História em quadrinhos
Publicado por Celiosg.
O mundo do entretenimento gira em torno de histórias escritas, desenhadas,
filmadas e cantadas. Mas de que vale uma história cuja existência é
desconhecida?
Como um italiano fascinado pela
Amazônia criou uma série em quadrinhos sobre um piloto americano veterano de
guerra vivendo na Manaus da década de 50
Os personagens de
quadrinhos nacionais parecem sofrer historicamente a síndrome do vira-latas. O
protagonista não pode se chamar Pedro. Tem de ser Peter. Bruce ao invés de
Bruno. Capitão Kirk e não Barbosa. Provavelmente devido ao consumo industrial
de produções norte-americanas de super-heróis e, mais recentemente, dos mangás
nipônicos, desenvolvemos uma forte tendência a imitá-los e nosso cérebro ficou
bitolado. Daí que vieram obras como Holy Avenger e super-heróis tupiniquins
como Judoka, Capitão Brasil e Raio Negro. Nada que possa ser apontado
exatamente como um sucesso, muito menos como criativo ou ainda autenticamente
nosso.
Eis que surge um turista italiano com gosto
por viagens e aventuras. Especialmente aquelas que levam a territórios ermos e
pouco convidativos, como a Amazônia e o pantanal do Mato-Grosso. Eis que o nome
desse turista contumaz é Sergio Bonelli, filho do Gian Luigi Bonelli, criador
do maior personagem de faroeste de toda a história das HQ’s, o ranger Tex
Willer. Sergio acompanhou o pai na paixão pelas histórias em quadrinhos, se
tornando editor da Sergio Bonelli Editore a, digamos assim, Marvel europeia.
Sob o pseudônimo de Guido Nollita, Sergio também escrevia roteiros, inclusive
substituindo o pai em Tex em algumas ocasiões. Foi o criador de Zagor, outro
western que se tornou também um grande sucesso da editora.
A América latina era um de seus destinos
preferidos e a Amazônia exerceu nele um fascínio especial. O suficiente para
que, em 1975, seus esforços fizessem chegar às bancas italianas uma minissérie
em 5 edições de um personagem chamado Mr. No. A capa de estreia apresentava um
homem aparentemente recém-saído de um acidente, caminhando meio cambaleante no
leito de um rio, empunhando um revólver em uma mão, enquanto a outra se apoiava
em um cipó. Atrás dele, índios na copa das árvores, armados com arco e flechas
e lanças. O título da aventura: Amazônia.
O sucesso foi tanto que logo a minissérie se
tornaria uma publicação regular da editora Bonelli. Mr. No é o apelido de Jerry
Drake, um piloto americano veterano da Segunda Guerra Mundial que escolheu se
refugiar em Manaus, no Brasil, trabalhando como guia turístico com seu Piper,
um pequeno avião monomotor altamente manobrável e capaz de pousos improváveis,
levando seus passageiros a locais que outros pilotos não ousariam ir.
Bonelli se inspirou em um piloto de turismo
chamado Capitão Veja que conheceu em suas viagens pelo mundo. Os lugares
visitados por Mr. No, assim como muitos personagens que aparecem em suas
aventuras, vêm diretamente das experiências pessoais de seu criador, embora
confesse que não faz nem de longe o tipo aventureiro de seu personagem. Mister
No, nas palavras de um de seus clientes, “É uma estranha mistura de idealismo e
cinismo, de tolerância e de altruísmo. Meio louco mas também simpático.” Talvez
o personagem mais humano e realista já retratado em quadrinhos. Drake como
americano é um autêntico brasileiro. Frequentador de biroscas, do tipo que bebe
o que tem na frente, conhecido dos barmen e das mulheres bonitas. Ágil com os
punhos mas não invencível. Cínico de acordo com a definição de Ambrose Bierce,
um homem que vê o mundo como ele é não como deveria ser. Mister No é capaz de
tecer discursos ácidos e contundentes sobre os diversos aspectos humanos que tornam
a vida em sociedade tão difícil, expressando sua insatisfação em um momento e
reconhecendo a inutilidade de suas palavras no momento seguinte.
