Literatura: história de
uma cidade que foi a primeira capital do Brasil
O
depoimento de um menino de onze anos, eu mesmo.
Por Luiz
Carlos Facó
Era o mês de março de 1949. A Bahia ebulia, principalmente
Salvador. Seus habitantes superavam a
rotina de suas vidas. Estavam mais alegres, mais resolutos. A pachorra que os
embalava transformara-se em cadência febril.
Considerado preguiçoso, para mim descansado, um pouco mais
tranquilo que os demais brasileiros, o baiano mostrava-se dinâmico, criativo,
participativo e extremamente orgulhoso das festividades que ocorreriam no
decorrer daquele ano. O quarto centenário da fundação da Cidade de Salvador, a
29 de março, e o primeiro centena de nascimento de Rui Barbosa, a 05 de
novembro.
Certamente que aquelas razões eram suficientes para tão
expressiva euforia. Mas por si sós não se constituíam nas únicas responsáveis.
Vários outros fatos , ocorridos no anos anteriores, corroboravam para aquele
estuário de contentamento. Acabara a Segunda Grande Guerra. A maioria dos
nossos pracinhas, vencedores nos campos da Itália de batalhas memoráveis em
Castel Nuovo, Monte Castello, Montese,
estava de volta. Embora lamentássemos a irreparável perda de um dos quarenta e nove
integrantes do grupo Senta a Pua, a nossa força aérea, Frederico Gustavo dos
Santos, piloto baiano, abatido no palco de guerra.
O Estado Novo, que
através de uma constituição nefasta
permitia ao Presidente Getúlio Vargas exilar, desterrar, prender,
suspender os direitos dos cidadãos censurar a imprensa e a correspondência
postal, determinar invasões domiciliares, sem limites, ruíra.
Um novo Presidente da República, O General Eurico Gaspar
Dutra, assumira o mandato avalizado pela maioria dos votos populares, numa
eleição limpa, pacífica, ordeira e universal, realizada a 2 de dezembro de
1945.
Uma Assembleia Constituinte, eleita democraticamente,
providenciara uma Constituição com perfil moderno indo ao encontro dos anseios
populares e das demandas de uma nova ordem política mundial que se delineara
com o pós-guerra.
A 10 de abril de 1947, Otávio Mangabeira, engenheiro civil ,
titular da cátedra de Astronomia da Escola Politécnica da Bahia, cuja vida fora
inteiramente dedicada ao exercício da política, tomava posse como o 27º Governador
do Estado, juntamente com os novos constituintes baianos.
A imprensa se libertara dos azedumes da censura.
Os partidos políticos se organizaram, tomara vida, inclusive
o Partido Comunista se legalizou.
A ordem econômica era estável e as finanças públicas
encontravam-se em situação favorável. O estoque de divisas em poder do governo
central, amealhado com a venda de nossos
produtos primários durante o período de
guerra, era substancial. Não havia inflação. Porém, muito estava por se fazer e
refazer.
A sucessão de tantos fatos positivos redundava naquela boa
disposição do povo, naquela ânimo
inusual, naquela altivez desmedida, quadro que tinha como moldura as ações do
governo estadual, que agia em todas as áreas sociais, privilegiando a educação
e a saúde, beneficiando as camadas mais carentes da população, e preparando
Salvador para as efemérides que se avizinhavam.
Num trabalho orquestrado pelo experimentado e astuto Otávio
Mangabeira, com os olhos postos na disputa da sucessão presidencial. Aspiração
válida pela sua capacidade invulgar e pelas sólidas credenciais que portava,
conferindo-lhe credibilidade. E trabalho executado por um secretariado onde
despontavam nomes de grande envergadura profissional e intelectual, como os de
Albérico Fraga, Oliveira Brito, Anísio Teixeira, Epaminondas Berbet de Castro,
Pimenta da Cunha, Nestor Duarte, Rogério Gordilho, Dantas Júnior, Wandeley de
Pinho. Hoje, infelizmente, não se encontram homens como esses. Dignos,
corretos, probos. Senhores absolutos da moral e dos bons costumes. Dos
princípios morais e éticos, que devem existir em todos nós, principalmente naqueles
que se dedicam ao serviço público. Vide a crise atual. A mixórdia dos seus
protagonistas. Todos, com raras exceções, a serviço de interesses de grupelhos
e pessoas, da dominação do poder pelo poder, sobretudo pelos diálogos nada
republicanos que travam entre eles, visando desmoralizar a justiça e os mais
comezinhos princípios que deveriam nortear a administração pública.
A aquela equipe coube mais que duplicar a quantidade de
unidades escolares na Bahia. De 2115 em 1946, elas passaram para o total de 5 000 em 1949. Os alunos
matriculados, no mesmo período, transpuseram o número de 11.000 para o de 180
000. Erguer a Escola Parque, um centro educacional sem similar no Brasil. Do
Curriculum de então constavam as matérias Educação Moral e Cívica, Trabalhos
Manuais, Desenho, Canto Orfeônico, Língua Francesa, Inglesa e Espanhola, tudo
isso implodido pelas administrações que se seguiram e pela vigente hoje no
país. Pobres gestores. Abrir novos
postos de saúde, ambulatórios, hospitais. Instalar estações agrícolas
experimentais de cana e algodão. Concluir os trabalhos de reflorestamento em
Maracás e Jequiriçá. Fazer ressurgir em Nazaré das Farinhas o Centro Agrícola e
Profissional no Aprendizado Clemente Caldas. Implantar adutoras, construir
reservatórios d’água na Capital, nos bairros do Garcia e na Cruz do Cosme.
