sábado, 28 de maio de 2016

LEITURAS ‘GRACILIÂNICAS’ EM TEMPOS DE GOLPE



Literatura: artigo
 

(REFLEXÕES PROfundas sobre O escritor Graciliano Ramos e Sobre A época em que viveu)


“Breves reflexões sobre tudo e mais um pouco.”



A geração de intelectuais brasileiros instituídos na carreira de escritor ao longo da conturbada década de 1930 caracterizou-se pela busca da compreensão da identidade sociocultural brasileira, e também pelo engajamento político militante que lhe rendeu perseguições. A prisão de Graciliano Ramos, sem acusação, sem processo, sem julgamento, foi um dos casos mais emblemáticos.





Os romances que surgiram com a chamada "geração de trinta" refletiram as tensões e acomodações em torno dos debates sobre temas relacionados à realidade brasileira, próprios daquele ambiente tumultuado pela experimentação dos efeitos desencadeados após a chegada de Getúlio Vargas à presidência da República, através de um golpe de Estado que ficou conhecido como "Revolução de 1930". Esse processo de ascensão removera setores tradicionais de seus postos privilegiados no comando da nação, e levou o governo a encarar sucessivas instabilidades e crises de legitimidade. As insatisfações geradas favoreceram o crescimento de organizações políticas de vários matizes ideológicos, dispostas à ocupação, contestação ou tomada do Estado renascente. A crescente polarização dos posicionamentos ideológicos ganhou forma organizacional com o surgimento da Ação Integralista Brasileira (AIB) e da Aliança Nacional Libertadora (ANL), respectivamente em 1932 e 1935. Os integralistas incorporavam o nazi fascismo de Hitler e Mussolini, enquanto os aliancistas aglutinavam diversos grupos de esquerda, com a hegemonia do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em oposição ao avanço do integralismo, ao autoritarismo adotado pelo governo Vargas, ao imperialismo e ao latifúndio. Contando com adesões importantes de vários ex-militares, a Aliança elegeu Luiz Carlos Prestes como seu presidente de honra. Conforme o jornalista Dênis de Moraes, “o herói da Coluna ingressara no PCB por imposição de Moscou, depois de ter sua filiação vetada pelo Comitê Central, dominado por tendências ultraesquerdistas e obreiristas. Embalada por comícios e atos públicos que reuniam milhares de pessoas, a ANL não demorou a radicalizar suas posições, não só em confrontos de rua com os integralistas, mas no famoso manifesto à nação de Prestes, em 5 de julho de 1935. O ‘governo podre de Vargas’ era definido como principal adversário dos aliancistas, que deveriam se preparar para o ‘assalto ao poder, que amadurece na consciência das grandes massas’”.
Uma semana após a publicação do manifesto referido na citação, Vargas decretou o fechamento da ANL, com base na nova Lei de Segurança Nacional. O assunto tomou conta do Bar Central, na capital alagoana, um dos pontos de encontro da roda de intelectuais de Maceió, da qual fazia parte Graciliano Ramos, dentre outros nomes que entrariam para o cânon literário brasileiro. “O grupo de literatos era praticamente todo antifascista e antigetulista”, explica Moraes. “Apenas três pessoas tinham vínculos com o comunismo: Alberto Passos Guimarães, secretário regional do PCB; Rachel de Queiroz havia rompido com o partido e se aproximado dos trotskistas, juntamente com seu marido, José Auto. Os demais, segundo Rachel, ‘eram quase todos cor-de-rosa, isto é, esquerdizantes que não chegavam a ser vermelhos’. Mas nem Alberto apoiava a luta armada contra Vargas, embora tivesse de acatar a linha oficial”.
Eis um traço distintivo fundamental entre as biografias de alguns autores da Geração de 1930 e a de Graciliano: eles já eram militantes do comunismo, enquanto o Velho Graça poderia ser chamado apenas de simpatizante. É certo que a Revolução de 1917 animou em Graciliano o interesse pelo marxismo desde sua juventude, pois se situam no período posterior a esse acontecimento na Rússia o seu aprofundamento nas leituras de Marx, Engels e Lenin em francês e italiano, e sua adesão “à utopia libertária ocupada pela vaga bolchevique”. Na Palmeira dos Índios do final da década de 1920, não eram esconsas as suas inclinações pelo socialismo, como recordou seu conterrâneo Brena Wanderley: “Certa vez, confessou-me sua admiração pelo povo russo e pelo socialismo. Recomendou-me a leitura de Marx e depois Dostoiévski, que lia em francês. Muitas vezes criticava fortemente o governo. Era um revoltado com as injustiças que cometiam em nosso país. Sofria com o drama dos nordestinos. Talvez fosse comunista no termo lato, mas antes de tudo amava o Brasil como bom patriota”.
Não obstante esta inclinação para o marxismo, difundido na América Latina pela corrente comunista que se dispunha a lançar as bases para uma orientação política revolucionária, Graciliano não tinha ainda uma ligação direta com o PCB, no sentido de compor seus quadros e/ou militar em suas fileiras. Quanto ao seu posicionamento político-ideológico, Raquel de Queiroz testemunhou que o colega de letras se tratava de “um homem com tendência igual à que se chama hoje de socialdemocrata. Colocava-se, como nós, contra os poderosos, contra o governo, contra a opressão. Talvez fosse até mais anarquista do que qualquer outra coisa”.
Ratificando o posicionamento de Graciliano diante da polarização político-ideológica da década de 1930, Alberto Passos Guimarães asseverou: “As posições dele eram de um liberal progressista. Não admitia um passo além disso. Suas ideias, em certos pontos, coincidiam com as nossas, mas ele não era comunista. Tinha opiniões próprias, independentes e bem elaboradas, mas não radicais ou revolucionárias. Não era homem de conversa fiada”.
Acontece que, nesse tempo, Graciliano ocupava a direção da Instrução Pública do Estado de Alagoas, equivalente ao atual cargo de secretário estadual da Educação, durante a administração – tachada de “semi-integralista e reacionária” pelos comunistas – do interventor federal Osman Loureiro, e isso representava um obstáculo à sua possível cooptação pela seção alagoana do PCB, que reproduzia o sectarismo partidário de âmbito nacional, por sua vez orientado pela visão do grupo ligado a Stalin, que saiu vitoriosa dos embates no interior do Partido Comunista Russo, ao fim do IV Congresso Mundial da Internacional Comunista. “De acordo com esta posição, o papel da URSS deveria ser o de guiar o proletariado mundial em um momento de iminência de uma nova “crise revolucionária”, o que significava a necessidade de ruptura com a socialdemocracia”, explica a historiadora Júlia Monnerat Barbosa, que estudou a militância política e a produção literária no Brasil entre as décadas de 1930 e 1950.
