Literatura
Publicado por Luana Simonini,
escrever é confessar. Confesso. Tenho medo da página em branco.
A crise da modernidade é mergulhar
no presente e se deparar com o que já é obsoleto. Estamos em crise. Como a
poesia traduz em verso o que a gente insiste em não entender?
As revoluções políticas e sociais que marcam
o fim do Século XVIII anunciam uma nova era. Vivemos um período em que a crise
é a protagonista das relações entre homem, mundo e sociedade. Estamos diante da
modernidade.
O indivíduo divide o mesmo teto com alguém
que ama, mas não são casados. Ele acredita em Deus, entretanto não frequenta a
igreja e, tampouco, já leu a Bíblia. Para o homem moderno, as tradições são uma
opressão e abandoná-las é uma libertação. No entanto, as tradições protegem,
são padrões que enfeitiçam com sua segurança. A crise da modernidade é
mergulhar no presente e se deparar com o que já é obsoleto.
Buscamos um ideal de emancipação e, em
paralelo, estamos impregnados de incertezas. Essa é a crise impulsionadora da era moderna,
quando tal conflito é a sua tradução paradoxal. O poeta-crítico é o personagem
que vive esse dilema e revela em seu ofício artístico os reflexos dessa era.
O poeta-crítico é um recorte da modernidade e
leva a poesia para além da contemplação. Sua obra artística convida à reflexão
por se tratar de uma atividade crítica perante a sociedade e ao próprio fazer
poético.
Poeta-crítico considerado como percursor da
modernidade, Charles Baudelaire coloca o artista como uma espécie de Deus,
aquele que cria, e suas reflexões estéticas abrangeram a música, a literatura e
as artes plásticas. Em sua obra As flores do Mal, considerada o marco da poesia
moderna, Baudelaire aborda temas que vão do escabroso ao cotidiano cru e coloca
o próprio poeta como sujeito poético. Em destaque, o poema “O Albatroz” nos
revela a relação entre o poeta, sujeito poético, e a sociedade.
“Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.”
Nesse poema, o albatroz é o poeta capturado
pelos marujos, em alegoria, a sociedade. O poeta lhes ensina algo e depois lhe
é puxado o tapete. A relação trágica entre poeta e mundo é declarada nos versos
finais, quando o sujeito poético afirma não fazer parte da terra firme e,
quando finca seus pés no chão, padece de um exílio. O poeta é um desajeitado e,
como um albatroz, não é uma figura tão bela quando vista de perto.
“O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado ao chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.”
Mário de Andrade, poeta modernista
brasileiro, também coloca o poeta como sujeito poético e o cotidiano como o
cenário das suas poesias na obra Remate de Males. No primeiro poema do livro,
“Eu sou trezentos...”, o sujeito poético se apresenta como múltiplo e, assim como
Baudelaire acredita, coloca-se como um Deus.
“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
As sensações renascem de si mesmas sem
repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar
outro!”
Um Deus que, como o Albatroz de Baudelaire,
não pode pisar em terra firme. Em um mergulho de si mesmo, o sujeito poético
como poeta se declara múltiplo e complexo. É interessante observar que a
linguagem adotada por Mário de Andrade é coloquial e faz referências aos
elementos cotidianos. Esses recursos fomentam o interesse pelo tempo presente
do sujeito.
“Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus
próprios beijos!”
O cotidiano dos dois sujeitos poéticos das
obras de Baudelaire e Mário de Andrade é também um cenário para suas histórias
de amor. Nos poemas a seguir, é possível perceber a presença de um amor crível,
rotineiro e não idealizado. Em “A uma passante”, o sujeito poético tecido por
Baudelaire se apaixona por uma mulher que atravessou seu caminho em uma rua
qualquer.
“A rua em derredor era um ruído incomum.
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;”
Assim coma nossa rotina, tudo passa, até
mesmo o amor do poeta. Esse poema alegoriza a frustração da vida moderna. O
sujeito poético é um poeta que se apaixona, renasce em amor e depois morre em
instantes, com a mesma velocidade do passar daquela mulher. Vivemos um
luto diário.
“Um relâmpago e após a noite! - Aérea
beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?
Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes meu destino, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais!”
Mário de Andrade em seu poema “Cantiga do Ai”
dedica também a uma mulher que passa pelo sujeito poético. O sofrimento é
alimentado no decorrer dos versos e, por fim, o poeta se despede e se resigna
em luto.
“Foi minha ingrata que por mim passou!
Ai, gentes! eu parto! não sei pra onde vou!
Ai, malvada ingrata que escolhi bem!
Eu sofro e não posso queixar de ninguém!”
Tanto em “A uma passante” quanto em “Cantiga
do Ai”, o apaixonamento clichê é seguido de morte. O poeta se despede para não
prosseguir o seu lamento, assim como “a ingrata” que por ele passou, ele passa.
“Ai, pena tamanha que me quebrou!
Adeus! vou-me embora! não sei pra onde vou!
Lastimem o poeta que vai partir,
Moçada se amando no imenso Brasil...”
As obras de Baudelaire e Mário de Andrade nos
mostra como o poema não se reduz à experiência particular de um sujeito
poético. O poema é algo universal. Nós, homens modernos, somos insuficientes
por nós mesmos, frustrados e mergulhados em um cotidiano efêmero. A presença do
presente, tão marcada no ensaio “O pintor da vida moderna” de Baudelaire,
também endossa os poemas de As Flores do Mal e Remate de Males, o que
importa é o que acontece naquele instante.
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