sábado, 19 de março de 2016

AS BRUXAS DE MACBETH

Literatura

Publicado por Paulo Cichelero
Eterno estudante de tudo, Paulo é ilustrador, inventor-ensaísta e leitor incorrigível. É também especialista em coisas que não lhe dizem respeito. Foragido da faculdade de História, atualmente encontra-se refugiado em um instituto de Letras, onde lê Kafka e toma muito café. 




Em um caldeirão, as irmãs bruxas preparavam uma poção com curiosos ingredientes: olhos de lagartixa, pelo de morcego, asa de coruja, escama de dragão. Não, não em Harry Potter - em Shakespeare!


É curioso como Shakespeare, um autor tão dado a gracinhas e a temas pitorescos, tenha adquirido uma reputação tão austera. Sem dúvida, seu domínio da língua inglesa assombra a muitos leitores, devido à dificuldade oferecida pelo seu vocabulário de época. Isso, somado à riqueza de seus diálogos e de suas caracterizações humanas, conferiu-lhe um ar de sabedoria e severidade que, apesar de respeitável, acaba afastando muita gente. As suas peças, entretanto, são cheias de humor e fantasia: mesmo em tragédias como Macbeth e Hamlet, percebemos não apenas o bom-humor do dramaturgo, em piadas e ironias, mas também o seu fascínio pelo sobrenatural, como, por exemplo, em cenas de feitiçaria e aparição de fantasmas.

O poder mágico das três irmãs bruxas, em Macbeth, é determinante para o andamento desta que é uma de suas melhores peças. Macbeth, o protagonista, sobe ao trono da Escócia graças a uma série de crimes e intrigas, mas a todo momento guiado pelas forças sobrenaturais. São as feiticeiras que, à semelhança das três irmãs moiras da mitologia grega, decidem o futuro das personagens.


Em um caldeirão, as irmãs preparam uma poção com curiosos ingredientes: olhos de lagartixa, dedos de rã, língua de cão, perna de lagarto, ferrão de escorpião, asa de coruja, escama de dragão, dedo de nenê estrangulado no parto, raiz de cicuta, nariz de turco, fígado de judeu blasfemo, vísceras de um tigre, múmia de bruxa, pelo de morcego, dente de lobo, e muitos outros. Juntas, as três bruxas cantam a receita em andamento; o seguinte trecho de sua canção chegou a ser trilha em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban:

"Double, double, toil and trouble / Fire burn and cauldron bubble / Double, double, toil and trouble / Something wicked this way comes!"
* Dúvida, dúvida, trabalho e inquietação / O fogo queima e borbulha o caldeirão / Dúvida, dúvida, trabalho e inquietação / Algo maligno vem por aí!


Se esses elementos fantásticos fossem tomados, à época, como nós o encaramos hoje, é bem provável que Shakespeare fosse tachado de um autor de "contos de fadas". Para Samuel Johnson, um especialista em Shakespeare, isso teria desqualificado as suas peças; mas tal não ocorreu porque, em inícios do século XVII, quando Macbeth é encenado pela primeira vez, as forças sobrenaturais eram vistas como algo plenamente real pelo senso comum. O próprio Rei Jaime testemunhava ter presenciado casos de bruxaria e, tomado como sábio, escreveu um manual sobre o assunto intitulado Demonologia, muito difundido em seu tempo.

"Então [à época] a doutrina da bruxaria foi poderosamente inculcada; e como a maior parte da humanidade não tem outra razão para suas opiniões senão a de que elas estão em moda, não há dúvida de que essa persuasão fez rápido progresso, uma vez que a presunção e a credulidade cooperaram em seu favor. [...] Como os prodígios sempre são vistos na proporção em que são esperados, bruxas eram descobertas todos os dias e se multiplicavam tão rapidamente em alguns lugares que Bishop Hall menciona um vilarejo em Lancashire onde o número de bruxas era maior do que o de casas."


O trecho acima, escrito por Samuel Johnson, constitui uma clara crítica histórica, mas é também um lembrete. Devemos nos perguntar, sobre nossa própria época: quais são as grandes ficções tomadas pelo senso comum, atualmente, como verdades universais, e que nos fará parecer ridículos no futuro próximo? Temos alguma razão para pensar que, em nosso próprio século, todas as alucinações coletivas foram extintas? Shakespeare pode ter sido um gênio da literatura, mas ele próprio não estava imune à credulidade de sua cultura. E quanto a nós, que não somos nenhum Shakespeare?


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