quarta-feira, 23 de março de 2016

OS QUATROCENTOS ANOS DE SALVADOR (1549-1949) – BAHIA, BRASIL



Literatura: história de uma cidade que foi a primeira capital do Brasil

 O depoimento de um menino de onze anos, eu mesmo.

Por Luiz Carlos Facó

Era o mês de março de 1949. A Bahia ebulia, principalmente Salvador. Seus habitantes superavam  a rotina de suas vidas. Estavam mais alegres, mais resolutos. A pachorra que os embalava transformara-se em cadência febril.


Considerado preguiçoso, para mim descansado, um pouco mais tranquilo que os demais brasileiros, o baiano mostrava-se dinâmico, criativo, participativo e extremamente orgulhoso das festividades que ocorreriam no decorrer daquele ano. O quarto centenário da fundação da Cidade de Salvador, a 29 de março, e o primeiro centena de nascimento de Rui Barbosa, a 05 de novembro.

Certamente que aquelas razões eram suficientes para tão expressiva euforia. Mas por si sós não se constituíam nas únicas responsáveis. Vários outros fatos , ocorridos no anos anteriores, corroboravam para aquele estuário de contentamento. Acabara a Segunda Grande Guerra. A maioria dos nossos pracinhas, vencedores nos campos da Itália de batalhas memoráveis em Castel  Nuovo, Monte Castello, Montese, estava de volta.  Embora lamentássemos  a irreparável perda de um dos quarenta e nove integrantes do grupo Senta a Pua, a nossa força aérea, Frederico Gustavo dos Santos, piloto baiano, abatido no palco de guerra.

O Estado Novo,  que através de uma constituição nefasta  permitia ao Presidente Getúlio Vargas exilar, desterrar, prender, suspender os direitos dos cidadãos censurar a imprensa e a correspondência postal, determinar invasões domiciliares, sem limites, ruíra.


Um novo Presidente da República, O General Eurico Gaspar Dutra, assumira o mandato avalizado pela maioria dos votos populares, numa eleição limpa, pacífica, ordeira e universal, realizada a 2 de dezembro de 1945.

Uma Assembleia Constituinte, eleita democraticamente, providenciara uma Constituição com perfil moderno indo ao encontro dos anseios populares e das demandas de uma nova ordem política mundial que se delineara com o pós-guerra.

A 10 de abril de 1947, Otávio Mangabeira, engenheiro civil , titular da cátedra de Astronomia da Escola Politécnica da Bahia, cuja vida fora inteiramente dedicada ao exercício da política, tomava posse como o 27º Governador do Estado, juntamente com os novos constituintes baianos.
A imprensa se libertara dos azedumes da censura.

Os partidos políticos se organizaram, tomara vida, inclusive o Partido Comunista se legalizou.
A ordem econômica era estável e as finanças públicas encontravam-se em situação favorável. O estoque de divisas em poder do governo central, amealhado  com a venda de nossos produtos primários durante  o período de guerra, era substancial. Não havia inflação. Porém, muito estava por se fazer e refazer.


A sucessão de tantos fatos positivos redundava naquela boa disposição  do povo, naquela ânimo inusual, naquela altivez desmedida, quadro que tinha como moldura as ações do governo estadual, que agia em todas as áreas sociais, privilegiando a educação e a saúde, beneficiando as camadas mais carentes da população, e preparando Salvador para as efemérides que se avizinhavam.


Num trabalho orquestrado pelo experimentado e astuto Otávio Mangabeira, com os olhos postos na disputa da sucessão presidencial. Aspiração válida pela sua capacidade invulgar e pelas sólidas credenciais que portava, conferindo-lhe credibilidade. E trabalho executado por um secretariado onde despontavam nomes de grande envergadura profissional e intelectual, como os de Albérico Fraga, Oliveira Brito, Anísio Teixeira, Epaminondas Berbet de Castro, Pimenta da Cunha, Nestor Duarte, Rogério Gordilho, Dantas Júnior, Wandeley de Pinho. Hoje, infelizmente, não se encontram homens como esses. Dignos, corretos, probos. Senhores absolutos da moral e dos bons costumes. Dos princípios morais e éticos, que devem existir em todos nós, principalmente naqueles que se dedicam ao serviço público. Vide a crise atual. A mixórdia dos seus protagonistas. Todos, com raras exceções, a serviço de interesses de grupelhos e pessoas, da dominação do poder pelo poder, sobretudo pelos diálogos nada republicanos que travam entre eles, visando desmoralizar a justiça e os mais comezinhos princípios que deveriam nortear a administração pública.


A aquela equipe coube mais que duplicar a quantidade de unidades escolares na Bahia. De 2115 em 1946, elas passaram  para o total de 5 000 em 1949. Os alunos matriculados, no mesmo período, transpuseram o número de 11.000 para o de 180 000. Erguer a Escola Parque, um centro educacional sem similar no Brasil. Do Curriculum de então constavam as matérias Educação Moral e Cívica, Trabalhos Manuais, Desenho, Canto Orfeônico, Língua Francesa, Inglesa e Espanhola, tudo isso implodido pelas administrações que se seguiram e pela vigente hoje no país. Pobres gestores.   Abrir novos postos de saúde, ambulatórios, hospitais. Instalar estações agrícolas experimentais de cana e algodão. Concluir os trabalhos de reflorestamento em Maracás e Jequiriçá. Fazer ressurgir em Nazaré das Farinhas o Centro Agrícola e Profissional no Aprendizado Clemente Caldas. Implantar adutoras, construir reservatórios d’água na Capital, nos bairros do Garcia e na Cruz do Cosme. Enfim, modernizar Salvador, até então uma cidade provinciana, de estreitas ruas, tortuosas e de aspecto decadente. 