Instalado na estrutura do Estado, compondo o primeiro escalão do governo, Graciliano dedicava-se paralelamente à escrita, regada a aguardente, do seu terceiro romance, Angústia, considerado pela maioria dos críticos e leitores a obra-prima graciliânica. Essas tarefas – a função pública e a atividade literária – o mantiveram distante das palpitações do movimento, inclusive do episódio crucial conhecido como Intentona Comunista – frustrada tentativa de golpe através da tática da luta armada, que contrariava a linha de frente popular, mas contava com o endosso da Internacional Comunista. Segundo Moraes, Prestes enfatizaria que “a responsabilidade pela rebelião desencadeada em 23 de novembro de 1935 fora da própria direção do PCB, iludida por avaliações voluntaristas e dissociadas da realidade concreta”. O levante, irrompido em Natal, limitou-se, em Alagoas, a alguns muros pichados por militantes comunistas na capital, não dando trabalho ao governo, embora este tenha deixado a polícia de prontidão.
No início de 1936, telefonemas e telegramas anônimos começaram a perturbar o diretor da Instrução Pública, que, apesar de tudo, não dava bola para as ameaças. Seu prestígio político e intelectual o mantivera por um triênio à frente de um cargo pelo qual já haviam passado oito pessoas em dois anos. A situação nova impunha sua saída, não só por suposto envolvimento com os aliancistas ou pelo conteúdo “subversivo” de seus romances, mas também pelo seu habitus de administrador, conhecido e reconhecido pela austeridade e por não se vergar às pressões do campo de poder. Osman Loureiro precisava demiti-lo, mas queria que Graciliano se desligasse do governo voluntariamente, já que o governador não encontrava motivos objetivos para fazer isso. Mas Graciliano não lhe pediu a demissão. Deixou que o governador o fizesse. Finalmente, em 3 de março, no dia em que o escritor entregou os originais de Angústia para a datilógrafa D. Jeni, ficou também sabendo que seria detido a qualquer momento, no “cerco aos ‘comunistas’ nas capitais do Nordeste” ordenado pelo general Newton de Andrade Cavalcanti, comandante da 7.ª Região Militar. Apesar dos alertas de Luccarini – arquiteto italiano que foi seu funcionário na Instrução Pública – e Alberto Passos Guimarães, e dos pedidos de sua mulher Heloísa e de seu filho Júnio – que, com o irmão Márcio, militava na União da Juventude Comunista –, Graciliano renegou as propostas de fuga e aguardou em casa, de terno e gravata e de valise arrumada, o oficial do exército que o levaria preso – curiosamente o mesmo tenente que um mês antes havia procurado a Instrução Pública para lhe solicitar, por intermédio do apadrinhamento político, nova banca para a sua sobrinha que havia sido reprovada num exame de admissão para o curso normal, pedido ao qual Graciliano obviamente não atendeu. Pelos dez meses que passaria detido, transferido apulso para o Recife, depois, para o Rio de Janeiro, e apesar daqueles que o adjetivavam de “comunista” com o propósito de xingá-lo, não houve nenhuma acusação formal contra Graciliano, nenhum interrogatório, nenhum processo, nenhuma prova que o envolvesse diretamente à Intentona ou às organizações políticas perseguidas pelo governo Vargas. O que teria justificado, então, a sua detenção, assim como a de outros intelectuais nas mesmas condições, como Hermes Lima, Castro Rebelo, Leônidas Rezende e Luís Carpenter? Segundo Alzira Vargas do Amaral, filha e auxiliar direta de Getúlio Vargas, o pai lhe teria dito: “Foi uma exigência dos militares. Consideraram uma injustiça serem punidos os oficiais presos de armas na mão, enquanto os instigadores de tudo, os intelectuais que pregavam ideias subversivas, continuavam em liberdade”.
Ou seja, é evidente que Graciliano não foi preso por ser um militante comunista, mas por ser um intelectual perturbador do status quo. Nelson Werneck Sodré, historiador e general da reserva que à época era um jovem oficial, tornou-se amigo de Graciliano em 1937. Para ele, a prisão do literato foi motivada por pura perseguição política: “Não foram os problemas locais que determinaram a prisão de Graciliano; foram as questões de ordem ideológica. Na Instrução Pública, ele seguia à risca os seus princípios, era igual para todos, premiava os que mereciam, defendia os professores – era um homem de primeira ordem. Havia desgostosos, pessoas que foram feridas em seus interesses. A tarefa de prendê-lo, o oficial a executou a mando do general Newton Cavalcanti, cujo nome eu evito declinar para que não sobreviva ao esquecimento. Mesmo quando escrevi o prefácio de Memórias do cárcere, não mencionei o nome dele; não quero salvá-lo da merecida obscuridade em que deve jazer. Foi um dos homens mais facinorosos e imbecis que esta terra já produziu, uma mancha no Exército brasileiro. Como comandante da 7.ª Região Militar, e já adepto do integralismo, tratou de fazer uma limpeza de todos aqueles que suspeitava serem simpatizantes do comunismo. Nessa leva foi apanhado o Graciliano.
A repressão posterior à rebelião de 1935 provocou o aumento da população carcerária da Colônia Correcional Dois Rios, em Ilha Grande, no litoral sul fluminense, em mais de 465% no ano seguinte. Durante o período ali passado, Graciliano conviveu com intelectuais e próceres comunistas, interagindo e compartilhando com eles conhecimentos variados, além da precariedade da vida na prisão. Na descrição de Moraes: “O pavilhão, em forma de U, era uma construção ampla, de dois andares, com cinquenta cubículos, onde se comprimiam cerca de duzentos presos envolvidos na insurreição, a maioria jovens militares. Dividiam os xadrezes com professores, médicos, jornalistas, advogados, sindicalistas, operários e funcionários públicos. Em uma cela dupla no pavimento superior, encontravam-se dez mulheres, entre elas Olga Benario, Beatriz Bandeira, Maria Werneck de Castro, Nise da Silveira, Eneida de Moraes, Elisa Ewert (com traumas mentais pelas torturas sofridas na Polícia Especial), Eugênia Álvaro Moreyra e Carmen Ghioldi”.