O apelido, “Senhor Não” em uma tradução
literal, surgiu provavelmente durante uma sessão de tortura quando cativo pelos
japoneses na guerra, se negando a falar. Para outros, a razão é por dizer
constantemente não ao que ele reprova: Não à rígida hierarquia militar e à
loucura da violência de todas as guerras; não à hipocrisia e conformismo que
dominam a sociedade; não à arrogância dos prepotentes contra os fracos. Também
diz não a várias propostas de serviços perigosos mas, por uma razão ou outra,
acaba tendo de aceitá-los. Assim como tem de recorrer à violência que pensara
ter deixado para trás quando deixou o exército.
Suas aventuras se localizam cronologicamente
na década de 50. Após a guerra, sem conseguir se encaixar novamente na
sociedade americana, Jerry decide viver na Amazônia, uma das últimas fronteiras
da civilização. Ou seja, um ótimo lugar para um espírito livre como o dele. “A
capital do estado do Amazonas é pouco mais que uma cidade morta por causa da
total ausência de toda a forma de indústria e das escassas atividades
comerciais.” Assim começa a saga de Mister No.
Encontramos o personagem apanhando feio de um
grupo de gângsteres que não ficaram muito satisfeitos com um gringo disputando
os jogos de pôquer com os turistas do hotel Amazonas. Depois de resolvido o
desentendimento e um encontro não muito amigável com o representante local da polícia,
Mister No se dirige ao cais, onde está Esse-Esse (um ex-oficial do exército de
Hitler). Os dois aguardam ansiosamente a chegada de um navio que trará Whisky,
bebida em falta na região. Depois sai em peregrinação nas biroscas decadentes
em busca de algo decente para beber enquanto o famoso destilado não chega. E
esse é o herói da série.
Do pantanal ao sertão
O quadrinho italiano parece ser muito
influenciado pelo cinema. As publicações da Sergio Bonelli seguem um padrão de
100 páginas em edições mensais nas quais as histórias podem se prolongar por
dois ou três números ou ainda até mais. Então, a sensação ao ler uma história
completa é quase a de assistir a um filme. A seguir, algumas aventuras
marcantes do Mister No.
O espectro do rio Cuiabá
Nessa espetacular e dolorosa aventura, Mr. No
é contratado pelo americano Anthony Raffles com a missão de adentrar o pantanal
do Mato Grosso. O conterrâneo veio ao Brasil para cumprir uma tarefa do
Explorer Club, um clube formando por ricos aventureiros e caçadores. Apenas se
também desbravar territórios inóspitos, Raffles poderá se casar com a filha de
um dos sócios do Explorer. Assim, Mr. No reúne uma tripulação e parte no barco
Rosa dos Ventos navegando pantanal adentro pelo Rio Cuiabá.
A partir de então, o grupo passa a sofrer
diversos revezes, enfrentando o zagaieiro Manoel Brandão, adversidades da
natureza, índios agressivos e até o deformado Capitão Teixeira, o ex-dono da
Rosa dos Ventos, agora um psicótico assassino parcialmente devorado por
piranhas.
Bem poucos regressam vivos para a
civilização, dando espaço para mais uma das reflexões de Jerry Drake: “Voltar
como se nada tivesse acontecido. Cinco bons cristãos massacrados, outros não
tão bons que foram brutalmente pro outro mundo. Angústia, violência, barbáries,
humilhações e outros prazeres do tipo. Tudo bem! Vou embora como se nada
tivesse acontecido. Mesmo sem você, acho que um dia eu teria me enfiado lá no
meio do pantanal. Cedo ou tarde a minha curiosidade teria me levado a encarar
aquele rio, a atravessar a porta desse mundo que eu considerava misterioso. Mas
agora sei que aquela porta se abre pra costumeira podridão, pro egoísmo e
violência dos seres humanos.”
