quarta-feira, 23 de março de 2016

BELCHIOR: AQUI, ALI E EM TODO LUGAR



Brasil: (música) MPB


Publicado por Ricardo Scar.
Amante do churrasquinho e ócio gregos...


Uma breve percepção sobre como o presente e o passado por vezes dialogaram na obra do compositor cearense.





Tal como uma versão MPB do movimento punk original, que desprezava a ideologia Flower Power da geração anterior, nosso requintado Belchior por diversas vezes expressou em suas canções uma visão crítica sobre a ausência de idealismo na juventude da segunda metade dos anos setenta, já devidamente incorporada, como se dizia à época, ao “sistema”. Mas, ao contrário dos primeiros, sua mensagem não era a de uma simples ruptura com os valores da utopia seiscentista, sendo que as diversas citações aos símbolos e elementos do período demonstram o quanto esta foi influente em sua formação.

Em “Comentários a Respeito de John”, por exemplo, ele faz uma referência a Lennon e à canção “Happiness Is A Warm Gun”, dos Beatles, e com certa melancolia nos lembra o quão efêmera foi aquela lisérgica e coletiva quimera, já há tempos devorada pela realidade:
Saia do meu caminho/ Eu prefiro andar sozinho/ Deixe que eu decida a minha vida/ João! O tempo andou mexendo com a gente sim! /John! Eu não esqueço (Oh No! Oh No!) / A felicidade / É uma arma quente / Quente, quente...
Mas a expressão mais contundente deste sentimento algo nostálgico surge em “Velha Roupa Colorida”:
E o que há algum tempo era novo, jovem/ Hoje é antigo/ E precisamos todos rejuvenescer/ Nunca mais você saiu à rua em grupo reunido/ O dedo em V, cabelo ao vento/ Amor e flor que é do cartaz/ No presente, a mente, o corpo é diferente/ E o passado é uma roupa que não nos serve mais
Por sua vez, em “A Palo Seco” há bem menos complacência com o idealismo e, de quebra, a contextualização das realidades distintas das Américas por meio de uma sutil citação de dois gêneros musicais:
Se você vier me perguntar por onde andei/ No tempo em que você sonhava/ De olhos abertos, lhe direi:/ Amigo, eu me desesperava/
Tenho vinte e cinco anos/ De sonho e de sangue/ E de América do Sul/ Por força deste destino/ Um tango argentino/ Me vai bem melhor que um blues/ Sei que assim falando pensas/ Que esse desespero é moda em 76/ E eu quero é que esse canto torto/ Feito faca, corte a carne de vocês
Em outras ocasiões Belchior brinca com elementos (não tão) distintos assim como o Corvo, de Edgar Allan Poe e o Assum Preto de Luiz Gonzaga, talvez ainda passando pelo Pássaro Negro dos Beatles, para enfim desaguar na inexorabilidade do tempo:
Como Poe, poeta louco americano/ Eu pergunto ao passarinho: "Blackbird, o que se faz?"/ "Raven never raven never raven"/ Blackbird me responde/ Tudo já ficou pra trás/ Assum preto me responde/ O passado nunca mais
Se em “Velha Roupa Colorida” as referências são especificamente aos sonhos perdidos dos anos sessenta é em “Como Nossos Pais” – quando a temática se repete - que a passagem do tempo (e de nossa juventude) é exposta de forma ainda mais abrangente:
Já faz tempo/ E eu vi você na rua/ Cabelo ao vento/ Gente jovem reunida/ Na parede da memória/ Esta lembrança/ É o quadro que dói mais.../ Minha dor é perceber/ Que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo/ Tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos/ E vivemos/ Como Os Nossos Pais...
Havia de certo uma resignação sobre como o presente se direcionava (incluindo o contexto de nosso regime ditatorial vivido à época) e uma busca incessante por uma nova forma alternativa de vivê-lo e, enfim, rejuvenescer-se. Cerca de uma década depois, já nos anos oitenta dos yuppies, há muito mais sarcasmo no canto do poeta, quiçá jogando a toalha, como nos versos de “Os Profissionais”:
Flower Power! Que conquista!/ Mas eis que chegou o florista/ Cobrou a conta e sumiu/ Amor,coisa de amadores/ Vou seguir-te aonde f(l)ores!/ Vamos lá, ex-sonhadores/ À mamãe que nos pariu!

 Em 2013, com o cartunista Carlos Latuff.
Dentro do grupo de músicos que nos anos 70 ficou conhecido como Pessoal do Ceará, Belchior certamente foi o que mais expandiu seu universo para além da temática nordestina, expressando também as paixões e alucinações das vidas urbanas nas grandes cidades, com canções de amor repletas de figuras de linguagem e referências à cultura pop, o que certamente formam um capítulo à parte em sua obra.
Infelizmente, não temos sua visão em forma de canções sobre nossos agitados últimos anos e nem sequer sabemos se há o seu interesse em externa-las. Pois se não vivemos o marasmo de outrora, de certo o crescente recalque reacionário que agita nosso presente deve doer muito em seu selvagem coração.
Há mais de cinco anos Belchior, junto a sua companheira Edna, optou por uma vida reclusa e, segundo noticiado pela imprensa, deixou pendências de ordem financeira e familiar. A notícia não demorou a gerar sensacionalismo e piadas na internet. Quando encontrado por uma equipe da TV brasileira no Uruguai, ele afirmou que estava bem, que não abandonara a carreira e trabalhava em projetos de língua espanhola, sem dar satisfações sobre sua vida particular.
Suas palavras me bastaram e ele até poderia ter cantarolado os três primeiros versos de “Arte Final” pra essa turma toda (Desculpe qualquer coisa, passe outro dia,/ Agora eu estou por fora, volto logo,/ Não perturbe, pra vocês eu não estou.) mas educadamente não o fez.
E entre nós, fãs do artista, restou a quase ironia de viajarmos ao passado na trilha de suas canções ainda que isso certamente ocorreria, independente do presente. E o desejo que a pessoa Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes esteja sempre bem. Onde quer que esteja.

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