O silêncio dos intelectuais acerca de Graciliano foi quebrado com a publicação de dois mil exemplares de Angústia, em novembro de 1936, editado pela Livraria José Olympio, “sonho de todo escritor”, de acordo como Gustavo Sorá. “Romancistas de vanguarda e acadêmicos, críticos e autores de sucesso comercial, historiadores e políticos”. O evento foi noticiado na Revista Acadêmica – fundada em 1933 e dirigida por Murilo Miranda e Moacir Werneck de Castro – com uma foto do romancista ilustrando o alto da página. A mesma revista conferiu à obra o Prêmio Lima Barreto de Literatura. Angústia repercutiu otimamente e valeu a Graciliano um respiro naquele momento de aperto financeiro: um conto e quatrocentos réis. Graças a uma articulação entre Heloísa Ramos (que havia partido para o Rio para lutar pela libertação do marido), Nise da Silveira e Eneida de Moraes, o lançamento do terceiro romance de Graciliano foi celebrado na prisão – não obstante a ranzinzice do homenageado – dando contornos humanos que contrastavam com aquele ambiente desumanizante. Moraes assim descreve a cena: “No maior segredo, Heloísa, Nise e Eneida organizaram uma festa para comemorar a publicação do romance. Com a anuência do major Nunes, alagoano e admirador do romancista, ajeitaram um almoço caprichado, juntando as mesas do salão e decorando a enfermaria com vasos de flores. Ao voltar do terraço, onde fora apanhar sol, Graciliano se espantou com os preparativos: – Que presepada é esta?”.
A intelectualidade brasileira, com raras exceções, esteve engajada na luta pela libertação das centenas de pessoas que permaneciam presas sem culpa formada. Vários jornais intercediam pela revisão desses casos. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) chegou a solicitar ao temido Filinto Müller, chefe da polícia política da ditadura de Vargas, a soltura dos jornalistas que não foram denunciados pelo Tribunal de Segurança Nacional (TSN). Um dos efeitos dessa pressão foi a aprovação, na Câmara dos Deputados, da moção de Octavio Mangabeira solicitando ao presidente Vargas essas libertações. A moção recebeu cento e quarenta e nove votos a favor – incluindo o voto do deputado Pedro Aleixo, líder do governo – e apenas quatro contra.
Augusto Frederico Schmidt, intelectual que gozava do respeito do regime, foi um dos que se manifestaram publicamente pela soltura de Graciliano. Em texto publicado em 22 de dezembro de 1936 com forte repercussão, o editor exaltou as qualidades literárias e pessoais do amigo da seguinte maneira: “O sr. Graciliano Ramos é um dos nomes mais significativos das letras novas do Brasil. Romancista de altos méritos, não transformou absolutamente a sua arte em instrumento de ação política, conservando-a, pelo contrário, num plano livre e puro. [...] Se foi preso, por engano de pessoa, estou certo de que as nossas dignas autoridades não insistirão em apartá-lo da sociedade que ele tanto dignifica”.
José Lins do Rego e o editor José Olympio também apelaram por Graciliano junto aos seus contatos no Palácio do Catete. De acordo com Moraes, José Lins chegou a deixar um recado a Vargas através do escritor Herman Lima, auxiliar do gabinete da presidência da República, nestes termos: “Você diga ao presidente que ele precisa mandar soltar o Graciliano Ramos. Graciliano está preso há um ano, tem sofrido os maiores horrores de prisão em prisão. Esse martírio não pode continuar.” Getúlio respondeu, no dia seguinte, com outro recado através de Herman Lima: “Você diga ao Zé Lins que nesse caso do comunismo eu não mandei prender ninguém, mas também não mando soltar ninguém. Isso é lá com a polícia. Mas autorizo-o falar com o general Pinto, dizendo-lhe de minha parte que indague a Filinto Müller se há alguma coisa apurada contra o Graciliano, e, do contrário, naturalmente que soltem o homem”.