Sob a batuta de Wanderley de Pinho rasgam-se as grandes avenidas e ruas. A do Centenário, do Tororó, Amaralina-Itapoã. Implanta-se o Viaduto da Sé. Reforma-se o teatro do Instituto Normal. Erguem-se o Hotel da Bahia e o Forum Rui Barbosa, o estádio de futebol da Fonte Nova. 
Pavimentam-se ruas. Complementa-se e melhora-se a iluminação pública. Numa prévia preparação do cenário para o apoteótico desfile cívico programado para saudar os quatrocentos anos de fundação da cidade.

E ele acontece de maneira irrepreensível e inesquecível no dia aprazado. À frente do espetáculo de cultura e arte, que extasiou os baianos, estava a figura de Chianca de Garcia. Artista e diretor teatral, de origem portuguesa, que com rara sensibilidade reescreveu a nossa história, em cenas indescritíveis, apresentando-a ao público num desfile soberbo, emocionante, vibrante. Onde a chama do patriotismo, da ‘baianidade’, era atiçada pela beleza das alegorias pela beleza das alegorias e dos figurantes.

Tudo conspirou para o sucesso da empresa. Depois de uma manhã chuvosa, o céu fez-se claro, o sol onipresente. A passarela do desfile, do Largo da Vitória à Praça da Sé, tornara-se um palco digno da apresentação do mais monumental dos espetáculos. O povo, ordeiro, educadamente postado nos passeios, aguardava ansioso, poder conhecer, como num passe de mágica, todos os episódios que marcaram a nossa história. E assim foi feito.

Às 17 horas, abrem-se as hipotéticas cortinas do proscênio e começa o préstito, mostrando as caravelas da armada de Tome de Souza, entre as quais, na nau capitânia, ele luzia numa postura espartana. Caramuru, encarnado por Dilson Queiroz; Catarina Paraguaçu, representada por Mary Gonçalves; e os índios recepcionaram nosso primeiro governante.


Em ordem cronológica, seguiam-se quadros retratando vários episódios da nossa vida histórica. Ali estavam D. Marcos Teixeira, alcunhado de o Bispo Marcial, pelo seu destemor no combate às tropas holandesas que invadiram a cidade em 1624. Uma alegoria significando a terra enlutada, chorando pelas humilhações e depredações sofridas por tal invasão. Dignitários das sociedades dos séculos XVII, XVIII, XIX , representados por figurantes vestidos num refinamento invulgar, cuja fidelidade era buscada nos menores detalhes.  Os senhores de engenhos. Escravos Tapas, Yorubás, Krumanos, Egbás, Géges, Dahomeyanos, Minas, Ussás  ou Haussás, Angola, Galinhas, Timinis, representativos das nações negras  e que foram forçados  a laborar a nossa terra. Fidalgos, um dos quais foi retratado por meu tio João Facó, o quem muito me honra, pois nascido em Beberibe no Ceará, não titubeou em fazer parte daquela expressão histórica da baianidade. Na verdade ele era e representava o ser baiano. Damas transportadas em cadeirinhas de arruar. Figuras cuja policromia nas indumentárias traduzia alegria. Vultos históricos como Rui Barbosa, cujo papel foi desempenhado por José Carlos Barreto, coincidentemente discípulo do grande mestre. Castro Alves, vivenciado por seu primo de em terceiro grau Fernando Alves. Maria Quitéria, pela senhora José Alberto Fiuza. Soror Joana Angélica, por Lolita Campos, mais tarde a primeira mulher a ingressar como professora na Escola Politécnica da Bahia. Padre Antônio Vieira. Dona Francisca de Sandes, Lima e Silva, encarnados, respectivamente, por Olívia Imbassai e Fernando Almeida. Os capitães de Castela, postos em cena por jovens oriundos da colônia espanhola aqui radicada.

Era o passado redivivo que marchava diante dos nossos olhos nos seus melhores e piores momentos, arrancando palmas frenéticas do público extasiado, gritos, interjeições de admiração, lágrimas de emoção, ou seja, de toda gente de Salvador ali reunida.

Tudo foi resplandecentemente excepcional. Para mim, um pré-adolescente,  entre emocionado e aturdido, com o coração transbordando de patriotismo, ficou difícil traduzir o que era mais empolgante. Se a transcendência  da história narrada, a imponência dos figurantes, o matiz de suas roupas, a arte e o bom gosto das alegorias, a competência dos organizadores do espetáculo ou o fervor que cada assistente transmitia através de gestos e do semblante.

Até hoje não consigo definir o que presenciei e senti naqueles momentos mágicos. Só sei que nas minhas retinas, na minha alma, no meu coração e nas minhas lembranças ficaram para sempre gravados aqueles instantes da história do Brasil, da poesia, da arte, que dificilmente se repetirá em qualquer outro lugar do mundo.          

Nenhum comentário:

Postar um comentário