Literatura
Publicado por Tatiana Nicz
“ Amo a natureza e as viagens (físicas e intelectuais)”.
"Ser ou não ser, eis a questão."
Essa é a pergunta mais famosa de Hamlet, que vem sendo repetida por mais de
quatro séculos e muitas vezes interpretada de maneira simplista. A princípio
ela parece mesmo fácil de ser respondida, mas o que não nos damos conta é que
essa pergunta nos remete diretamente à complexidade que existe no processo de
consciência. Porque o príncipe Hamlet é extremamente consciente, e sozinho em
sua consciência ele se indaga: “- Quando é que as pessoas vão parar de me dizer
o que deve ser dito para me dizer o que as coisas realmente são?”
Pois é, quando?
Pedro Américo detalhe de A visão de Hamlet,
1893, Pinacoteca do Estado de São Paulo
“Ser ou não ser, eis a questão: será mais
nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a fortuna, enfurecida,
nos alveja, Ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes
fim?" Shakespeare em Hamlet.
Dia desses, deparei-me com um longo vídeo do
professor e historiador brasileiro Leandro Karnal, uma fala de mais de sessenta
minutos. Sei que assistir a um monólogo de mais de sessenta minutos nos dias de
hoje, onde paciência é virtude em falta, parece tarefa árdua, mas não foi. E eu
assisti. Duas vezes. Porque, no momento atual, quando todo o tipo de informação
nos invade olhos e ouvidos, quase sempre sem pedir licença, é imprescindível
que eu encontre espaço para escutar, para ler e reler, aquilo que me desperta
consciência, que por um breve momento me faz sentir, mesmo que ilusoriamente,
que não estou só em meus mais profundos questionamentos.
A partir de agora muito do que vou escrever
vem da minha leitura da leitura de Karnal da leitura de Shakespeare, mas
precisamente, Hamlet, e prometo tentar fazê-la bem mais simples e curta (mesmo
que uma obra como essa mereça leituras muito mais longas e complexas).
Dissociação na psicologia é um termo usado
para falar de processos de inconsciência. Existem várias abordagens para o tema
e a minha abordagem é puramente leiga. Então, colocando em simples palavras, o
ser-humano dissociado é aquele onde existem grandes vãos entre seu discurso e
suas atitudes. O ser-humano dissociado é aquele onde suas partes de
“consciência” não conversam entre si. E como somos solitários em nossos
próprios processos, existem inúmeros graus e processos dissociativos.
Para obter “consciência” é preciso aprender a
combater os nossos processos internos de dissociação, e olhar para si, com
tanta verdade, é realmente um trabalho árduo. E Karnal nos lembra que fazer
esse trabalho intenso de obter consciência sobre seus atos vai muito longe do
espírito de autoajuda que diz “aceite-se e você será feliz”, é muito mais grave
que isso, é “tente descobrir vagamente quem você é, então você não será feliz,
mas sua consciência vai pelo menos fazer com que você não seja falso, vazio e
comum”.
O ser humano integralizado é o contrário do
ser humano dissociado, e assim como a dissociação, a integralização também
existe em diversos graus e formatos. A integralização é o trabalho que fazemos
para diminuir o espaço que existe entre nossos discursos e nossas ações. E,
apesar de ser um processo bem distinto para cada um, existem algumas maneiras
de percebê-la. O meu termômetro para medir consciência (a minha principalmente)
é a quantidade de desculpas que nós nos damos e damos aos outros, quanto mais desculpas,
parece-me que mais dissociados estamos. Assumir a responsabilidade por nossos
atos falhos ou por nossas escolhas é um grande passo no processo de
consciência.
A pergunta mais famosa de Hamlet, que vem
sendo repetida por quatro séculos e que muitos, inclusive eu, interpretam de
maneira bem simplista ou até equivocada (começando por sua tradução para o
português), “to be or not to be?” (“”ser ou não ser” ou “estar ou não estar”?),
parece simples, mas o que muitos não se deram conta é que essa pergunta nos
remete diretamente para a complexidade do processo de consciência em si. O
príncipe Hamlet é extremamente consciente, e sozinho em sua consciência ele se
indaga: “ - Quando é que as pessoas vão parar de me dizer o que deve ser dito
para me dizer o que as coisas realmente são?”.
Entendo que essa decisão entre o “ser ou não
ser”, não é tão difícil de fazer, mas ela abre portas para o desconhecido mundo
do autoconhecimento e adentrar nesse mundo sim, é tarefa difícil. A verdade é
que muitas vezes optamos por não ser, porque é extremamente doloroso e
solitário olhar para o vazio que existe dentro de nós mesmos. E olhá-lo demanda
de nós (muita) vontade.
Vontade de olhar para as coisas como elas
realmente são. Vontade de enfrentar nossos próprios medos e demônios. Vontade
de não viver uma vida que Karnal chama de “enquadrada” e Shakespeare chama de
“encenada”. Vontade de perceber como somos insignificantes e solitários em
nossa consciência. Que temos sempre tantas perguntas, mas que muitas ficarão
sem respostas.
Hamlet nos lembra que esse “caminho das
pedras” para ser ou estar é simples (e ainda assim complexo): basta que
comecemos a estar presentes naquilo que dizemos. Quando fazemos isso, estamos
aos poucos saindo dos nossos processos de inconsciência, de dissociação e
começamos a criar mais integridade, coerência, consciência.
Segundo a leitura de Karnal, o que Hamlet
parece dialogar conosco é que: - E se as dores que nós inventamos, dores
financeiras, dores físicas, dores de problemas familiares fossem o disfarce de
uma grande dor maior? A dor que nós não conseguimos nominar, por isso
estabelecemos dores laterais, por isso estabelecemos que eu esteja bem ou não
naquele momento ou dia. Hamlet diz exatamente que essa dor nasce do fato de que
todos naquela peça, em quase quatro mil e quinhentos versos, estão dizendo a
ele o que ele deve ou não deve ouvir e não exatamente o que as coisas são.
Hamlet objetivamente está olhando para o mundo e dizendo:
“- Quando é que haverá alguém que vai me
dizer o que as coisas são? Quando alguém parará de dizer o que deve ser dito?
Quando alguém parará de colocar fantasias, de beber muito (ele reclama da
bebedeira da corte), de disfarçar sua dor? Quando alguém começará a estar
presente naquilo que fala? Quando as pessoas começarão a ser e deixarão de não
ser?”
As últimas palavras de Hamlet nos trazem a
principal reflexão que surge de toda a peça: depois que Hamlet disse tudo que
deveria ser dito, o que restou foi silêncio. Quando todo esse barulho que faço
para não me enfrentar, quando eu decidir acabar com toda a distração ao meu
redor, quando eu parar de me anestesiar e resolver enfim olhar para dentro de
si. Quando todos que conheço se forem, o que restará? Vazio. Silêncio. Sim, o
resto é silêncio.
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