Literatura: crônica
É jornalista
português radicado carioca procura leitor atento. Sou jovem e casado.
Alimentação fina de literatura, cinema, música e tapioca. Para mais
informações, continue lendo.
Esta noite vai acabar com a sua vida.
Mas antes, tirou o dia para seguir aquele grito desumano que o despertou,
refletir um pouco, ver se o samba está mesmo tomando um jeito. Para ele, basta
um dia.
Como é difícil
acordar calado. Lançando um grito desumano, Chico Buarque abana todo o
apartamento, usando a maneira que sabe ser escutado. Inútil dormir que a dor
não passa. Hoje faz 70 anos de vida e mais nenhuns vai fazer, decidindo que o aniversário
chega como o fim do caminho. Os convidados da celebração estão indo para a
festa em Paris, com sede de anteontem, esperando encontrar o compositor, sem
saberem que ele voltou para o Rio de Janeiro.
Está fazendo calor,
em plena Copa do Mundo, fase de grupos. Enfrentando de chapéu as ruas cariocas,
Chico fica espantado por ninguém o reconhecer, consequência de décadas em
exílio domiciliar. O velho de olhos verdes está cansado, desolado com o Brasil
e aterrorizado pela hipótese de tropeçar nas suas canções. Neste desamor vai
levando pela avenida, deixando em casa como sempre, o violão mudo. Ele não pega
numa guitarra desde os últimos shows, infinitas cortinas que encarou por
imposição do contabilista e do whisky. Esta noite vai acabar com a sua vida.
Isso é certo. Mas antes, tirou o dia para seguir aquele grito desumano que o
despertou, refletir um pouco, ver se o samba está mesmo tomando um jeito. Para
ele, basta um dia.
O meu desalento já
não tem mais fim, pensou, lembrando que ainda há poucas horas estava na capital
francesa. Escapuliu-se com uma desculpa escabrosa, que ia comprar croissants
para a festa, beijando de seguida Thaís, como se fosse a última. Assim correu
para o aeroporto, pegando o primeiro voo de regresso. Chico sofria pela medida
drástica que impôs à namorada, refletindo ao mesmo tempo que seu canto não vai
nada ajudar. Quando estava no avião, meio atordoado de comprimidos, só recorda
murmurar palavras soltas: arranca, vida, estufa, vela, me leva longe, longe,
leva mais.
Andando perdido pelas
ruas, atravessando com o seu passo tímido, não sabia bem por onde deveria fazer
esta despedida. A cidade antes era um vão na sua mão, mas agora, parecia uma
fantasia que nunca quis, vitrines e vitrines de desalento. Numa destas janelas
de mercado, olha adormecido o noticiário do fim da manhã.
“Aqui na terra estão
jogando futebol”, explica o repórter, falando de lado e olhando o chão.
Hoje, além da morte
de Chico, tinha Colômbia Costa do Marfim, Grécia Japão e Uruguai Inglaterra. O
Brasil tinha acabado de empatar. As eleições estão quase começando. O que será
que será que anda nas cabeças, pensa.
“Puseram uma usina no
mar, causou perdas e danos”, sucinta outro repórter.
“Pode apertar a
gravata, vai te enforcar”, responde Chico para a vitrine.
Chega a última
notícia, o pequeno espaço cultural. Aparece a face mais nova deste mesmo
Francisco de Hollanda, com uma legenda informando festa de 70 anos, em Paris.
Através do espesso vidro da loja, pelas colunas da televisão, começa a ouvir-se
a banda, a passar, pois ele já se afastou.
Escutando a correria
da cidade, que arde, Chico vai direto para a Lapa. Percorre sem muita atenção
os livreiros da carioca, sabendo que daqui a pouco tempo estará aqui “O Irmão
Alemão”, livro ainda não editado. Ele é que já não vai estar, o escritor. Muito
menos o cantor. Quando era guri, antes de pegar na guitarra tinha escrito um
conto, nos longínquos 18 anos, é um conhecido dado biográfico. No entanto,
tinha-se esquecido o que tratava o conto, achou por um momento que era sobre um
artista velho sem inspiração, nas portas da morte. São conjunturas. Já não se
lembra.
Chega morto vivo
perto dos Arcos da Lapa, onde antes passaram sambas imortais. Na calçada
desvia-se dos viciados que se contorcem no chão, feito pacotes flácidos,
atrapalhando o trafego. Passa por um engravatado com a austeridade do pai
Sérgio, um homem sério que contava dinheiro. Era o arquiteto de serviço,
vigiando algumas obras atrasadas da Copa. Chico recorre à memória de efêmero
aluno na faculdade e não entende a obra, acabando por ficar fixado no suor do
pedreiro, homem bicho de força, que está esperando aumento desde o ano passado
para o mês que vem. No caminho choca com um cinegrafista e apresentador da
Band, do programa “Sabe ou Não Sabe”, que obriga pessoas da rua a responder
perguntas.
