Publicado por Contreraman
E
as coisas que continuam já se foram. E as que se foram continuam para nunca
terminarem. Até um fim que nunca vem..
A tela está no Museu do Prado, após ter sido desenvolvida - e entregue -
para um local nos Países Baixos. Imagino como deve ser absurdo vê-la em
"carne e osso". Se só com admirá-la, assim, por trás de um micro, é
comovente, imaginemos pessoalmente.
Quando começamos a nos fixar em telas que representam episódios da via
crúcis (e após a mesma), nossa sensibilidade passa a ficar mais aguçada e ao
mesmo tempo mais diligente em procurar obras que aparentemente fogem dos temas
que mais nos tocam. É o que acontece com "A Descida da Cruz", de van
der Weyden, painel que representa a tarefa de retirada do corpo de Cristo
recém-falecido da Cruz. É uma tela que não combina muito com tudo o que tenho
visto até agora, e comentado aqui, e que diz respeito mais ao sofrimento de
Cristo enquanto homem crucificado ou à sua demonstração, perante os fiéis,
causando medo ou até mesmo estupor com realismo à la Masaccio (conforme o
artigo que publiquei há alguns dias).
Neste caso, a
encomenda fazia com que a cena da deposição do corpo de Cristo após a
crucificação ficasse restrita a uma espécie de retáculo sob forma de cruz quase
integral e invertida, em que o realismo da cena não deveria corresponder àquilo
que de mais atraente a obra deveria oferecer. Pelo menos não um realismo
acachapante, que nos fizesse horrorizar com um corpo absurdamente maltratado
pela tortura e massacrado pelas condições de sua morte. Não, aqui a intenção é
bem outra. Há comoção, sim, há um certo estupor com a beleza da obra, também,
mas o realismo que aqui é obedecido é de outra monta, de outra ordem, não pior
nem melhor. Mas diferente.
Restrinjo-me aqui a
comentar a recepção possível à obra comentada, ao invés de entrar em méritos de
ordem artística, sobre os quais não tenho, ao menos ainda, uma menor
competência. Pois, ao me restringir à recepção, eu tento entrar no mérito
daquilo a que a obra correspondeu na sua época para os fiéis e no seu efeito, que
perdura até hoje, no sentido de divulgar o credo e parte da história dele.
O que vemos
Vemos aqui um corpo,
não em escala de 1:1, lânguido de um homem jovem, cuja pele parece-nos macia e
bem cuidada e cujos ferimentos parecem, de forma alguma, escapar daquilo que
seja próprio à visão de qualquer pessoa mais delicada. Vemos seu movimento lânguido
ser carregado, mas sem muita impressão de peso, por personagens incrivelmente
bem vestidos, em trajes de altíssimo nível, mesmo quando trajes humildes, em
que as próprias pregas parecem se destacar da obra e nos causar um efeito
físico determinante. Pois aqui a reprodução daquilo que idealmente seria um
corpo morto, desfalecido, carregado por figuras com caráter específico, parece
escapar até mesmo do melhor que o real poderia ocupar em nossas mentes. Pois é
como se víssemos a idealidade de um real, ao invés de o real por si só. Nosso
olhar fica absorto nos detalhes em todos os termos da cena. Mas algo nos diz
que isso foi feito para que o víssemos, não para que nos identificássemos com
as figuras. Pois olhamos de longe, pretendendo observar a paisagem, a obra em
si, mas algo nos impele a olhar de perto, mas agora o detalhe, aquilo que pode
fazer com que nos maravilhemos com o que vemos. Mas ocorrem outras impressões.
O sentimento e a
distância
O corpo, lânguido do
jeito que se apresenta, impele-nos também a sentirmos compaixão dele. Pois ele
nos parece tão sensível, tão suave, tão frágil, que não conseguimos deixar de
nos maravilhar com o sentimento de compaixão que nos traz. Porém, vemos que ele
parece meio que pairar por cima da tela, e que a reação das pessoas presentes
parece posada para representar isso que aparece: ora uma incapacidade de
prestar ajuda, ora a compreensão pela dor da pessoa alheia, ora o choro
incontido de alguém que percebe o drama que se desenrola, ora o lamento suave
de quem participa enquanto personalidade, enquanto homem de fé, e o lamento
simples de uma pessoa comum, que entende o drama que se passa. Tudo isso é
muito bem declamado, em tinta, como se fosse mesmo uma espécie de discurso,
embora algo nos faça sentir um pouco mal - que é o tom, quase tão empostado
quanto imaterial. Os lamentos - tirando os da freira que chora - parecem muito
comedidos. Algo parece que falta. Que é a própria dor. Pois aqui não é a dor
que vemos, mas sua representação. Não conseguimos chorar com essas dores.
Conseguimos comover-nos com a cena, isto sim.
