terça-feira, 31 de maio de 2016

A MORTE DE CHICO BUARQUE



Literatura: crônica

 
É jornalista português radicado carioca procura leitor atento. Sou jovem e casado. Alimentação fina de literatura, cinema, música e tapioca. Para mais informações, continue lendo.

Esta noite vai acabar com a sua vida. Mas antes, tirou o dia para seguir aquele grito desumano que o despertou, refletir um pouco, ver se o samba está mesmo tomando um jeito. Para ele, basta um dia.

 

Como é difícil acordar calado. Lançando um grito desumano, Chico Buarque abana todo o apartamento, usando a maneira que sabe ser escutado. Inútil dormir que a dor não passa. Hoje faz 70 anos de vida e mais nenhuns vai fazer, decidindo que o aniversário chega como o fim do caminho. Os convidados da celebração estão indo para a festa em Paris, com sede de anteontem, esperando encontrar o compositor, sem saberem que ele voltou para o Rio de Janeiro.
Está fazendo calor, em plena Copa do Mundo, fase de grupos. Enfrentando de chapéu as ruas cariocas, Chico fica espantado por ninguém o reconhecer, consequência de décadas em exílio domiciliar. O velho de olhos verdes está cansado, desolado com o Brasil e aterrorizado pela hipótese de tropeçar nas suas canções. Neste desamor vai levando pela avenida, deixando em casa como sempre, o violão mudo. Ele não pega numa guitarra desde os últimos shows, infinitas cortinas que encarou por imposição do contabilista e do whisky. Esta noite vai acabar com a sua vida. Isso é certo. Mas antes, tirou o dia para seguir aquele grito desumano que o despertou, refletir um pouco, ver se o samba está mesmo tomando um jeito. Para ele, basta um dia.
O meu desalento já não tem mais fim, pensou, lembrando que ainda há poucas horas estava na capital francesa. Escapuliu-se com uma desculpa escabrosa, que ia comprar croissants para a festa, beijando de seguida Thaís, como se fosse a última. Assim correu para o aeroporto, pegando o primeiro voo de regresso. Chico sofria pela medida drástica que impôs à namorada, refletindo ao mesmo tempo que seu canto não vai nada ajudar. Quando estava no avião, meio atordoado de comprimidos, só recorda murmurar palavras soltas: arranca, vida, estufa, vela, me leva longe, longe, leva mais.
Andando perdido pelas ruas, atravessando com o seu passo tímido, não sabia bem por onde deveria fazer esta despedida. A cidade antes era um vão na sua mão, mas agora, parecia uma fantasia que nunca quis, vitrines e vitrines de desalento. Numa destas janelas de mercado, olha adormecido o noticiário do fim da manhã.
“Aqui na terra estão jogando futebol”, explica o repórter, falando de lado e olhando o chão.
Hoje, além da morte de Chico, tinha Colômbia Costa do Marfim, Grécia Japão e Uruguai Inglaterra. O Brasil tinha acabado de empatar. As eleições estão quase começando. O que será que será que anda nas cabeças, pensa.
“Puseram uma usina no mar, causou perdas e danos”, sucinta outro repórter.
“Pode apertar a gravata, vai te enforcar”, responde Chico para a vitrine.
Chega a última notícia, o pequeno espaço cultural. Aparece a face mais nova deste mesmo Francisco de Hollanda, com uma legenda informando festa de 70 anos, em Paris. Através do espesso vidro da loja, pelas colunas da televisão, começa a ouvir-se a banda, a passar, pois ele já se afastou.
Escutando a correria da cidade, que arde, Chico vai direto para a Lapa. Percorre sem muita atenção os livreiros da carioca, sabendo que daqui a pouco tempo estará aqui “O Irmão Alemão”, livro ainda não editado. Ele é que já não vai estar, o escritor. Muito menos o cantor. Quando era guri, antes de pegar na guitarra tinha escrito um conto, nos longínquos 18 anos, é um conhecido dado biográfico. No entanto, tinha-se esquecido o que tratava o conto, achou por um momento que era sobre um artista velho sem inspiração, nas portas da morte. São conjunturas. Já não se lembra.
Chega morto vivo perto dos Arcos da Lapa, onde antes passaram sambas imortais. Na calçada desvia-se dos viciados que se contorcem no chão, feito pacotes flácidos, atrapalhando o trafego. Passa por um engravatado com a austeridade do pai Sérgio, um homem sério que contava dinheiro. Era o arquiteto de serviço, vigiando algumas obras atrasadas da Copa. Chico recorre à memória de efêmero aluno na faculdade e não entende a obra, acabando por ficar fixado no suor do pedreiro, homem bicho de força, que está esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem. No caminho choca com um cinegrafista e apresentador da Band, do programa “Sabe ou Não Sabe”, que obriga pessoas da rua a responder perguntas.
“Sabe como maracatu começou?”, pergunta o apresentador, interpolando a passada tímida de Chico.
“Claro que não!”, grita.
Agora falando sério. Chegou perto dele uma linda jovem com a imagem de São Francisco na camiseta. Usando um panfleto, tentou alicia-lo a entrar na Igreja evangélica mais próxima.
“Diz que deu diz que dá”, responde secamente.
O objetivo inicial era a batata assado do Bar Luiz, perfeito para o seu aniversário e morte. Desiste da ideia quando vê a longa fila na porta, repleta de mulheres tecendo longos bordados de tristeza. Arrisca as ruas paralelas da Lapa. Seguido por um pivete transando chiclete, foge dessas pernas tortas, se refugiando no primeiro boteco. Senta-se ao lado da empregada, uma Geni, rainha dos moleques do internato, que afugenta o pivete.
“Não tem que por a mesa, nem dar lugar”, pede Chico. “Feijoada completa por favor”.
A empregada vai na cozinha, ouvindo antes nas suas costas outro detalhe do pedido.
“Você vai fritar um montão de torresmo para acompanhar.”
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe. Criou barriga e a mula empacou. Foi a sua ultima refeição e a primeira de várias cachaças, porque também sem essa cachaça, ninguém segura esse rojão. Bêbado, começa ver turvo a calçada da Lapa, parecendo por momentos cacetada romana, dos tempos de exílio, passagem infeliz da sua história. Quando a cachaça vai na dúzia, a empregada prossegue a servir outra dose.
“Afasta de mim esse cálice”, reage Chico, atirando o copo e a garrafa para o chão, assustado com as memórias do exílio italiano. Enfrenta cara a cara Geni e se levanta com dificuldades, largando notas na mesa. “Como beber dessa bebida amarga, silêncio na cidade não se escuta.”
A empregada agarra rápido a grana e volta para a cozinha, condenando o cliente de bêbado maluco.
Olha o quê que eu fiz, fala para si Chico, tanta mentira. Está quase na hora. Rasga um pedaço da toalha de mesa e começa escrevendo, com a caneta azul que tem sempre.
“Vai e diz, diz assim que eu chorei, que eu morri. Trocando em miúdos, pode guardar, as sobras de tudo que chamam lar”. No fim, assina Francisco e guarda no bolso o papel.