Comicamente, a futura esposa de Raffles era
uma senhora basicamente desprovida de beleza e o casamento, por puro interesse
financeiro.
Tsantzas
Mister No está na Colômbia e não tem recursos
para abastecer o avião e voltar para Manaus. Só resta tentar encontrar nos
bares alguém que concorde em emprestar o dinheiro. É quando Murdock ,um rico
antiquário, oferece um arriscado trabalho: Encontrar a aldeia dos índios
Jívaros, no coração da Amazônia, e trazer as famosas e valiosas Tsantzas,
cabeças encolhidas e mumificadas, troféus de guerra dos temíveis índios
encolhedores de cabeças. Sem muita alternativa, Mr. No aceita o serviço e,
acompanhado por Daniel, irmão do dono do antiquário, e mais dois ajudantes,
adentram o inferno verde em uma canoa descendo o rio Yuquipa.
Na selva, conhecem Becerra, um mascate que
vive em contato com várias tribos indígenas, inclusive os Jívaros. Após uma
conflituosa negociação, o comerciante concorda em guiar o grupo até a aldeia
dos encolhedores de cabeças. Lá, percebem que os tempos de guerras entre as
tribos acabaram. Sem mais conflitos, as valiosas Tsantzas há muito não são mais
produzidas. É então que Daniel e Becerra convencem o líder da aldeia de que a
volta dos conflitos entre as tribos outrora inimigas pode ser muito lucrativo.
Os eventos conduzem a mais um final amargo, repleto de violência gerada pela
ganância desmedida do ser humano que, mais uma vez semeia a guerra para colher
lucro.
O Último Cangaceiro
Ao chegar à Bahia, onde 15 anos atrás Lampião
e seu bando foram mortos pela polícia, Mister No leva o usual calote do
cliente. Sem dinheiro para completar o tanque do Piper (de novo) e voltar a
Manaus, resolve matar o tempo em algum bar até ser contratado por um rico
fazendeiro local para levar um grupo de trabalhadores até um ponto do sertão
baiano. No ar, Mr. No descobre que a missão consistia em assassinar um grupo de
rebeldes armados, parte de uma organização de novos cangaceiros criada e
liderada por um estudante de História que resolve, assim como o histórico
Virgulino Ferreira, pegar em armas para combater os desmandos dos prepotentes
locais.
Logo se desenrola uma trama na qual o certo e
o errado se tornam por vezes confusos. De um lado, um Coronel que oprime os
habitantes da região, impondo sua lei por meio da violência armada. De outro,
um grupo rebelde composto por pessoas capazes de massacrar mulheres e crianças
para atingir objetivos que nem sempre estão muito claros, a não ser na mente de
seu acadêmico líder.
Por três vezes o Brasil disse não ao Mister
No
No Brasil, o personagem foi publicado
brevemente por três editoras. A Noblat lançou as 5 primeiras histórias em 8
edições em 1976. Em 1991, foi a vez da Record, trazendo o formato italiano
original. Essas edições traziam uma sessão de correspondência chamada Manaus
Express, na qual leitores empolgados com a publicação relatavam suas impressões
sobre as aventuras do americano cínico. Inferno Verde apresentava informações
acerca de animais, tribos e plantas da Amazônia. Por fim, surgiu a sessão
Atlas, escrita pelo próprio Sergio Bonelli. Foram 20 espetaculares edições até
que a revista foi cancelada em 1992.
Depois, em 2002, a editora Mythos deu uma
nova chance ao personagem. Publicou mais 24 Edições e então voltou ao limbo
editorial. As aventuras de um homem normal, com referências históricas em
território brasileiro e restante da América Latina não puderam competir com
outros personagem com poderes de escalar paredes, voar e lançar raios pelos
olhos e nem com robôs gigantes e lutadores com cabelos espetados, capazes de
pulverizar prédios com as mãos.
Na Itália, suas aventuras regulares se
encerraram na edição nº 379, “Uma Nova Vida”, publicada em 2006.
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