Cristo
Concentremo-nos nos
personagens. O Jesus aqui apresentado é esguio, com a barba não feita, mas
limpo, imaculadamente limpo, com praticamente todo o corpo à mostra e em que
podemos divisar sua pele e seus mamilos em toda sua perfeição. É um corpo que
aparenta santidade, e que está com os olhos fechados e uma expressão de
sofrimento enlutado, como se tivesse sido morto indevidamente. Vemos, em suas
mãos e em seus pés, alguns ferimentos, mas bastante limpos, como se tivessem
sido limpos, ou como se fossem para estar limpos, também imaculados. Porque
seus machucados são também idealizados, mostrados em sua integridade enquanto
ideais. Também a coroa de espinhos que lhe cabe está perfeitamente desenhada, e
os traços de sangue são pontuais, nada que nos impeça de ver claramente o seu
rosto angelical.
Maria
Mas Maria, logo
abaixo, mantém uma postura similar à de Cristo, voltada para o mesmo lado, e
também com os olhos fechados. Ela permanece quase deitada, em seu esforço para
suportar a dor de ter visto seu filho, homem, morto, e Jesus Cristo, morto, na
Cruz, e numa posição de quase cair ao chão em seu sofrimento. Notamos como seu
rosto expressa um enlutamento elegante, em que o sofrimento é interno, e sua
dor também restrita a uma subjetividade à qual não temos acesso. É como se o
seu sofrimento fosse tamanho, e sua dimensão, enquanto figura mitológica também
tamanho, que soubéssemos jamais podermos ter acesso a ele. Sua roupa está
imaculada num azul brilhante, e ela jaz, sendo segura por uma outra figura
menor, mas não sentimos direito o peso do seu corpo. Pois sentimos a cena como
algo mais representada do que real, sendo que São João também tenta segurá-la,
mas não a alcança, mantendo uma expressão de enlutamento e dor contidas.
Outros personagens em
cena
Claro que a cena tem
que assumir certa verossimilhança. E ela é expressa na escada, que um rapaz
teria usado para descer o corpo de Jesus. Essa escada é colocada atrás do
corpo, atrás da cruz, com o pequeno rapaz (uma das nove figuras da cena
inteira) descendo dela. Claro, não concebemos como, num espaço tão exíguo, o
corpo tenha sido realmente trasladado pela cena, mas imaginamos a descida, e o
título da tela é então justificado.
Outros personagens
que ladeiam o corpo são citados em artigos na web, mas, sem conhecer as suas
histórias e sem entrar em detalhes que não me cabem, noto porém alguns aspectos
específicos que aparecem em suas figuras. Num primeiro relance, notamos como a
cena parece luxuosa, com roupas luxuosas ou colocadas de forma a aparentarem
uma limpeza e uma clareza absurdas. As pregas da roupa do homem que coloca as
mãos nas pernas de Jesus é ricamente trabalhada, por exemplo, assim como a
roupa do religioso que segura o corpo do Cristo por trás, assim como os
detalhes da roupa da cortesão que, aos pés do Cristo, lamenta, com as mãos
crispadas de desespero, a morte e descida do corpo da Cruz. Todos são detalhes,
porém, que não nos afasta da pintura como se ela não dissesse respeito a nós, e
tivesse mais a ver com pessoas de classes sociais mais altas. Não, a gente se
motiva a olhar tudo mais de perto, a ver como a cena é de bom gosto, e a
notarmos que esse espetáculo nos convida a, com isso, com esse bom gosto,
apreciarmos ainda mais nossos sentimentos pela cena.
Detalhes de expressão
Seria quase
impossível esgotar todo o repertório de emoções desencontradas que a emoção que
vemos na tela de van der Weyden suscita em nós. Poderíamos nos restringir ao
caráter angelical do Cristo, ou ao solene sofrimento de Maria, ou à tentativa
desencontrada de acolhê-la por parte de São João. Todas essas expressões, por
serem muito realistas, mas, mais que isso, por representarem um realismo que se
supõe ser muito complexo e profundo, parecem exigir cada vez mais de nós, se
quisermos entendê-las ou se quisermos conviver com elas em nós. Gostaria
apenas, encerrando este artigo, me concentrar na expressão de sofrimento da
freira, que está postada atrás de São João, chorando.
A gente consegue ver
no choro dessa freira, que contém as lágrimas com um lenço, embora as lágrimas
caiam pelo lado de seu olho, uma expressão de detimento e de contenção. Por
algum motivo, que não cabe aqui supor, ela sente que não pode chorar
desbragadamente, que deve conter o choro, mas não consegue. Ela esconde o rosto
com o lenço, e tenta, sem sucesso, estancar as lágrimas. Está atrás de São
João, por isso nem mesmo consegue ver claramente a Jesus. Mas ela chora, e não
consegue conter as lágrimas. Poderia estar gritando de pavor ou de lamento, mas
não está. Está contida, com a boca fechada, embora crispada, tentando fazer
algo que não consegue. Ela meio que nos dá uma consolação, a nós, que não
conseguimos chorar. Ela chora por nós, e expressa uma sensação incontida nessa
imagem que parece nos convidar a nos contermos. Ela parece chorar por nós.
Comovente.
Final
A tela está no Museu
do Prado, após ter sido desenvolvida - e entregue - para um local nos Países
Baixos. Imagino como deve ser absurdo vê-la em "carne e osso". Se só
com admirá-la, assim, por trás de um micro, é comovente, imaginemos
pessoalmente.
Espero que tenham
apreciado.
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