Expulso do boteco, vai subindo lentamente a ladeira. Na rua, centenas de curiosos conversam em frente da televisão, assistindo um jogo da Copa, criando um barulho tal, que fez o Chico alcoólatra pensar no tempo dos festivais. Foge desta memória, procurando nestas escadas para Santa Teresa qualquer precipício para saltar, deixar o corpo inerte de ritmo, descansado e despedaçado no chão. Em meio destas decisões finais, chega da janela do segundo andar um som que reconhece, uma voz melosa que vem do nariz e dos olhos verdes. O som aumenta e é mesmo ele. O Chico, este mais novo, de bigode, camisa floreada e rosto de combate. Os dois Chicos se olham, o de baixo surpreso e o de cima, desapontado. O novo arrebita o bigode, toca uns acordes e canta em desafio.
“Você que inventou a tristeza, faça favor de desinventar.”
“Desculpe?”, respondeu sem entender o mais velho.
“Apesar de você amanhã é outro dia”, continua mantendo um olhar fixo na encarnação envelhecida. “Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?”
A última sílaba implode em centenas de canções, todo o espólio do compositor, da marcha ao samba, se ouvindo ecoando por toda a rua. Os sons se mesclam e geram uma confusa dor de cabeça no Chico mais velho, vendo toda a cidade se enfeitando, não conseguindo evitar e ver também a banda a passar, num roda vida.
“Foi bonita a festa pá!”
O comentário exageradamente alto do amigo português fez Chico dar um salto na cadeira, acordar do sono profundo que entrou, no fim da sua festa de anos, no apartamento em Paris. Pede um tempo ao amigo, para se recompor. Estava mesmo em Paris. Mas qualquer coisa não estava igual, apesar de toda a decoração do escritório parecer similar. Sem saber explicar porquê, ele se sentia rejuvenescido, pronto para exaltar as mágoas da alma.
“Ninguém me vai sujeitar a trancar no peito a minha paixão”, concluiu em voz alta, fazendo calar o resto da festa que brindava champanhe na sala ao lado. “Quero ver o vendaval e vou até ao fim!”, continua, assustando Thaís que nunca o tinha visto assim.
Estavam todos em silêncio, olhando perplexos para o aniversariante, ainda há pouco entusiasmado com o seu novo livro. Chico pega na guitarra poeirenta como se fosse uma espada e começa a compor.





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