sexta-feira, 11 de março de 2016

AS BAHIAS E A COZINHA MINEIRA: “PARA O TRANS, TODO DIA É UM GRANDE EVENTO”

Brasil: Bahia/Minas, MPB


A banda trans que faz a melhor música brasileira dos últimos tempos quer apenas um dia comum

El País – O Jornal Global

 Rafael Acerbi, Raquel Virgínia e Assucena Assucena. Lilo Clareto
CAMILA MORAES



Em 2007, um avião deixava São Paulo para aterrissar em Salvador, levando a paulistana Raquel Virgínia. Ao mesmo tempo, outro saía de Salvador e chegava a São Paulo, trazendo a baiana Assucena Assucena. Mas o desencontro durou pouco. Em comum, as cantoras da banda transgênero As Bahias e a Comida Mineira tinham, além do apelido Bahia, o talento musical e o fato de terem nascido meninos, quando na verdade queriam ser meninas. Assim, o destino tratou de juntá-las. Quatro anos se passaram até elas se encontrarem e descobrirem o terceiro elemento de sua equação musical, Rafael Acerbi. Quando o mineiro chegou, ficou pronto o caldo desse trio que anda dando o que falar com a melhor música brasileira que você ouviu nos últimos tempos. Unidos, eles criaram o disco Mulher, que – sem falsas coincidências – defende o direito das mulheres, dos trans e de qualquer um ser o que é.

Aconteceu em 2011. Raquel ¬– que desistiu do sonho de ser cantora de axé em Salvador –, Assucena e Rafael (todos com menos de 30 anos) faziam faculdade de História, na Universidade de São Paulo. Tocavam, cantavam, organizavam saraus e debates acalorados sobre feminismo, negritude e outros temas. Até que Amy Winehouse, morta naquele então aos 27 anos, inspirou os três a criar uma banda, a Preto por Preto (em referência ao hit Back to black), para tocar nas festas da universidade. “Ela passou sozinha, como um cometa, e nos marcou com sua beleza e inteligência, mostrando que cada um tem que ser o que é”, diz Assucena. Desse primeiro projeto “universitário”, como definem, eles assumiram a brasilidade dos gostos musicais de cada um e criaram As Bahias e a Cozinha Mineira. E o salto se dá graças a outra musa inspiradora: Gal Costa.

'Índia', disco de Gal Costa que foi censurado na década de 70.

Um trabalho único e autoral começa a nascer com uma imersão na obra de Gal – especialmente, nos discos que ela lançou entre 1967 (Domingo) e 1983 (Baby Gal). No meio, está Índia( 1973), cuja capa – censurada nos anos 70 – é um close na parte debaixo do biquíni da cantora e a contracapa, ela seminua com os seios à mostra. Mulher, gravado em 2015 em um estúdio paulistano, que – eles descobriram sem querer – é frequentado pela própria diva tropicalista, tem a capa ilustrada pelo artista plástico Will Cega com a textura de um púbis feminino sobre um fundo vermelho, e faz uma provocação parecida.

“Gal nos apresentou um fundamento estético, artístico e sonoro ousado e nos ensinou a construir uma obra para ser apreciada, não só para entreter”, conta Assucena. “Ela é uma camaleoa e virou mesmo um filtro para nós”, explica Raquel. E, como numa dança em que todos sabem o próximo movimento, Rafael complementa: “Gal nos mostrou Luiz Melodia, o próprio Caetano, o Gil... Nos ensinou que você tem que ser autêntico, verdadeiro e fazer escolhas”. A cantora, que completa 50 anos de carreira em 2016, aparece de fato como se fosse à quarta companheira, a mãe modernosa de todos, que lhes falou não só de música, mas de liberdade comportamental, ensinando os filhotes a não ter medo do próprio corpo, nem de nada.

Raquel Virgínia, apelidada de "Bahia'. Lilo Clareto

Essa avalanche musical embasada veio junto com a descoberta, no caso de Raquel Virgínia e de Assucena Assucena, da transexualidade – do que isso significa e até mesmo da palavra em si. “Foi tudo muito rápido, e ainda não sei quem sou. Há três anos, nem pensava nisso. Há dois, saí de vestido na rua pela primeira vez”, diz Raquel, que apesar de se trancar no banheiro quando era pequena para experimentar a maquiagem da avó, nunca quis se esconder. Na infância, tanto ela como Assucena se sentiam estranhas em suas figuras masculinas e ao lado dos que questionavam seu comportamento “diferente” e até sua sanidade mental.