“Sabe como maracatu
começou?”, pergunta o apresentador, interpolando a passada tímida de Chico.
“Claro que não!”,
grita.
Agora falando sério.
Chegou perto dele uma linda jovem com a imagem de São Francisco na camiseta.
Usando um panfleto, tentou alicia-lo a entrar na Igreja evangélica mais
próxima.
“Diz que deu diz que
dá”, responde secamente.
O objetivo inicial
era a batata assado do Bar Luiz, perfeito para o seu aniversário e morte.
Desiste da ideia quando vê a longa fila na porta, repleta de mulheres tecendo
longos bordados de tristeza. Arrisca as ruas paralelas da Lapa. Seguido por um
pivete transando chiclete, foge dessas pernas tortas, se refugiando no primeiro
boteco. Senta-se ao lado da empregada, uma Geni, rainha dos moleques do
internato, que afugenta o pivete.
“Não tem que por a
mesa, nem dar lugar”, pede Chico. “Feijoada completa por favor”.
A empregada vai na
cozinha, ouvindo antes nas suas costas outro detalhe do pedido.
“Você vai fritar um
montão de torresmo para acompanhar.”
Comeu feijão com
arroz como se fosse um príncipe. Criou barriga e a mula empacou. Foi a sua
ultima refeição e a primeira de várias cachaças, porque também sem essa
cachaça, ninguém segura esse rojão. Bêbado, começa ver turvo a calçada da Lapa,
parecendo por momentos cacetada romana, dos tempos de exílio, passagem infeliz
da sua história. Quando a cachaça vai na dúzia, a empregada prossegue a servir
outra dose.
“Afasta de mim esse
cálice”, reage Chico, atirando o copo e a garrafa para o chão, assustado com as
memórias do exílio italiano. Enfrenta cara a cara Geni e se levanta com
dificuldades, largando notas na mesa. “Como beber dessa bebida amarga, silêncio
na cidade não se escuta.”
A empregada agarra
rápido a grana e volta para a cozinha, condenando o cliente de bêbado maluco.
Olha o quê que eu
fiz, fala para si Chico, tanta mentira. Está quase na hora. Rasga um pedaço da
toalha de mesa e começa escrevendo, com a caneta azul que tem sempre.
“Vai e diz, diz assim
que eu chorei, que eu morri. Trocando em miúdos, pode guardar, as sobras de
tudo que chamam lar”. No fim, assina Francisco e guarda no bolso o papel.
Expulso do boteco,
vai subindo lentamente a ladeira. Na rua, centenas de curiosos conversam em
frente da televisão, assistindo um jogo da Copa, criando um barulho tal, que
fez o Chico alcoólatra pensar no tempo dos festivais. Foge desta memória,
procurando nestas escadas para Santa Teresa qualquer precipício para saltar,
deixar o corpo inerte de ritmo, descansado e despedaçado no chão. Em meio destas
decisões finais, chega da janela do segundo andar um som que reconhece, uma voz
melosa que vem do nariz e dos olhos verdes. O som aumenta e é mesmo ele. O
Chico, este mais novo, de bigode, camisa floreada e rosto de combate. Os dois
Chicos se olham, o de baixo surpreso e o de cima, desapontado. O novo arrebita
o bigode, toca uns acordes e canta em desafio.
“Você que inventou a
tristeza, faça favor de desinventar.”
“Desculpe?”,
respondeu sem entender o mais velho.
“Apesar de você
amanhã é outro dia”, continua mantendo um olhar fixo na encarnação envelhecida.
“Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?”
A última sílaba
implode em centenas de canções, todo o espólio do compositor, da marcha ao
samba, se ouvindo ecoando por toda a rua. Os sons se mesclam e geram uma
confusa dor de cabeça no Chico mais velho, vendo toda a cidade se enfeitando,
não conseguindo evitar e ver também a banda a passar, num roda vida.
“Foi bonita a festa
pá!”
O comentário
exageradamente alto do amigo português fez Chico dar um salto na cadeira,
acordar do sono profundo que entrou, no fim da sua festa de anos, no
apartamento em Paris. Pede um tempo ao amigo, para se recompor. Estava mesmo em
Paris. Mas qualquer coisa não estava igual, apesar de toda a decoração do
escritório parecer similar. Sem saber explicar porquê, ele se sentia
rejuvenescido, pronto para exaltar as mágoas da alma.
“Ninguém me vai
sujeitar a trancar no peito a minha paixão”, concluiu em voz alta, fazendo
calar o resto da festa que brindava champanhe na sala ao lado. “Quero ver o
vendaval e vou até ao fim!”, continua, assustando Thaís que nunca o tinha visto
assim.
Estavam todos em
silêncio, olhando perplexos para o aniversariante, ainda há pouco entusiasmado
com o seu novo livro. Chico pega na guitarra poeirenta como se fosse uma espada
e começa a compor.
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