Literatura
Néli
Pereira
Da BBC Brasil em São Paulo
Para Teixeira Coelho, Ministério da Cultura funcionava de forma obsoleta |
Um dos principais
pesquisadores sobre a política cultural no Brasil, o escritor, museólogo e
professor Teixeira Coelho não está pessimista com o fim do Ministério da
Cultura.
Para
ele a maneira centralizada com que o MinC vinha funcionando nos últimos anos
era obsoleta e não dava lugar ao principal ente da cultura: as cidades. "A
nação nesse sentido é uma ficção. A cultura existe nas cidades", afirmou
em conversa com a BBC Brasil.
Na
sua visão, a discussão sobre o fim do órgão resvala em uma noção, ainda
bastante patriarcal, do Estado como provedor e centralizador de um discurso
cultural que parece já não caber em uma sociedade tão fluida, tão diversa.
"Ter
um ministério assim é fruto de um pensamento aristocrático, paternalista,
patriarcal e centralizador. A cultura não pode ser centralizadora."
No
bate-papo, o ex-diretor do Masp (Museu de Arte de São Paulo) expõe uma
preocupação maior com a rediscussão do papel do Estado na área do que com a
resistência cultural ao fim do MinC: "O Estado não é um salvador da
cultura, ela existe fora dos jogos governamentais".
A
seguir, os principais trechos da entrevista
.
BBC Brasil: O momento mais recente na nossa
história em que não tivemos um Ministério da Cultura foi na era Collor. Quais
as principais diferenças daquele para este momento e o potencial impacto da
ausência da pasta?
Teixeira Coelho: Eu acho que a gente tem que colocar essa discussão
num contexto mais amplo sobre a função da intervenção do governo na cultura. Eu
brinco com as pessoas que estudam política cultural que quando foi criado o
ministério autônomo, lá atrás, antes do Collor, eu defendi e assinei a favor.
Antes de acontecer tudo isso aqui, eu disse que, se fosse o caso de passar pela
mesma experiência, eu pensaria duas vezes.
As
pessoas estão colocando a salvação da cultura na existência de um ministério
específico. Eu acho que isso é, antes de tudo, fruto da mentalidade
bacharelesca, administrativa, cartorial, burocrática que invade toda a esfera
da vida brasileira, em todos os setores.
Se
você fizer um mapeamento do que acontece fora do Brasil em termos da
institucionalidade da cultura, vai ver que a maior parte dos ministérios
existentes nos países de referência não tem um ministério autônomo: caso da
França, Itália, Inglaterra, Espanha. A existência de um ministério autônomo
para a Cultura não é sinônimo de sucesso da intervenção do Estado na prática da
cultura.
Fim do ministério levou a protestos como esse na Funarte, no Rio, na segunda-feira |
BBC Brasil: Com base no que o senhor coloca, será
que não precisamos ainda de um ministério por conta do nosso tamanho, das
dimensões do Brasil, e por ainda lidarmos tão precariamente com o conceito de
cultura, com as relações e as práticas culturais? É só pensar nas discussões
que se teve na época do lançamento do Vale-Cultura...
Teixeira Coelho: É justamente porque o Brasil é deste
tamanho que um Ministério da Cultura centralizado em Brasília não se recomenda.
A gente precisa ter em mente onde está a cultura, qual é o ente da cultura. A
cultura sempre está nas cidades.
A
cidade é a única realidade social concreta das pessoas - as pessoas não vivem
no Estado de São Paulo, o Estado nesse sentido de divisão administrativa é uma
ficção e a nação hoje em dia é outra ficção. Então a gente deveria aproveitar o
momento atual - se é que dá para aproveitá-lo - para rediscutir o Brasil como
federação, porque somos uma falsa federação.
Toda
riqueza econômica e cultural que é gerada nas cidades sobe para Brasília, para
depois ser distribuída ou não distribuída. A sede da cultura é a cidade, e hoje
as cidades brasileiras não têm recursos para decidir que cultura elas querem ou
não querem. O Brasil é autoritário, paternalista, patriarcal e centralizador. A
cultura não é para ser centralizada.
BBC Brasil: Se olharmos para programas dos anos PT,
como os Pontos de Cultura, o Sistema Nacional de Cultura, havia tentativa de
descentralizar, investir nas culturas locais. Pensando nesses programas,
perde-se alguma coisa? Havia alguma política cultural que era essencial nesse
sentido?
Teixeira Coelho: Nessa ótica que eu coloco, não creio que a
gente perca. Por que temos que ir à Brasília para discutir um sistema de
redistribuição? Precisamos reconhecer a autoridade das cidades nos assuntos de
cultura e dotar a cidade de orçamento necessário.
Precisa
ter um ministério? Eventualmente, sim. Para fazer a coordenação? Pode ser. Mas
não vejo a justificativa mais para um ministério centralizador.
Vale-Cultura foi lançado na gestão de Marta Suplicy (hoje no PMDB)
no ministério
BBC Brasil: A política cultural vinha tentando se
atualizar? E aí pensando nas redes sociais, na tecnologia e seu impacto na
cultura - para além do compromisso com as manifestações regionais, da cultura
mais tradicional?