Enfim, modernizar Salvador, até então uma cidade provinciana, de estreitas
ruas, tortuosas e de aspecto decadente.
Sob a batuta de Wanderley de Pinho rasgam-se as grandes
avenidas e ruas. A do Centenário, do Tororó, Amaralina-Itapoã. Implanta-se o
Viaduto da Sé. Reforma-se o teatro do Instituto Normal. Erguem-se o Hotel da
Bahia e o Forum Rui Barbosa, o estádio de futebol da Fonte Nova.
Pavimentam-se
ruas. Complementa-se e melhora-se a iluminação pública. Numa prévia preparação
do cenário para o apoteótico desfile cívico programado para saudar os
quatrocentos anos de fundação da cidade.
E ele acontece de maneira irrepreensível e inesquecível no
dia aprazado. À frente do espetáculo de cultura e arte, que extasiou os baianos,
estava a figura de Chianca de Garcia. Artista e diretor teatral, de origem
portuguesa, que com rara sensibilidade reescreveu a nossa história, em cenas
indescritíveis, apresentando-a ao público num desfile soberbo, emocionante,
vibrante. Onde a chama do patriotismo, da ‘baianidade’, era atiçada pela beleza
das alegorias pela beleza das alegorias e dos figurantes.
Tudo conspirou para o sucesso da empresa. Depois de uma
manhã chuvosa, o céu fez-se claro, o sol onipresente. A passarela do desfile,
do Largo da Vitória à Praça da Sé, tornara-se um palco digno da apresentação do
mais monumental dos espetáculos. O povo, ordeiro, educadamente postado nos
passeios, aguardava ansioso, poder conhecer, como num passe de mágica, todos os
episódios que marcaram a nossa história. E assim foi feito.
Às 17 horas, abrem-se as hipotéticas cortinas do proscênio e
começa o préstito, mostrando as caravelas da armada de Tome de Souza, entre as
quais, na nau capitânia, ele luzia numa postura espartana. Caramuru, encarnado
por Dilson Queiroz; Catarina Paraguaçu, representada por Mary Gonçalves; e os
índios recepcionaram nosso primeiro governante.
Em ordem cronológica, seguiam-se quadros retratando vários
episódios da nossa vida histórica. Ali estavam D. Marcos Teixeira, alcunhado de
o Bispo Marcial, pelo seu destemor no combate às tropas holandesas que
invadiram a cidade em 1624. Uma alegoria significando a terra enlutada,
chorando pelas humilhações e depredações sofridas por tal invasão. Dignitários
das sociedades dos séculos XVII, XVIII, XIX , representados por figurantes
vestidos num refinamento invulgar, cuja fidelidade era buscada nos menores
detalhes. Os senhores de engenhos.
Escravos Tapas, Yorubás, Krumanos, Egbás, Géges, Dahomeyanos, Minas, Ussás ou Haussás, Angola, Galinhas, Timinis,
representativos das nações negras e que
foram forçados a laborar a nossa terra.
Fidalgos, um dos quais foi retratado por meu tio João Facó, o quem muito me
honra, pois nascido em Beberibe no Ceará, não titubeou em fazer parte daquela
expressão histórica da baianidade. Na verdade ele era e representava o ser
baiano. Damas transportadas em cadeirinhas de arruar. Figuras cuja policromia
nas indumentárias traduzia alegria. Vultos históricos como Rui Barbosa, cujo
papel foi desempenhado por José Carlos Barreto, coincidentemente discípulo do
grande mestre. Castro Alves, vivenciado por seu primo de em terceiro grau
Fernando Alves. Maria Quitéria, pela senhora José Alberto Fiuza. Soror Joana
Angélica, por Lolita Campos, mais tarde a primeira mulher a ingressar como
professora na Escola Politécnica da Bahia. Padre Antônio Vieira. Dona Francisca
de Sandes, Lima e Silva, encarnados, respectivamente, por Olívia Imbassai e
Fernando Almeida. Os capitães de Castela, postos em cena por jovens oriundos da
colônia espanhola aqui radicada.
Era o passado redivivo que marchava diante dos nossos olhos
nos seus melhores e piores momentos, arrancando palmas frenéticas do público
extasiado, gritos, interjeições de admiração, lágrimas de emoção, ou seja, de
toda gente de Salvador ali reunida.
Tudo foi resplandecentemente excepcional. Para mim, um
pré-adolescente, entre emocionado e
aturdido, com o coração transbordando de patriotismo, ficou difícil traduzir o
que era mais empolgante. Se a transcendência
da história narrada, a imponência dos figurantes, o matiz de suas
roupas, a arte e o bom gosto das alegorias, a competência dos organizadores do
espetáculo ou o fervor que cada assistente transmitia através de gestos e do
semblante.
Até hoje não consigo definir o que presenciei e senti
naqueles momentos mágicos. Só sei que nas minhas retinas, na minha alma, no meu
coração e nas minhas lembranças ficaram para sempre gravados aqueles instantes
da história do Brasil, da poesia, da arte, que dificilmente se repetirá em
qualquer outro lugar do mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário