervantes (1547-1616), “El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha” narra as
aventuras de um fidalgo cuja vida era dedicada à leitura de histórias de
cavalaria. Perdendo a razão, Quixote sai em busca de aventuras semelhantes às
que leu, empreendendo assim uma jornada interessante e divertida, em que
encontra uma donzela para se apaixonar – Aldonza Lourenzo, a quem chamou de
Dulcinéia – e perigos a enfrentar – como os célebres (e inofensivos) moinhos de
vento. Em cima do cavalo Rocinante, Quixote conta com o fiel escudeiro Sancho
Pança, um personagem baixinho e barrigudo, montado em um jegue, e possuidor de
uma memória avantajada – clara antítese do protagonista.
A primeira frase do
romance deixa clara a intenção que tem o autor em desconstruir a noção de
memória. Mostrando desprezo pela exatidão dos fatos contados, Cervantes indica
que, em sua escrita e na personalidade de seus personagens, haverá esse mesmo
descaso pela precisão. “En un lugar de La Mancha, de cuyo nombre no quiero
acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lhaneza en
astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor.” (Em um lugar de La
Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um fidalgo
dos que tem lança em estaleiro, escudo antigo, cavalo magro e corredor galgo. –
tradução livre minha). Quixote é o retrato de um louco, Sancho cumpre o papel
da sobriedade. Entretanto, que seria tal loucura?
“Quixote morre no fim
da narrativa, pois não se pode enlouquecer duas vezes” – disse Saramago
(1922-2010), sobre o cavaleiro em questão, em um discurso em que afirmou ser
Quixote o personagem mais completo de toda a literatura. Sob essa perspectiva,
a loucura de Quixote caracteriza-se pela perda da razão. Ou, ainda falando-se
sobre a memória, Quixote esquece a razão, esquece sua real identidade, e
preenche essas lacunas com o sonho e o desvario. Ao entregar-se à fantasia,
Quixote abdica de sua sanidade mental em nome da identidade de cavaleiro e tal
fuga configura-se, pois sua consciência de ser um simples fidalgo era
insustentável, a realidade era enlouquecedora para ele. Quixote, então, esquece
a razão para não enlouquecer. Quando recobra a consciência de sua identidade
original, a razão já está perdida, e não se pode perder novamente o que não foi
encontrado. Entretanto, tal realidade continua sendo insustentável, e não há
saída que não a morte. Questiona-se, assim, a verdadeira noção de loucura –
seria o fidalgo Quixote o louco, por entregar-se às suas fantasias? Ou o seria
doido aquele que se prende à razão e à realidade? A loucura de Quixote, se
assim pode ser chamada, é apenas o esquecimento de uma condição que não lhe
aprazia.
Alguns elementos da
narrativa se fazem pilares a serem conhecidos para a abordagem da memória na
obra de Cervantes. Um deles é a personalidade de Sancho Pança, o fiel escudeiro
de Quixote. Dono de uma memória privilegiada, o personagem é o contraponto aos
desatinos do amigo. Quando questionado, evita expor a irracionalidade das
aventuras empreendidas por Quixote, entretanto, serve-lhe de suporte racional e
é quem não deixa que o fidalgo-cavaleiro se perca – mentalmente e fisicamente –
em suas jornadas. Outro elemento interessante é a substituição que Quixote faz.
Seu passado de fidalgo é eliminado e ele toma para si o pretérito daquilo que
leu – é a transição da memória do vivido pela memória do lido, e assim constrói
a personalidade que empunhará como uma espada para combater as injustiças mundanas.
ALMODÓVAR E SEU
PERSONAGEM QUIXOTESCO NO SÉCULO XXI
O filme “La piel que
habito” (A Pele Que Habito) , de 2011, dirigida por Pedro Almodóvar (1949) é
uma das obras cinematográficas contemporâneas de maior caráter psicológico. Em
resumo, um cirurgião plástico espanhol, Robert Ledgard (vivido por Antonio
Banderas), perde a mulher de forma traumática e, poucos anos depois, vê a filha
se suicidar após uma tentativa de estupro. O estopim propicia que o médico dê
vazão a um projeto doentio – Doutor Robert captura o estuprador de sua filha, o
faz refém, e, mediante uma cirurgia de mudança de sexo, inicia o processo que
culminará na total transformação estética do jovem Vicente, deixando-o idêntico
ao que fora sua esposa. Com esse empreendimento, o médico faz centenas de
intervenções cirúrgicas para cuidar de cada detalhe, ministra hormônios
femininos e, por fim, veste Vicente como Vera, cobrindo-lhe de vestidos e
maquiagem. Há, na história, a figura de Marilia, a governanta da imensa casa
onde o médico vive, e que, durante o filme, revela-se sua mãe. Marilia é como
um portal de Robert ao passado. Tendo criado a ele, e à sua filha morta, a
empregada é alguém que testemunhou cada evento que levou à criação de um louco
que fez rigorosamente tudo para trazer a esposa de volta à vida.
O caráter Quixotesco
de Robert é facilmente perceptível ao destacar os elementos de ambas as
histórias, e relacioná-los. Assim como Quixote, Ledgard é um homem solitário
cujo passado é atraente demais para que ele possa viver o presente. No caso de
Quixote, seu passado e sua memória situam-se nas histórias de cavalaria. Já
para o médico, é a lembrança da existência da esposa e da filha que o prende. O
projeto de transformar algo odiado em algo amado também está presente nas duas
narrativas – Quixote abandona o fidalgo que era para tornar-se cavaleiro
justiceiro; Robert transforma o motivador do suicídio de sua filha em dono do
corpo de sua amada esposa. Ambos recorrem à imagem da musa inspiradora como
encorajadora de seus empreendimentos – Dulcinéia e Vera são mulheres sem as
quais não existiriam, nas mesmas condições, Quixote e Robert. Assim como Sancho
é a memória e a razão do cavaleiro de La Mancha, também o é para o cirurgião
plástico Marilia, sua mãe e empregada, que guarda em si cada lembrança da vida
de Robert e o recorda, a todo tempo, o desvario que é manter um prisioneiro em
casa e transformar-lhe o corpo.
Quando o objetivo de
Robert é alcançado – a nova Vera está pronta – ela (ou ele) é a responsável por
matar-lhe com um tiro certeiro. Também é assim para Quixote. Sua projeção de
identidade ideal, seu projeto de vida, sua caminhada como cavaleiro é quem o
surpreende e, dando-lhe um lampejo de lembrança da vida anterior, o mata
subitamente. As obras de tais personagens são seus algozes.
LOS RELOJES BLANDOS
Como no quadro de
Dalí, a memória funciona como representação de um passado inatingível. Os
relógios derretidos da pintura mostram como a passagem do tempo deixa tudo
deformado – Quixote esqueceu-se de sua razão e a volta ao conhecimento lhe
tirou a vida. Sua memória, personificada em Sancho Pança, era deformada e
montava um jegue, ao passo que ele próprio, significando a “loucura” montava um
cavalo. O personagem de Cervantes, bem como ele próprio, desprezou a lembrança
e construiu o passado que quis. O excêntrico Dalí representou a memória como
algo persistente que insiste em nos fazer reviver o passado, mas que o deforma
com o correr dos ponteiros. O obsessivo Robert, de Almodóvar, é o homem que não
quer abdicar de sua lembrança, por isso reconstrói a memória em um protótipo
oco de significado. Três autores espanhóis – Cervantes, Salvador Dalí e
Almodóvar – criaram três personagens – Quixote, Dalí personagem e Dr. Robert –
que tentaram retratar o que a memória lhes lembrava – uma vida de cavalaria
apreendida dos livros, a noção da passagem do tempo e da deformação do vivido e
a mulher perdida, em um corpo qualquer. As três obras explicitam, portanto, a
mesma máxima – a memória é a representação de um passado que não existe mais e,
portanto, é inatingível.
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