Publicado por Bruno
Albuquerque,
Escreve quase sempre à sombra. Autor de livros e músicas, é
piloto marítimo, palestrante, e gosta de tudo o que cheira a liberalidades .
Eram as vésperas de um
Dieciocho, como carinhosamente chamam os chilenos às celebrações que comemoram
a separação do seu país da coroa espanhola, dada em 18 de setembro de 1810. Um
amigo mapuche me enviou um artigo cujo título perguntava de que independência
falavam, afinal, os chilenos. Meu coração de estrangeiro adotado experimentou,
de uma só vez, uma torrente de sentimentos bem distintos.
Não me lembro de ter sido nacionalista algum
dia. Durante a infância talvez, já que venho de uma família de tradições
cristãs e militares. Ovelha negra declarado, desde os
primeiros sinais da idade da razão, que a todos haverá de nos
encontrar um dia, meus ideais foram se perfilando a outros bem distintos
daqueles que herdei. Como cantar com vigor, por exemplo, nosso Se o
penhor da liberdade conseguimos conquistar com braço forte, se a emancipação do
Brasil foi, na verdade, negociada? De onde virá o sentimento de pertencimento
de um povo com respeito à sua pátria, quando as instâncias públicas mais lhes
parecem sombras? Se a organização política que temos não reflete, nem de longe,
nossos sonhos de gente comum? Se não supre nossas demandas por justiça ou
inclusão, senão, bem ao contrário, oficializa, legaliza a exploração dos
eternos senhores sobre seus mandados e suas terras?
A política na América Latina foi feita por e para latifundiários.
Não é, pois, de se estranhar, que os questionamentos do texto que eu tinha nas
mãos me provocassem pronta identificação.
Ainda assim – e acho que todo estrangeiro já
sentiu algo semelhante – justamente por andar longe do nosso lugar, nos
tornamos mais suscetíveis a sentimentos nacionalistas. Não há dureza de
conceitos ou argumentos que não vacilem frente a grandes cargas de afeto. O
jeito com que os chilenos comemoram sua data de emancipação não se resume à
fria formalidade com que celebramos a nossa. As pessoas – ou parte delas, pra
ser coerente com o que estamos apresentando – vibram de maneira distinta
durante a semana do Dieciocho. Eles também têm os desfiles de
estandartes e veículos de artilharia nas avenidas – como nós, tampouco deixaram
seus joguinhos – mas a essência e a força de suas festas pátrias vão muito além
disso, extrapolam as casas e tomam as ruas. Se até os PMs fazem vista
grossa se bebes pela rua, cumpay! (1), ouvi mais de uma vez, entre
risos, empanadas, estórias, copos cheios e corações carregados de afeto. As
celebrações de independência fazem sentido aos chilenos. E me contagiaram,
desde a primeira de que participei, nos anos em que por lá vivi. Me deu muita
tristeza sentir aquele balde d’agua fria justo a poucos dias das
festas. Muito pior, contudo, foi sentir o fosso que separa os povos
originários, de seus forçados irmãos, os novos americanos.
O uso do artigo definido – e o jornal o
trazia em destaque: os chilenos – já diz muito sobre o
problema. Os mapuches (2) não se consideram chilenos. Não
foram convidados a participar da construção de um projeto comum. Ao contrário,
há quem os identifique como o obstáculo que falta para a sedimentação do Estado
chileno. As perdas sofridas em cada confronto (3), sejam de um lado ou do
outro, só aumentam a separação. Lembro-me de ter lido, entre os resultados de
um censo que me alcançou por lá, sobre a facilidade com que as pessoas se
identificam pasquenses (4), ou descendentes deles, enquanto
negam qualquer parentesco com os mapuches. Mesmo em países onde os povos
originários não ofereceram a mesma resistência continuada como lá, caso dos
demais países americanos, a simples presença deles gera complicações para o
sistema político que lhes roubou a autonomia. Ou algum dos indígenas
brasileiros pode proibir a instalação de uma hidroelétrica, mesmo que nas
reservas nas quais foram confinados? Ninguém consulta as tribos venezuelanas
sobre o que pensam da exploração de minérios, no território que, supostamente,
lhes pertence. A resistência destes povos nos joga na cara toda a incoerência
de que somos capazes, toda a hipocrisia que funda nossa cultura dominadora,
toda a violência de nossas instituições.