“Ele não brinca com os meninos, nem como os meninos...”, relembra Raquel Virgínia. Ela conta que, de criança, não participava das atividades ditas masculinas. Quando cedia, seus primos a colocavam “na posição onde os homens costumam colocar as mulheres, de incapacidade”. “Ficava na pior posição do jogo, naquela que dizia assim: 'você tem limite”. Dessa maneira, cresceu achando que estava “ficando louca”, até porque “sempre se colocou em prova a sanidade mental das pessoas trans”, lamenta.

Assucena Assucena, que também é "Bahia". Lilo Clareto

Vinda de uma família “muito religiosa e conservadora”, Assucena diz que “tinha uma identidade de gênero muito definida desde pequena”, mas sentia que não podia se assumir e demorou a se aceitar até mesmo como homossexual. “Quando eu vim para São Paulo, passei por uma fase de muita depressão. Minha saída era inventar os nomes fakes de mulher para conversar com os meninos por bate-papo”, relata a baiana nascida em Vitória da Conquista. Foi assim construindo um “eu pela negação”, até que um poema de Fernando Pessoa lhe mostrou que era a hora de assumir sua verdadeira identidade. Era Tabacaria:

Quando quis tirar a máscara
Estava pegada à cara
Quando a tirei e me vi no espelho
Já tinha envelhecido

É com esse grito de liberação na garganta de ambas cantoras que nasce o Mulher– cuja estreia oficial acontece pela primeira vez no Itaú Cultural (SP), dia 18 de março –, feito também da leveza e da veia musical do dono do violão. Rafael foi quem trouxe Clube da Esquina, Milton Gonçalves e também equilíbrio à banda, que ganhou uma dimensão política inesperada, abraçada por todos (Rafael, inclusive) de bom grado. “Não conseguimos nos desvencilhar disso, e nem queremos. Nosso som tem uma relação intrínseca com a nossa vida e o espaço onde a gente circula. E ele ‘empodera’, colocando as meninas como um espelho para as pessoas que querem viver à sua maneira e enxergam nas duas a possibilidade de pensar sobre seu próprio corpo e a sua vida”, diz.

Rafael Acerbi, o elemento mineiro. Lilo Clareto

O segredo está em que a militância não é maior do que a potência musical dos Bahias e a Cozinha Mineira, que parece fazer música progressiva brasileira – se é que o gênero existe. Vai para cima e para baixo, acelerando e freando a emoção em canções catárticas que revisitam a diversidade musical do país e a levam para frente. Tem forró e axé, tem samba e MPB e, sem dúvida, tem provocação em letras que tocam nos âmagos das questões. É o caso de Uma canção pra você (Jaqueta Amarela), em que Assucena fala sobre a ausência do amor, e Josefa Maria, uma homenagem à avó de Raquel, vinda do Nordeste para São Paulo, onde foi doméstica a vida inteira.

O que o trio quer com tudo isso? Raquel Virgínia andou pensando sobre o assunto e é rápida ao dizer que deseja levar “uma postura de paz e uma proposta musical de felicidade e de ingenuidade mesmo” ao máximo de palcos possível. Tanto ela como Assucena se ressentem da falta de apoio da família e acreditam que “tudo para os trans é um grande evento”. “A gente podia estar comendo um churrasco todo domingo, mas para nós coisas que são muito simples deixam de ser. Coisas normais que todo mundo faz, tipo beijar na boca, sair de mão dada... Mas nada vai ser de boa”, pondera a Raquel, figura doce e combativa para quem “só o tempo” dirá muita coisa.

Se no campo afetivo algumas questões ainda procuram resposta, na música a história é outra. O sucesso já sorriu para a banda, e seu caminho agora é continuar na estrada com um trabalho independente e de qualidade. “Queremos mandar na nossa própria carreira e inclusive ter poder para trazer mais artistas e transformar a arte”, diz Raquel. Afinal, ela sabe, todo dia é um bom dia para conquistar o mundo.

As Bahias e a Cozinha Mineira. Lilo Clareto



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