quinta-feira, 15 de outubro de 2015

SELVA AMAZÔNICA, PANTANAL MATOGROSSENSE E O SERTÃO BAIANO

História em quadrinhos






Publicado por Celiosg.
O mundo do entretenimento gira em torno de histórias escritas, desenhadas, filmadas e cantadas. Mas de que vale uma história cuja existência é desconhecida?



Como um italiano fascinado pela Amazônia criou uma série em quadrinhos sobre um piloto americano veterano de guerra vivendo na Manaus da década de 50 


Os personagens de quadrinhos nacionais parecem sofrer historicamente a síndrome do vira-latas. O protagonista não pode se chamar Pedro. Tem de ser Peter. Bruce ao invés de Bruno. Capitão Kirk e não Barbosa. Provavelmente devido ao consumo industrial de produções norte-americanas de super-heróis e, mais recentemente, dos mangás nipônicos, desenvolvemos uma forte tendência a imitá-los e nosso cérebro ficou bitolado. Daí que vieram obras como Holy Avenger e super-heróis tupiniquins como Judoka, Capitão Brasil e Raio Negro. Nada que possa ser apontado exatamente como um sucesso, muito menos como criativo ou ainda autenticamente nosso.



Eis que surge um turista italiano com gosto por viagens e aventuras. Especialmente aquelas que levam a territórios ermos e pouco convidativos, como a Amazônia e o pantanal do Mato-Grosso. Eis que o nome desse turista contumaz é Sergio Bonelli, filho do Gian Luigi Bonelli, criador do maior personagem de faroeste de toda a história das HQ’s, o ranger Tex Willer. Sergio acompanhou o pai na paixão pelas histórias em quadrinhos, se tornando editor da Sergio Bonelli Editore a, digamos assim, Marvel europeia. Sob o pseudônimo de Guido Nollita, Sergio também escrevia roteiros, inclusive substituindo o pai em Tex em algumas ocasiões. Foi o criador de Zagor, outro western que se tornou também um grande sucesso da editora.
A América latina era um de seus destinos preferidos e a Amazônia exerceu nele um fascínio especial. O suficiente para que, em 1975, seus esforços fizessem chegar às bancas italianas uma minissérie em 5 edições de um personagem chamado Mr. No. A capa de estreia apresentava um homem aparentemente recém-saído de um acidente, caminhando meio cambaleante no leito de um rio, empunhando um revólver em uma mão, enquanto a outra se apoiava em um cipó. Atrás dele, índios na copa das árvores, armados com arco e flechas e lanças. O título da aventura: Amazônia.


O sucesso foi tanto que logo a minissérie se tornaria uma publicação regular da editora Bonelli. Mr. No é o apelido de Jerry Drake, um piloto americano veterano da Segunda Guerra Mundial que escolheu se refugiar em Manaus, no Brasil, trabalhando como guia turístico com seu Piper, um pequeno avião monomotor altamente manobrável e capaz de pousos improváveis, levando seus passageiros a locais que outros pilotos não ousariam ir.


Bonelli se inspirou em um piloto de turismo chamado Capitão Veja que conheceu em suas viagens pelo mundo. Os lugares visitados por Mr. No, assim como muitos personagens que aparecem em suas aventuras, vêm diretamente das experiências pessoais de seu criador, embora confesse que não faz nem de longe o tipo aventureiro de seu personagem. Mister No, nas palavras de um de seus clientes, “É uma estranha mistura de idealismo e cinismo, de tolerância e de altruísmo. Meio louco mas também simpático.” Talvez o personagem mais humano e realista já retratado em quadrinhos. Drake como americano é um autêntico brasileiro. Frequentador de biroscas, do tipo que bebe o que tem na frente, conhecido dos barmen e das mulheres bonitas. Ágil com os punhos mas não invencível. Cínico de acordo com a definição de Ambrose Bierce, um homem que vê o mundo como ele é não como deveria ser. Mister No é capaz de tecer discursos ácidos e contundentes sobre os diversos aspectos humanos que tornam a vida em sociedade tão difícil, expressando sua insatisfação em um momento e reconhecendo a inutilidade de suas palavras no momento seguinte.



