Curiosidade: música popular
Fernanda
PortugalDo Rio de Janeiro para a BBC Brasil
O professor Lauro Meller músicas do Iron Maiden que tratam de
momentos históricos
No cockpit de um avião da Força Aérea Real, em
alucinante perseguição pelos ares durante a Segunda Guerra, o piloto inglês
mira o inimigo nazista e aperta o gatilho.
Num campo de
batalha na Crimeia, em 1854, em meio ao cheiro de pólvora e à respiração dos
cavalos, o soldado britânico cai paralisado e com a garganta seca ao ser
baleado pelos russos. Dentro de uma fria cela medieval, o condenado à morte
pela Inquisição descreve seus últimos momentos, enquanto aguarda pelo carrasco.
A presença
de cenas da história mundial em músicas da lendária banda de heavy metal
britânica Iron Maiden – que acaba de lançar um novo álbum e fará shows em
vários países do mundo a partir de fevereiro – tornou-se alvo de pesquisa
acadêmica no Brasil.
Nos artigos técnicos Temas Históricos em Canções do
Iron Maiden, partes 1 e 2, Lauro Meller, doutor em Letras pela PUC
de Minas Gerais e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), traça uma linha cronológica da Pré-História à Segunda Guerra Mundial
com a análise minuciosa de sete músicas do grupo.
"O
Maiden presta uma grande contribuição ao despertar a curiosidade do seu
público, principalmente o mais jovem: as canções se tornam portas de entrada
para outros conhecimentos", afirma o paraibano de 41 anos, que na UFRN
coordena o Grupo de Estudos Interdisciplinares em Música Popular.
Ele ressalta
que, desta forma, o sexteto britânico se distingue de boa parte das outras
bandas de heavy metal, cujas letras abordam "violência, drogas ou
mulheres, num ponto de vista quase sempre machista".
A análise de
Meller não se restringe às letras. Guitarrista, violonista e baixista afiliado
à Ordem dos Músicos do Brasil, ele destrincha linhas melódicas, arranjos,
registros vocais, riffs e solos de guitarra – e como estes ingredientes
musicais potencializam a mensagem de cada canção.
"O Maiden associa às letras o instrumental grandioso, próprio do
heavy metal. É possível estabelecer paralelo entre o heavy metal e a música
erudita, principalmente a do século 19 no sentido do volume sonoro 'poderoso' e
dos temas de guerras", descreve o pesquisador, citando a Sinfonia 1812, escrita por Tchaikovsky em 1880, que
retrata batalha travada entre França e Rússia, e ainda composições de Richard
Wagner para orquestras com mais componentes do que era o padrão – aumentando,
portanto, o "volume sonoro".
No álbum recém-lançado (The Book of Souls),
chamou atenção do público e da crítica a faixa Empire of
the Clouds, que mais uma vez narra um episódio histórico: desta vez,
o acidente com o dirigível britânico R101, que caiu na França em sua viagem
inaugural, em outubro de 1930.
Com 18
minutos, é a canção mais longa de toda a discografia do Iron Maiden, grupo com
quase 40 anos de estrada. Além disso, de maneira inusitada para os fãs, mescla
piano, violino e violoncelo às três guitarras, à dupla baixo/bateria e à
potente voz do cantor Bruce Dickinson, autor da obra.
A canção inspirou Meller a decidir mergulhar, em 2016, na produção de um
livro que incluirá análises desta e de outras músicas, além das sete que
integram os artigos já produzidos e divulgados na íntegra na publicação técnica Revista Brasileira de Estudos da Canção.
"Vou ampliar os textos, de modo a publicar um trabalho de grande
fôlego. O título seria Temas Históricos e Literários
nas Canções do Iron Maiden, incluindo também faixas inspiradas na
literatura", revela o estudioso, citando como um dos objetos do trabalho a
antológica The Rime of the Ancient Mariner,
lançada pelo Maiden em 1984 e baseada em obra do poeta romântico inglês Samuel
Taylor Coleridge.
The
Rime, com seus
13 minutos, era a mais longa faixa da banda até Empire of
the Clouds.
"Será
um projeto desafiador e importante, pois ainda não encontrei, principalmente em
português, trabalhos de cunho acadêmico e analítico sobre a obra dessa singular
banda, apenas biografias", explica o professor, que vai aliar o novo
projeto ao pós-doutorado em música popular, a partir de janeiro, na
Universidade de Liverpool, berço dos Beatles.
Faixas analisadas
Sete canções foram escolhidas por Meller para os artigos já publicados,
entre as inúmeras composições do Maiden com alusões históricas. Ficou de fora,
por exemplo, Paschendale (2003), sobre uma
batalha entre britânicos e alemães na Primeira Guerra Mundial.
