Publicado por Flávia Farhat
O que o cinema e a literatura têm a dizer sobre um dos mais criticados estilos de vida de todos os tempos.
Você já leu esse texto antes.
Você o leu nas aulas de história, nas falas de dramas politizados e nos trechos de músicas pop. Você o leu na bandeja de seu Big Mac, na etiqueta do seu tênis Nike e na contracapa daquele livro que você não leu. Você o leu em partes, e é por isso que você não se lembra. Fragmentos espalhados por cada um dos produtos de massa que você consumiu, testou ou engoliu. No fundo, você já sabe cada palavra do que será dito. Você conhece a história, mas nunca organizou os capítulos. Vamos esclarecer.
Comecemos pelo que você já sabe: há algo errado conosco. Não pelo que somos ou pelo que fazemos, mas pelo que queremos. Pelo que nos esquecemos de querer. Aspirações cada vez menos pessoais padronizam com velocidade alarmante as vontades de uma classe média que em algum ponto perdeu sua originalidade e passou a olhar sempre para um mesmo lado; a querer sempre as mesmas coisas. Não me entenda mal: sonhar com a casa no subúrbio, o carro na garagem, o emprego, a esposa e os filhos não é pecado e tampouco o torna um capitalista inconsciente. O problema não é querer, mas sim transformar suas conquistas em uma vitrine para aquele vizinho que, sejamos francos, nem se importa tanto assim.
Se o exibicionismo agora incomoda, é porque finalmente estamos acordando para uma fatalidade que nos foi enfiada goela abaixo centenas de vezes. Essa confusão de veja-tudo-que-eu-tenho começou lá atrás, quando a terra do Tio Sam saiu vencedora e cheia de orgulho ao fim da Primeira Guerra Mundial. Confiantes na prosperidade de sua vitória, a população das nações unidas passou a consumir como louca, apostando na ideia trágica de que o nível de felicidade de uma pessoa podia ser medido pela quantidade de bens materiais acumulados. Surgia o American Way of Life e com ele um perigoso atalho para a ‘idiotizarão’ humana.
Nessa névoa de frivolidade e inversão de valores, Hollywood pouco ajudou. Uma enxurrada de filmes que só fizeram reforçar os princípios desta nova sociedade de aparências nos ensinou o que significava ser “bem-sucedido”, sem direito a reinterpretações. Fomos divididos entre vencedores e perdedores; invejosos e invejados.
Da urgência em denunciar essa nova realidade nascem dois clássicos que se ramificam em galhos paralelos: um para o cinema; um para a literatura. O primeiro, Beleza Americana, pisa justamente nessa tecla da máscara para a paranoia. Gravado como uma comédia mórbida, o filme nos apresenta a Lester Burnham, “um homem comum sem nada a perder”. Lester tem família, emprego estável, casa e carro na garagem, mas não poderia estar mais infeliz. Sua esposa é o estereótipo perfeito da mulher superficial a beira de um colapso nervoso; um personagem vazio que repete frases clichês para conseguir manter a compostura. É no meio deste vácuo existencial que Lester acaba conhecendo Ângela, a amiguinha sensual de sua filha adolescente, e vê-se estranhamente obcecado por ela. Sua fixação no maior estilo Lolita transforma o que era uma crise de meia idade em um passaporte para recuperar o gosto pela vida, amarrando críticas sociais inteligentíssimas dentro de um roteiro que entretém ao mesmo tempo em que nos esbofeteia.
O segundo produto cultural que engancha brilhantemente uma meditação sobre as futilidades modernas é um livro já há muito tempo reconhecido, elogiado e – graças a Deus – lido por muita gente. Clube da Luta, de Chuck Palahniuk, ficou famoso pela reviravolta de seu final, mas deve ser analisado como obra de arte desde as primeiras páginas. Construído com uma narrativa rápida e de estilo marcante, a história gira em torno de dois personagens: o primeiro, chamado apenas de Narrador, é um sujeito absolutamente ordinário que aceita o consumismo como forma passiva de preencher a insignificância de sua existência. Sua vida muda drasticamente quando um encontro ocasional o leva a conhecer Tyler, um indivíduo intrigante que vive fora dos limites impostos pela sociedade.
Clube da Luta é um livro de muitos pontos altos e uma vasta variedade de reflexões fortemente inspiradoras. Não vale a pena estender-se muito em seu resumo: aqueles familiarizados com a história sabem que sintetizá-lo seria um desperdício; se não uma violação à criatividade de Palahniuk. Vale apenas dizer que em tempos de inquietação moral uma obra como esta tem a finalidade emergencial de nos acordar; e o faz com imensa destreza.
Beleza Americana e Clube da Luta são apenas alguns dos exemplos dos esforços que grandes gênios criativos têm ao tentar transmitir uma mensagem que, de uma vez por todas, nos liberte. Liberte-nos da corrida frenética pela realização de sonhos que nunca foram nossos. Liberte-nos do orgulho, da futilidade e das existências vazias. Liberte-nos da mobília impecável e da gravata apertada demais.
E para finalizar, vem aí a pergunta de um milhão de dólares: se tantas vezes já lemos textos como esse e nos conscientizamos dos equívocos de seguir passos que não foram criados por nós, por que diabos continuamos gastando nosso fôlego atrás de objetivos que nos foram impostos, ao invés de buscarmos aquilo que genuinamente faz nossos corações baterem mais rápido? God bless America.
© obvious: http://obviousmag.org/lumiere/2016/beleza-americana-chuck-palahniuk-e-o-american-way-of-life.html#ixzz42V1b1FdF
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