O apelido, “Senhor Não” em uma tradução literal, surgiu provavelmente durante uma sessão de tortura quando cativo pelos japoneses na guerra, se negando a falar. Para outros, a razão é por dizer constantemente não ao que ele reprova: Não à rígida hierarquia militar e à loucura da violência de todas as guerras; não à hipocrisia e conformismo que dominam a sociedade; não à arrogância dos prepotentes contra os fracos. Também diz não a várias propostas de serviços perigosos mas, por uma razão ou outra, acaba tendo de aceitá-los. Assim como tem de recorrer à violência que pensara ter deixado para trás quando deixou o exército.


Suas aventuras se localizam cronologicamente na década de 50. Após a guerra, sem conseguir se encaixar novamente na sociedade americana, Jerry decide viver na Amazônia, uma das últimas fronteiras da civilização. Ou seja, um ótimo lugar para um espírito livre como o dele. “A capital do estado do Amazonas é pouco mais que uma cidade morta por causa da total ausência de toda a forma de indústria e das escassas atividades comerciais.” Assim começa a saga de Mister No.


Encontramos o personagem apanhando feio de um grupo de gângsteres que não ficaram muito satisfeitos com um gringo disputando os jogos de pôquer com os turistas do hotel Amazonas. Depois de resolvido o desentendimento e um encontro não muito amigável com o representante local da polícia, Mister No se dirige ao cais, onde está Esse-Esse (um ex-oficial do exército de Hitler). Os dois aguardam ansiosamente a chegada de um navio que trará Whisky, bebida em falta na região. Depois sai em peregrinação nas biroscas decadentes em busca de algo decente para beber enquanto o famoso destilado não chega. E esse é o herói da série.


 Sergio Bonelli concebeu um americano ex-veterano de guerra que sofreu uma fusão improvável com o Zé Carioca da Disney. Mora em uma casa paupérrima, vive perseguido por credores e seu avião geralmente só decola depois de receber uns chutes. Passa o tempo livre bebendo em algum bar e paquerando descaradamente todas as mulheres bonitas que aparecem. Um cara tão simpático e autêntico que termina sendo querido por todo mundo, até muitas vezes pelos próprios inimigos. Aliás, esse é outro dos pontos interessantes de suas histórias. Muitas vezes seus adversários não são exatamente maus, apenas pessoas com desvios éticos em variados níveis, moldados por um estilo de vida bruto em locais e situações onde a lei é um conforto quase que místico. Os rincões da américa latina onde o personagem vive suas aventuras são uma espécie de mistura do velho oeste americano com o medievo europeu.


Do pantanal ao sertão


O quadrinho italiano parece ser muito influenciado pelo cinema. As publicações da Sergio Bonelli seguem um padrão de 100 páginas em edições mensais nas quais as histórias podem se prolongar por dois ou três números ou ainda até mais. Então, a sensação ao ler uma história completa é quase a de assistir a um filme. A seguir, algumas aventuras marcantes do Mister No.
O espectro do rio Cuiabá
Nessa espetacular e dolorosa aventura, Mr. No é contratado pelo americano Anthony Raffles com a missão de adentrar o pantanal do Mato Grosso. O conterrâneo veio ao Brasil para cumprir uma tarefa do Explorer Club, um clube formando por ricos aventureiros e caçadores. Apenas se também desbravar territórios inóspitos, Raffles poderá se casar com a filha de um dos sócios do Explorer. Assim, Mr. No reúne uma tripulação e parte no barco Rosa dos Ventos navegando pantanal adentro pelo Rio Cuiabá.
A partir de então, o grupo passa a sofrer diversos revezes, enfrentando o zagaieiro Manoel Brandão, adversidades da natureza, índios agressivos e até o deformado Capitão Teixeira, o ex-dono da Rosa dos Ventos, agora um psicótico assassino parcialmente devorado por piranhas.
Bem poucos regressam vivos para a civilização, dando espaço para mais uma das reflexões de Jerry Drake: “Voltar como se nada tivesse acontecido. Cinco bons cristãos massacrados, outros não tão bons que foram brutalmente pro outro mundo. Angústia, violência, barbáries, humilhações e outros prazeres do tipo. Tudo bem! Vou embora como se nada tivesse acontecido. Mesmo sem você, acho que um dia eu teria me enfiado lá no meio do pantanal. Cedo ou tarde a minha curiosidade teria me levado a encarar aquele rio, a atravessar a porta desse mundo que eu considerava misterioso. Mas agora sei que aquela porta se abre pra costumeira podridão, pro egoísmo e violência dos seres humanos.”
Comicamente, a futura esposa de Raffles era uma senhora basicamente desprovida de beleza e o casamento, por puro interesse financeiro.
Tsantzas
Mister No está na Colômbia e não tem recursos para abastecer o avião e voltar para Manaus. Só resta tentar encontrar nos bares alguém que concorde em emprestar o dinheiro. É quando Murdock ,um rico antiquário, oferece um arriscado trabalho: Encontrar a aldeia dos índios Jívaros, no coração da Amazônia, e trazer as famosas e valiosas Tsantzas, cabeças encolhidas e mumificadas, troféus de guerra dos temíveis índios encolhedores de cabeças. Sem muita alternativa, Mr. No aceita o serviço e, acompanhado por Daniel, irmão do dono do antiquário, e mais dois ajudantes, adentram o inferno verde em uma canoa descendo o rio Yuquipa.