E aqui o ponto que nos custará enxergar – ou
assumir – enquanto não olharmos pra além de nossas diferenças: quão
dominados estamos nós, os que nos achamos dominadores? De que forma
conseguimos falar em independência?
Os turcos nos deram uma lição ímpar, no último 15 de julho, ao enfrentar, de
próprio punho, a artilharia dos golpistas. As pessoas tomaram as praças
e subiram sobre os tanques do Exército quase sem distúrbios, à exceção da ponte
do Bósforo, em que os militares abriram fogo contra os manifestantes. O
ex-presidente Abdullah Gul não perdoou: A Turquia não é um país
latino-americano para ter um golpe de estado, disparou pela CNN de lá. O
jornalista Alex Solnik deu novos matizes à nossa pergunta fundadora, em sua análise sobre o acontecido: Como pôde a
população turca abortar um golpe de estado sob ameaças com armas, e nós não
conseguimos reagir a um golpe sem tanques nem helicópteros, orquestrado por
grupos de políticos decadentes? Pergunta-de-um-milhão.
Convidemos à nossa tertúlia o gênio do
Massachusetts Institute, Noam Chomsky. Em seu livro
intitulado Mídia, Propaganda Política e Manipulação, nos explica
como os estados democráticos se articulam para que a nova forma de repressão se
confunda com a liberdade proposta pela democracia. Sem ruídos, canhões o
quaisquer sombras de beligerância, os meios de manipulação de
massas e os nossos sistemas educacionais garantem níveis jamais sonhados de
eficiência, quanto ao controle sobre nós. O poder se apresenta sempre
como altruísta, desinteressado, generoso, enquanto nos atrapa sem que nos
demos conta. É o que nos adverte o grande linguista, histórico defensor
da autonomia.
Aos que preferem uma perspectiva mais
literária sobre o assunto, mas não menos contundente, sugiro a leitura do
romance O Sonho do Celta, de Mario Vargas Llosa. Pela história do seu
protagonista, o irlandês Roger Casement– considerado herói por uns,
vilão por outros, condenado à morte por traição pela coroa britânica – vamos
descobrindo como a Inglaterra esconde o trabalho escravo que promove no Brasil
e Peru, justamente sob a máscara pública de nação libertadora. De
bônus, o Nobel de Literatura nos dá elementos suficientes, para entender com
que mecanismos os então nobres do decadente regime monárquico foram se
adaptando aos novos tempos, criando ferramentas legais e comerciais para a
preservação do seu poder político, e aumento de suas fortunas (5). Noutras
palavras, temos pistas de como velhas raposas se tornaram
ainda mais influentes e poderosos – donos de bancos, de companhias marítimas,
ferroviárias, exploradoras de seringueiras – utilizando mão de obra de
miseráveis, financiando, sob a insígnia do desenvolvimento, um
sistema alternativo ao pacto colonial.
Foi assim que a onda de independências invadiu
as Américas. Será coincidência o fato de vários países sulamericanos compartilharem
certos heróis nacionais? Thomas Cochrane, por exemplo, esteve presente em
cinco deles. Fundou a Marinha Chilena, é aqui reverenciado como o escocês que salvou o Brasil, tendo sido o Primeiro
Marquês do Maranhão. Como é bem conhecido pelos brasileiros, o Maranhão é
hoje o estado mais pobre do país, apresenta os piores índices sociais, mesmo
sendo – não por acaso, digo eu – a terra natal do ex-presidente
José Sarney, maior latifundiário vivo desta republica tupiniquim, cuja campanha
partidária é financiada por empresas acusadas de trabalho escravo.