Teixeira Coelho: Existe um setor, um departamento, uma unidade,
uma secretaria. Essa é a solução no Brasil, criar um departamento para isso. Se
você olhar para trás, as políticas culturais existiam pela escassez cultural -
não existiam bens culturais suficientes. A razão de ser benévola da política
cultural era a escassez.
A
malévola é a proteção do Estado. Nós temos uma superabundância de bens
culturais, você levanta as luzes amarelas para essa função do Estado de dotar o
país de cultura. Havia antes também uma concentração da cultura nas mãos de
algumas pessoas, mas nós estamos no século 21. O conhecimento e a informação se
difundiram. A gente tem que pensar nisso e não ficar defendendo somente uma
instituição que já é do século passado.
BBC Brasil: O fim do MinC nesse momento do país não
significa a entrega da cultura para o mercado? Não é simbólico de uma atitude
que pode representar que nesse momento não cabe ao Estado pensar na importância
da cultura para a sociedade?
Teixeira Coelho: Eu não estou dizendo que o ministério
tinha que desaparecer, mas que temos que aproveitar o momento para rediscutir.
A grande oposição não é entre Estado e mercado, isso é um simplismo.
O
que está na oposição é a sociedade civil. Tem o Estado num polo do eixo e a
sociedade do outro. O mercado está dentro da sociedade. E tem outro problema: a
cultura no Brasil não tem mercado - então até quando a gente vai ficar
esperando que um Estado benévolo fique nos dando umas migalhas? Não temos de
fato um mercado.
Ex-diretor do Masp afirma que Lei Rouanet "moveu
montanhas"
BBC Brasil: Mas com base nisso dá para argumentar
que as exposições passaram a ter mais público, os musicais lotam todos as
sessões. Isso é só um recorte da cultura mais como entretenimento? Porque aí
parece ter plateia, mercado. Em que sentido não tem o mercado? Para que áreas
da cultura?
Teixeira Coelho: Não tem poder aquisitivo e formação, prática,
costume para comprar cultura. Isso poderia nos dar autonomia. Na década de 40,
a tiragem de um livro era de 4 mil exemplares. Hoje um livro que não seja best-seller não tem nem isso. O mercado regrediu,
sumiu.
Houve
mais shows musicais, mais exposições? Foi por causa da Lei Rouanet, basicamente
isso, que foi um grande salto para qualitativo e quantitativo para o país. Você
pode até discutir na mão de quem acabavam ficando os recursos, mas ela foi
importante, abriu espaços.
BBC Brasil: Falemos dela. Havia algumas distorções
- artistas renomados e que poderiam facilmente financiar suas atividades
acabavam recorrendo à Lei Rouanet...
Teixeira Coelho: Claro, tem muita coisa que pode viver no
mercado, que não precisaria (de apoio financeiro). Mas ela (a Lei Rouanet)
moveu algumas montanhas, cumpriu seu papel. E ela não deve acabar, pelo menos
eu não ouvi esse argumento de que ela acabaria. Mas a gente não pode deixar de
lutar pela existência de um mercado.
O
Vale-Cultura poderia ser outro embrião de criação de um mercado, você dá
dinheiro na mão da pessoa e ela compra o que quer. Ela vai comprar revista
pornográfica? Aí precisamos ver isso na educação.
Por
isso fundir cultura e educação aqui no Brasil pode não ser algo tão absurdo
assim. Ainda mais se você contar que o Ministério da Educação tem orçamento
maior do que o da Cultura. Mas a Lei Rouanet é importante, eu não vejo de onde
o Brasil iria arrumar recursos para suprir aquilo que essa lei permite.
Na gestão Temer, Cultura tem um secretário, Marcelo Calero (à.
dir), que responde ao ministro Mendonça Filho (esq.)
BBC Brasil: Um papel do MinC que acabou ficando à
margem da discussão sobre o fim do ministério é a função de pensar a nação como
identidade, como preservação - algo que mais recentemente começou a se chamar
denation branding. E essa parte, não se perde com a extinção da pasta?
Teixeira Coelho: Eu espero que a gente não discuta
identidade nunca mais. O (escritor) Salman Rushdie fala que o ser humano não
tem raízes, tem pés - ele pode passar daqui pra lá. A identidade é um conceito
básico em filosofia e sociologia do século passado.
Hoje
em dia no lugar de identidade você usa identificação. Hoje eu sou de esquerda,
amanhã sou de centro, não venha me cobrar uma corrente que me amarre. Você
junta toda a tendência das pessoas: hoje é homossexual, amanhã é bi, as coisas
estão flutuando.
O
Estado sempre se serviu da cultura para se defender. Com uma identidade, você
tem controle mais fácil sobre as pessoas. Se não tiver um Estado para nos dizer
isso, vamos viver num mundo bem melhor.
BBC Brasil: Nesse sentido, um Ministério da Cultura
nesse nosso mundo atual seria obsoleto? Sua análise parece ir nesse sentido...
Teixeira Coelho: A cultura existe fora do ministério, fora dos
jogos governamentais. Tem gente que diz: "veja como o Ministério da
Cultura é importante, criou um departamento de cultura digital". Ué, a
cultura digital vai continuar sendo cultura, vai continuar existindo. Por que
tem que ter um departamento para ela?
Essa
mentalidade é fruto desse pensamento cartorial. A maior parte da cultura do
mundo é feita fora dos ministérios, no mundo todo. A cultura vai continuar
existindo.
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