Entrevista
Fernanda
da Escóssia Do Rio de Janeiro para a BBC Brasil
20 novembro 2015
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Quando
começou a se interessar pela história da África, o poeta, diplomata e
historiador Alberto da Costa e Silva ouviu: "Por que você, um diplomata,
um homem tão letrado, não vai estudar a Grécia?"
Justamente porque todo mundo estudava a Grécia, explica, ele resolveu
estudar a África. Hoje, é o principal africanólogo brasileiro, autor de
clássicos como A Enxada e a Lança: a África antes dos
Portugueses e A Manilha e o Libambo: a África
e a Escravidão, de 1500 a 1700. E, aos 84 anos, prepara um novo
livro para completar sua trilogia sobre história africana.
Formado em
1957 pelo Instituto Rio Branco, Costa e Silva serviu em vários países e foi
embaixador na Nigéria. É membro da Academia Brasileira de Letras, autor e
organizador de mais de 30 livros. Por sua obra, recebeu em 2014 o Prêmio
Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa.
Leia também: "Por que você, um diplomata, um
homem tão letrado, não vai estudar a Grécia?"
Filho do
poeta piauiense Antônio Francisco da Costa e Silva, nasceu em São Paulo e viveu
no Ceará até aos 12 anos, quando mudou-se para o Rio de Janeiro. Cresceu entre
livros e costuma dizer que, como no verso do poeta francês Charles Baudelaire
(1821-1867), seu berço "ao pé da biblioteca se estendia".
Foi entre
livros, quadros e esculturas, no apartamento em que guarda lembranças de vários
lugares do Brasil e do mundo, que ele recebeu a BBC Brasil às vésperas do Dia
da Consciência Negra para falar da história do continente pelo qual se
apaixonou.
BBC
Brasil: Como o Brasil aprendeu a história da África?
Alberto
da Costa e Silva: A história da África durante muito tempo foi uma espécie de
capítulo de antropologia e etnografia do continente africano. Eram livros que
árabes e europeus escreveram sobre suas viagens. Data do fim da Segunda Guerra
Mundial a consolidação a história da África como disciplina à parte, semelhante
à história da Idade Média europeia, ou à história da China.
Entre 1945 e
1960 seu estudo começa a ganhar grandes voos, tanto na África quanto na Europa,
sobretudo Inglaterra e França. Curiosamente o Brasil esteve ausente disso. Os
historiadores brasileiros sempre viam a história das relações Brasil-África com
a África figurando como fornecedora de mão de obra escrava para o Brasil, como
se o africano que era trazido à força nascesse num navio negreiro.
Era como se
o negro surgisse no Brasil, como se fosse carente de história. Nenhum povo é
carente de história. E a história da África é uma história extremamente rica e
que teve grande importância na história do Brasil, da mesma maneira que a
história europeia.
De maneira
geral, quando se estuda a história do Brasil, o negro aparece como mão de obra
cativa, com certas exceções de grandes figuras, mulatos ou negros que pontuam a
nossa história. O negro não aparece como o que ele realmente foi, um criador,
um povoador do Brasil, um introdutor de técnicas importantes de produção
agrícola e de mineração do ouro.
BBC
Brasil: O senhor poderia citar alguns exemplos?
Costa
e Silva: Os
primeiros fornos de mineração de ferro em Minas Gerais eram africanos. Fizemos
uma história de escravidão que foi violentíssima, atroz, das mais violentas das
Américas, uma grande ignomínia e motivo de remorso. Começamos agora a ter a
noção do que devemos ao escravo como criador e civilizador do Brasil.
Quando o
ouro é descoberto em Minas Gerais, o governador de Minas escreve uma carta
pedindo que mandassem negros da Costa da Mina, na África, porque "esses
negros têm muita sorte, descobrem ouro com facilidade". Os negros da Costa
da Mina não tinham propriamente sorte: eles sabiam, tinham a tradição milenar
de exploração de ouro, tanto do ouro de bateia dos rios quanto da escavação de
minas e corredores subterrâneos. Boa parte da ourivesaria brasileira tem raízes
africanas.