Outro dos nossos multi-heróis de
independência foi o argentino José de San Martín. Quem curiosamente,
sob mando espanhol, lutou contra as tropas francesas de Napoleão na batalha de
Bailén. [...] Em 1811, a bordo da fragata George Canning, partiu da Inglaterra
em direção ao Río de la Plata, onde atracou no dia 9 de março de 1812 [ler texto completo]. Participou de batalhas decisivas no Chile,
ombro a ombro com Bernardo O’Hinggs, chegando a ser presidente, não da
Argentina ou Chile, senão que do Peru, entre 1821 e 1822.
Não creio que ninguém duvide da motivação
destes senhores. Mas quem financiava suas façanhas? Fique claro, de antemão,
que não tenho a mínima competência para falar dos seus ou de quaisquer outros
feitos narrados nos episódios que conhecemos. Interessa-nos, tão somente, a
pergunta inicial sobre nossas supostas independências. Não lhes parece que
saltamos de uma prisão para a outra? De colonizados que éramos pela
Espanha e Portugal, a endividados e dependentes dos banqueiros ingleses, que
diferenças há? Mais: quem são os que nos controlam hoje? Quem põe
as cartas sobre nossas mesas? A quem prestamos contas de nossas ações?
Idiotas como Donald Trump são alvos fáceis de
identificar e criticar, desde que se tenha um mínimo de sensibilidade e bom
senso. Mas o barulho que ele faz só ajuda a esconder as manobras dos demais
políticos, que passam a ser encarados como menos ruins, como é o
caso de Bill e Hillary Clinton: nos últimos 24 anos, receberam o apoio de banqueiros de Wall Street em troca da
legalização de práticas financeiras que, antes deles, eram proibidas. O Open
Secrets, que publica informações sobre contas e cifras empregadas na
política dos norte-americanos, fez um trabalho minucioso sobre dinheiro sujo usado em campanhas, suas origens,
processos e usos que lhe são dados. Entre outras coisas, o site aponta os
grupos que mais demandam esse tipo de negócio, os maiores doadores, e em que
campanhas foi empregado. Já no Peru, dois dos principais financiadores da candidata Keiko
Fujimori estão
entre os figurões dos Panamá Papers. No Brasil, ainda que não seja
exclusividade nossa, é prática comum que uma mesma empresa financie,
simultaneamente, as campanhas de partidos de situação e oposição, como ficou
demonstrado com a publicação da lista de delação de Marcelo Odebrecht, pela operação
Lava Jato.
Mapuches, chilenos, argentinos, brasileiros,
uruguaios, panamenhos, porto-riquenhos, mexicanos... uns más, outros menos,
somos todos prisioneiros de esquemas internacionais, que mantêm esta
dependência. Não somente é urgente que modifiquemos isto, como já há centenas
de pessoas e grupos trabalhando nas mais diversas frentes, com esta finalidade.
Mas necessitamos de uma rede muito maior, melhor equipada e organizada. Negar
esta condição de subserviência, esconder-nos por trás de histórias ufanistas, é
negar-nos as chances de articulação para sair dela.
Bom começo será mapear nossa crenças
limitantes, mudar nossa mentalidade, e avançar com honestidade. Somos fortes o
suficiente para enfrentar estas quimeras. De nossa capacidade de nos dar as
mãos depende nosso êxito. De recuperar nosso fôlego depois de cada queda, de
voltar ao rumo logo de nossos erros. Defendamo-nos juntos, façamo-nos firmes
contra cada movimento segregacionista, misógino, racista ou xenófobo. Encaremos
de frente a tudo o que nos separa, para que possamos nos ver como irmãos,
para curar nossas feridas, e poder inaugurar independências e autonomias de
verdade.
© obvious: http://obviousmag.org/anarquica_chancelaria/2016/mentiras-de-independencia-historico-de-golpes-politicos-no-brasil-1.html#ixzz4JwtV8A8V
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