Alguns
episódios são contados em terceira pessoa. Outros, na "voz" de
anônimos, o que "contribui para maior dramaticidade e faz o ouvinte
sentir-se ‘na pele’ do personagem", observa o professor. Confira:
Quest
for Fire (Busca
pelo Fogo), 1983: narra como a fonte de luz e calor foi pivô de sangrentas batalhas
pelas tribos pré-históricas.
Alexander
the Great (Alexandre,
o Grande), 1986: percorre a biografia do soberano da Macedônia, nos anos 300 a.C.
Invaders (Invasores), 1982: fala sobre as invasões dos
vikings à Europa, entre os séculos 8 e 9.
Hallowed
be Thy Name (Santificado
Seja o Vosso Nome), 1982: trata das horas anteriores à execução de um
herege pela Inquisição. Em primeira pessoa, leva o ouvinte para dentro da cela
do condenado.
Run
to the Hills (Corram
para as Montanhas), 1982: traz duas óticas distintas – a dos homens
brancos e a dos indígenase – durante as batalhas na época da ocupação da
América do Norte (anos 1790-1850).
The Trooper (O Soldado), 1983: sobre a Batalha de
Balaclava, da Guerra da Crimeia, envolvendo britânicos e russos, em 1854. Em
primeira pessoa, um combatente da cavalaria inglesa desafia o inimigo, mas
depois detalha a própria morte.
Aces
High (Ases
no Céu), 1984: Na introdução, ouve-se trecho do discurso de 18 de junho de 1940
do primeiro ministro britânico Winston Churchill, exortando os ingleses à
batalha na Segunda Guerra. A canção descreve combate com a Luftwaffe de Adolf
Hitler. Guitarras simulam, usando o efeito 'tremolo', o som dos 'mergulhos' das
aeronaves. ____________________________________________________________________
Análise resumida da nova 'Empire of the Clouds', por Lauro Meller
A canção
conta a história do dirigível R101, construído pelo governo britânico em
1929-1930, para deslocar dignatários aos recantos mais longínquos do Império.
Era o maior dirigível do mundo e, tal como o Titanic, protagonizou uma
catástrofe em sua viagem inaugural.
Em outubro
de 1930, a caminho da Índia, atravessou, ao sobrevoar a França, uma forte
tempestade, que arrancou o seu revestimento externo e deixou os reservatórios
de hidrogênio desprotegidos. O consequente incêndio a bordo derrubou a
aeronave.
A letra
narra, passo a passo, a tormenta, o acidente e a desolação que se segue à morte
de passageiros e tripulantes.
O letrista (Bruce Dickinson) opta por uma abordagem descritiva. Assim
como no Paul McCartney de Penny Lane ou
no Peter Gabriel de Get’em Out by Friday,
é possível visualizar a narrativa, como se fosse um filme. O arranjo é
construído de modo minimalista: os vários elementos vão sendo introduzidos
paulatinamente. O acompanhamento musical "comenta" todas as etapas da
narrativa.
À calmaria
inicial, com destaque para piano, violino e violoncelo, seguem-se bateria e
guitarras a pleno vapor, e a explosão da voz de Dickinson em registro
médio-agudo, quando, por exemplo, a letra cita o gigantismo do R101, maior que
o famoso cruzeiro Titanic. A voz pouco a pouco vai alcançando registros mais
agudos, semioticamente representando a impaciência de uma tripulação que quer
partir, mesmo com as condições adversas.
A voz atinge
registro plenamente agudo, indicando uma gradual tensão, reforçada com a
introdução de uma frase melódica repetitiva ao piano, que marca um diálogo
entre um subordinado e o capitão. O primeiro diz que a aeronave jamais
conseguirá cumprir o seu voo e o segundo insiste em prosseguir.
Na passagem,
Dickinson dá voz aos anônimos da história e nos faz testemunhas desse diálogo
em que a impaciência e a soberba, calcada na hierarquia, seriam responsáveis
por uma tragédia.
Mais
adiante, ouvem-se sequências de batidas executadas pela bateria, pelas guitarras
e pelo baixo em sincronia, gradualmente tornando-se mais lentas e em desenho
melodicamente descendente, como que transpondo, no plano musical, a curva
também descendente da aeronave.
Na
realidade, essas batidas (três curtas, três longas, três curtas) correspondem à
sigla S.O.S. (Save our Souls ou Save our Ship), em código morse.
Aos 12
minutos e meio, os vocais retornam após uma longuíssima passagem instrumental,
com versos cantados em registro agudo limite para o vocalista. Percebe-se sua
dificuldade em atingir as notas mais altas, o que pode ser lido como uma
limitação técnica, mas que contribui, semioticamente, para a construção da
imagem de desespero em relação ao acidente.
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