Temos de
estudar o continente africano não como um capítulo à parte, um gueto. A
história da África está incorporada à história do mundo, porque ela foi parte e
é parte da história do mundo. Que a história do negro no Brasil não seja
isolada, como se o negro tivesse sido um marginal. O negro foi essencial na
formação do Brasil.
BBC
Brasil: Qual a importância de um personagem como Zumbi?
Costa
e Silva: Havia
um suplemento juvenil do jornal A Noite, sobre
grandes nomes da história, e eu me lembro perfeitamente de um caderno sobre
Zumbi. Zumbi está aliado de tal maneira à ideia de liberdade que é difícil
escrever sobre ele sem ser apaixonado.
Zumbi não é
um nome, é um título da etnia ambundo, significa rei, chefe. Palmares era como
um Estado africano recriado no Brasil. Na África era muito comum isso. Em torno
de um núcleo de poder forte se aglomeravam vários povos e formavam um novo
povo. Isso é uma hipótese.
BBC
Brasil: O senhor vê um aumento do interesse dos brasileiros pela questão negra?
Image
copyright Image caption Historiador diz que é preciso lembrar que houve escravidão em
todas as culturas
Costa
e Silva: Tenho
a impressão de que todos temos dentro de cada um de nós um africano. Podemos
não ter consciência disso, mas é permanente. Há naturalmente hoje em dia uma
percepção mais nítida do que é a África, a escola começa a dar uma visão mais
clara.
Mas ainda
apresenta visões distorcidas. Uma vez uma professora veio me dizer que era
absurdo que apresentássemos Cleópatra como uma moça branca, quando ela era
negra. É um equívoco isso. Cleópatra não era negra nem mulata. Era grega. Os Ptolomeus,
uma dinastia grega, governavam o Egito e não se misturavam.
BBC
Brasil: Na África também havia escravos, não?
Costa
e Silva: Escravidão
houve em todas as culturas no mundo. Todos nós somos descendentes de escravos.
Houve escravidão em toda a Europa, na Indonésia, entre os índios americanos, na
Inglaterra. Na África havia todos os tipos de escravidão, e até hoje em certas
regiões africanas os descendentes de escravos são discriminados. Quase toda a
África teve escravidão.
A escravidão
transatlântica, da África para as Américas, a nossa, tem uma diferença básica:
pela primeira vez era uma escravidão racial. Era um especial aspecto da
perversidade dela. No início não, mas a partir de certo momento, passa a ser
exclusivamente negra. Foi o maior deslocamento forçado de gente de uma área
para outra que a história já conheceu, e o mais feroz.
Acho que tem de haver cota em tudo. Se você vai se candidatar a um cargo
de atendente de hotel de primeira classe, se você for negro, você tem
dificuldade.
O Brasil foi
o último país das Américas e do Ocidente a abolir a escravidão. O último do
mundo foi a Mauritânia (na África), em 1981.
BBC
Brasil: Como analisa o racismo hoje no Brasil?
Costa
e Silva: Existe
racismo, e muitíssimo. No nosso racismo, não temos um partido racista, mas
temos repetidas manifestações de racismo no seio da sociedade. É dificílimo,
para um negro, ascender socialmente. A discriminação se exerce de forma muitas
vezes dissimulada, mas que os marca muito. Mas está mudando. Sinto mudanças.
É importante
que os descendentes de africanos saibam que eles têm uma história tão bonita
quanto a história da Grécia. Que eles não eram bárbaros, que não são
descendentes de escravos. São descendentes de africanos que foram escravizados.
Para mim o
importante não é que haja cota na universidade. Acho que tem de haver cota em
tudo. Se você vai se candidatar a um cargo de atendente de hotel de primeira
classe, se você for negro, você tem dificuldade. O preconceito é
discriminatório. Ele não impede você de usar o mesmo banheiro, o mesmo
bebedouro, mas dificulta o acesso (do negro) às camadas das classes média e
alta.
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