Na selva, conhecem Becerra, um mascate que vive em contato com várias tribos indígenas, inclusive os Jívaros. Após uma conflituosa negociação, o comerciante concorda em guiar o grupo até a aldeia dos encolhedores de cabeças. Lá, percebem que os tempos de guerras entre as tribos acabaram. Sem mais conflitos, as valiosas Tsantzas há muito não são mais produzidas. É então que Daniel e Becerra convencem o líder da aldeia de que a volta dos conflitos entre as tribos outrora inimigas pode ser muito lucrativo. Os eventos conduzem a mais um final amargo, repleto de violência gerada pela ganância desmedida do ser humano que, mais uma vez semeia a guerra para colher lucro.
O Último Cangaceiro
Ao chegar à Bahia, onde 15 anos atrás Lampião e seu bando foram mortos pela polícia, Mister No leva o usual calote do cliente. Sem dinheiro para completar o tanque do Piper (de novo) e voltar a Manaus, resolve matar o tempo em algum bar até ser contratado por um rico fazendeiro local para levar um grupo de trabalhadores até um ponto do sertão baiano. No ar, Mr. No descobre que a missão consistia em assassinar um grupo de rebeldes armados, parte de uma organização de novos cangaceiros criada e liderada por um estudante de História que resolve, assim como o histórico Virgulino Ferreira, pegar em armas para combater os desmandos dos prepotentes locais.
Logo se desenrola uma trama na qual o certo e o errado se tornam por vezes confusos. De um lado, um Coronel que oprime os habitantes da região, impondo sua lei por meio da violência armada. De outro, um grupo rebelde composto por pessoas capazes de massacrar mulheres e crianças para atingir objetivos que nem sempre estão muito claros, a não ser na mente de seu acadêmico líder.
Por três vezes o Brasil disse não ao Mister No
No Brasil, o personagem foi publicado brevemente por três editoras. A Noblat lançou as 5 primeiras histórias em 8 edições em 1976. Em 1991, foi a vez da Record, trazendo o formato italiano original. Essas edições traziam uma sessão de correspondência chamada Manaus Express, na qual leitores empolgados com a publicação relatavam suas impressões sobre as aventuras do americano cínico. Inferno Verde apresentava informações acerca de animais, tribos e plantas da Amazônia. Por fim, surgiu a sessão Atlas, escrita pelo próprio Sergio Bonelli. Foram 20 espetaculares edições até que a revista foi cancelada em 1992.


Depois, em 2002, a editora Mythos deu uma nova chance ao personagem. Publicou mais 24 Edições e então voltou ao limbo editorial. As aventuras de um homem normal, com referências históricas em território brasileiro e restante da América Latina não puderam competir com outros personagem com poderes de escalar paredes, voar e lançar raios pelos olhos e nem com robôs gigantes e lutadores com cabelos espetados, capazes de pulverizar prédios com as mãos.
Na Itália, suas aventuras regulares se encerraram na edição nº 379, “Uma Nova Vida”, publicada em 2006.



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