Literatura
Texto de Alexandre
Dumas, Pai
foi um romancista francês, autor de Os Três Mosqueteiros. Seu nome de
batismo era Dumas Davy de la Pailleterie. Nasceu na região de Aisne, próximo a
Paris.
Havia mais: uma pequena cruz de oliveira incrustada
de nácar, semelhante àquelas que os monges do Santo Sepulcro fazem e os
peregrinos trazem de Jerusalém, havia desaparecido de nossa cabine, e eu a
havia reencontrado na proa da embarcação, acima de uma imagem da Madonna di
Pie’ di Grotta, sob a invocação da qual nossa pequena embarcação estava
colocada. Depois de me ter informado se havia um motivo particular para mudar a
cruz de lugar, e ter sabido que não, eu a retomei de onde estava e a levei à
cabine, na qual ficou desde então. Estava claro que a Madonna, agradecida sem dúvida,
nos protegera na hora do perigo.
Nesse momento eu me virara, e percebi o capitão
próximo a nós.
— Capitão — disse-lhe — parece-me que em todos os
navios napolitanos, genoveses ou sicilianos, quando vem a hora da Ave-Maria, se
faz uma prece em comum. Não é esse o seu hábito a bordo do Speronare?
— De fato, Excelência, de fato! — respondeu
vivamente o capitão — E devo esclarecer que estamos embaraçados por não o
podermos fazer.
— Mas o que o impede?
— Desculpe-me, Excelência, mas como nós conduzimos
com frequência ingleses que são protestantes, gregos que são cismáticos e
franceses que não são nada, temos sempre receio de ferir a crença ou de excitar
a incredulidade de nossos passageiros pela vista de práticas religiosas que não
serão as deles. Mas quando os passageiros nos autorizam a agir cristãmente,
somos muito agradecidos a eles por isso. De sorte que, se o permite…
— Como não, capitão! Eu lhes peço, e se quiserem
podem começar em seguida; parece-me que já está próximo das dezoito horas…
O capitão tirou seu relógio, e vendo que não havia
tempo a perder, anunciou em voz alta:
— A Ave-Maria!
A estas palavras, cada um saiu das escotilhas e
lançou-se no convés. Mais de um, sem dúvida, já havia começado mentalmente a
Saudação Angélica, mas a interrompeu para vir tomar parte na prece geral.
De um extremo ao outro da Itália, essa oração, que cai em uma hora solene,
encerra o dia e abre a noite. Esse momento do crepúsculo, em toda parte cheio
de poesia, no mar se acresce de uma santidade infinita. Essa misteriosa
imensidade do ar e das ondas, esse sentimento profundo da fraqueza humana
comparada ao poder onipotente de Deus, essa escuridão que avança, e durante a
qual o perigo sempre presente vai ainda crescer, tudo isso predispõe o coração
a uma melancolia religiosa, a uma confiança santa que soergue a alma nas asas
da fé. Essa tarde sobretudo, o perigo do qual acabáramos de escapar, e que nos
era lembrado de tempos em tempos por uma onda encapelada ou rugidos longínquos,
tudo inspirava à tripulação e a nós um recolhimento profundo.
No momento em que nos juntávamos no convés, a noite
começava a tornar-se mais espessa no oriente. As montanhas da Calábria e a
ponta do cabo de Pelora perdiam sua bela cor azul para se confundir em uma
tintura acinzentada que parecia descer do céu, como se estivesse caindo uma
fina chuva de cinzas. A ocidente, um pouco à direita do arquipélago de Lipari,
cujas ilhas de formas extravagantes destacavam-se com vigor sobre um horizonte
de fogo, o sol alargado e listrado de longas faixas violetas começava a embeber
a orla de seu disco no Mar Tirreno, que, cintilante e movimentado, parecia
rolar ondas de ouro fundido.
Nesse momento o piloto levantou-se atrás da cabine
e tomou em seus braços o filho do capitão, que pôs de joelhos sobre o estrado.
Abandonando o leme, como se a embarcação estivesse suficientemente guiada pela
oração, sustentou o menino para que o balanço não lhe fizesse perder o
equilíbrio. Esse grupo singular destacou-se logo sobre um fundo dourado,
semelhante a uma pintura de Giovanni Fiesole ou de Benozzo Gozzoli. Com uma voz
tão fraca que apenas chegava até nós, e que entretanto subia até Deus, começou
a recitar a prece virginal, que os marinheiros escutavam de joelhos, e nós
inclinados.
Eis uma dessas lembranças para as quais o pincel é
inábil e a pena insuficiente; eis uma dessas cenas que nenhuma narração pode
descrever, nenhum quadro pode reproduzir, porque a sua grandiosidade está
inteira no sentimento íntimo dos atores que a realizam. Para um leitor de
viagens ou um amador das coisas do mar, será apenas uma criança que ora, homens
que respondem e um navio que flutua. Mas para qualquer um que tiver assistido a
uma cena assim, será um dos mais magníficos espetáculos que ele tenha visto,
uma das mais magníficas lembranças que ele tenha guardado. Será a fraqueza que
reza, a imensidade que olha, e Deus que escuta.
Fonte: Covil
do Orc
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