Após dez meses e dez dias encarcerado, Graciliano foi posto em liberdade em 12 de janeiro de 1937, ano em que as tensões políticas se agravariam com o um novo golpe de Estado comandado por Getulio Vargas em 10 de novembro, respaldado pelos chefes militares, diante de uma suposta conspiração comunista forjada pelo Plano Cohen. A nova Constituição, por conter dispositivos autoritários baseados na Carta da Polônia, ficou conhecida como “Polaca”. Conforme se dispunha na “Polaca”, “Vargas governaria por decretos-leis, o Congresso ficaria entregue às traças, a imprensa censurada e os direitos e garantias individuais suspensos”. Pessoas próximas a Graciliano, associadas como uma ameaça ao novo regime ditatorial de Vargas, sofreram também perseguições políticas, e isso mantinha no escritor o temor de retornar à prisão. Nas palavras da pesquisadora Lucila Soares: “Graciliano preocupava-se com a possibilidade de voltar a ser preso – e mais de uma vez constatou estar sendo seguido na rua. Jorge Amado foi detido no Amazonas, quando voltava de uma longa viagem pela América Latina e pelos Estados Unidos. Rachel de Queiroz teve um cárcere sui generis: três meses na sala de cinema do quartel do Corpo de Bombeiros de Fortaleza. E, em pleno carnaval de 1938, ano de Touradas em Madri, Camisa listrada e Periquitinho verde, Tomás Santa Rosa foi levado pela polícia ao sair da José Olympio. Ficou pouco tempo atrás das grades, porque J.O. interveio em seu favor. Mas o episódio deixou evidente que ninguém estava seguro no Estado Novo, a não ser os que apoiavam incondicionalmente o regime”.
Um dos trechos mais ilustrativos desse temor, oriundo da instabilidade de um Brasil que faz história de golpe em golpe, talvez seja a carta que Graciliano enviou à sua esposa Heloísa em 28 de fevereiro de 1937, comentando a opinião de José Lins do Rego sobre o regime de exceção: “Zélins acha excelente a nossa desorganização, que faz que um sujeito esteja na Colônia hoje e fale com ministros amanhã; eu acho ruim a mencionada desorganização, que pode mandar para a Colônia o sujeito que falou com o ministro”.

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