Brasil: (música) MPB
Publicado por Ricardo Scar.
Amante do
churrasquinho e ócio gregos...
Uma breve percepção sobre como
o presente e o passado por vezes dialogaram na obra do compositor cearense.
Tal como uma versão MPB do
movimento punk original, que desprezava a ideologia Flower Power da geração
anterior, nosso requintado Belchior por diversas vezes expressou em suas
canções uma visão crítica sobre a ausência de idealismo na juventude da segunda
metade dos anos setenta, já devidamente incorporada, como se dizia à época, ao
“sistema”. Mas, ao contrário dos primeiros, sua mensagem não era a de uma
simples ruptura com os valores da utopia seiscentista, sendo que as diversas
citações aos símbolos e elementos do período demonstram o quanto esta foi
influente em sua formação.
Em “Comentários a Respeito de
John”, por exemplo, ele faz uma referência a Lennon e à canção “Happiness Is A
Warm Gun”, dos Beatles, e com certa melancolia nos lembra o quão efêmera foi
aquela lisérgica e coletiva quimera, já há tempos devorada pela realidade:
Saia do meu caminho/ Eu prefiro
andar sozinho/ Deixe que eu decida a minha vida/ João! O tempo andou mexendo
com a gente sim! /John! Eu não esqueço (Oh No! Oh No!) / A felicidade / É uma
arma quente / Quente, quente...
Mas a expressão mais contundente
deste sentimento algo nostálgico surge em “Velha Roupa Colorida”:
E o que há algum tempo era novo,
jovem/ Hoje é antigo/ E precisamos todos rejuvenescer/ Nunca mais você saiu à
rua em grupo reunido/ O dedo em V, cabelo ao vento/ Amor e flor que é do
cartaz/ No presente, a mente, o corpo é diferente/ E o passado é uma roupa que
não nos serve mais
Por sua vez, em “A Palo Seco” há bem
menos complacência com o idealismo e, de quebra, a contextualização das
realidades distintas das Américas por meio de uma sutil citação de dois gêneros
musicais:
Se você vier me perguntar por
onde andei/ No tempo em que você sonhava/ De olhos abertos, lhe direi:/ Amigo,
eu me desesperava/
Tenho vinte e cinco anos/ De
sonho e de sangue/ E de América do Sul/ Por força deste destino/ Um tango
argentino/ Me vai bem melhor que um blues/ Sei que assim falando pensas/ Que
esse desespero é moda em 76/ E eu quero é que esse canto torto/ Feito faca,
corte a carne de vocês
Em outras ocasiões Belchior
brinca com elementos (não tão) distintos assim como o Corvo, de Edgar Allan Poe
e o Assum Preto de Luiz Gonzaga, talvez ainda passando pelo Pássaro Negro dos
Beatles, para enfim desaguar na inexorabilidade do tempo:
Como Poe, poeta louco americano/
Eu pergunto ao passarinho: "Blackbird, o que se faz?"/ "Raven
never raven never raven"/ Blackbird me responde/ Tudo já ficou pra trás/
Assum preto me responde/ O passado nunca mais
Se em “Velha Roupa Colorida” as
referências são especificamente aos sonhos perdidos dos anos sessenta é em
“Como Nossos Pais” – quando a temática se repete - que a passagem do tempo (e
de nossa juventude) é exposta de forma ainda mais abrangente:
Já faz tempo/ E eu vi você na
rua/ Cabelo ao vento/ Gente jovem reunida/ Na parede da memória/ Esta
lembrança/ É o quadro que dói mais.../ Minha dor é perceber/ Que apesar de
termos feito tudo, tudo, tudo/ Tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos/ E
vivemos/ Como Os Nossos Pais...
Havia de certo uma resignação
sobre como o presente se direcionava (incluindo o contexto de nosso regime
ditatorial vivido à época) e uma busca incessante por uma nova forma
alternativa de vivê-lo e, enfim, rejuvenescer-se. Cerca de uma década depois,
já nos anos oitenta dos yuppies, há muito mais sarcasmo no canto do poeta,
quiçá jogando a toalha, como nos versos de “Os Profissionais”:
Flower Power! Que conquista!/ Mas
eis que chegou o florista/ Cobrou a conta e sumiu/ Amor,coisa de amadores/ Vou
seguir-te aonde f(l)ores!/ Vamos lá, ex-sonhadores/ À mamãe que nos pariu!
Em 2013, com o cartunista
Carlos Latuff.
Dentro do grupo de músicos que
nos anos 70 ficou conhecido como Pessoal do Ceará, Belchior certamente foi o
que mais expandiu seu universo para além da temática nordestina, expressando
também as paixões e alucinações das vidas urbanas nas grandes cidades, com
canções de amor repletas de figuras de linguagem e referências à cultura pop, o
que certamente formam um capítulo à parte em sua obra.
Infelizmente, não temos sua visão
em forma de canções sobre nossos agitados últimos anos e nem sequer sabemos se
há o seu interesse em externa-las. Pois se não vivemos o marasmo de outrora, de
certo o crescente recalque reacionário que agita nosso presente deve doer muito
em seu selvagem coração.
Há mais de cinco anos Belchior,
junto a sua companheira Edna, optou por uma vida reclusa e, segundo noticiado
pela imprensa, deixou pendências de ordem financeira e familiar. A notícia não
demorou a gerar sensacionalismo e piadas na internet. Quando encontrado por uma
equipe da TV brasileira no Uruguai, ele afirmou que estava bem, que não
abandonara a carreira e trabalhava em projetos de língua espanhola, sem dar
satisfações sobre sua vida particular.
Suas palavras me bastaram e ele
até poderia ter cantarolado os três primeiros versos de “Arte Final” pra essa
turma toda (Desculpe qualquer coisa, passe outro dia,/ Agora eu estou por fora,
volto logo,/ Não perturbe, pra vocês eu não estou.) mas educadamente não o fez.
E entre nós, fãs do artista,
restou a quase ironia de viajarmos ao passado na trilha de suas canções ainda
que isso certamente ocorreria, independente do presente. E o desejo que a
pessoa Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes esteja sempre bem.
Onde quer que esteja.
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