Jefferson Puff - @_jeffersonpuffDa BBC
Brasil no Rio de Janeiro
Pela primeira vez assisto a uma
competição paralímpica
A estudante fluminense Júlia Freitas,
de 21 anos, trava batalhas cotidianas para encontrar ânimo.
"Tem dias que eu acordo e vejo a minha cadeira e me dá nojo. Fico
desanimada, choro, penso que não sirvo para nada", conta a jovem, que
nasceu com hidrocefalia, perdeu o movimento das pernas e aos três dias de vida
passou pela primeira cirurgia.
Complicações no sistema nervoso e na coluna já fizeram com que tivesse
que enfrentar outras 13 operações ao longo da vida, a última delas em abril
deste ano.
Júlia diz que já sofreu muito por conta de ofensas e isolamento na
escola e sente que o preconceito é, ainda hoje, seu maior obstáculo.
Mas assistir a uma competição dos Jogos Paralímpicos do Rio lhe deu uma
nova perspectiva: "Fiquei de queixo caído. Eles não têm limite. E se eles
podem, por que não eu?"
Ao mesmo tempo, ela lamenta a ausência de transmissão da competição na
TV aberta: "Me senti excluída."
Júlia é um dos 33 mil jovens da rede estadual de ensino que assistiram à
Paralimpíada por conta de uma parceria entre o Comitê Rio 2016 e o Estado do
Rio de Janeiro.
"Nunca tinha visto uma competição de esporte paralímpico. Fiquei de
queixo caído. A formam como eles jogam é incrível. Naquele momento você vê que
eles não têm limite, e na hora em que eu vi pensei 'eu quero isso para a minha
vida'. Me deu um incentivo para ir adiante. Se eles podem, por que não eu?
Achei lindo o goalball. Fiquei tão emocionada de estar dentro do estádio
vendo tudo aquilo de perto que me deu vontade de chorar.
Às vezes você não vê motivação para seguir em frente. Tem dias que eu
acordo e vejo a minha cadeira e me dá nojo. Fico desanimada, choro, e penso que
não sirvo para nada. Dá vontade de largar tudo e nem sair mais de casa. Mas não
seria justo com a minha mãe nem com todos que gostam de mim. Aí me dou conta de
que a cadeira são as minhas pernas, e de que preciso dela como minha ferramenta
de vida.
Em dias assim quando estou na casa das minhas tias, por exemplo, tenho
vontade de ajudar, e acabo varrendo a casa toda, lavo louça. Não é nada fácil,
mas depois me dá a sensação de que eu posso fazer as coisas. Superando esse limite,
mesmo que pequeno, já me sinto mais forte.
Júlia
assistiu a uma competição de goalball (acima) na Rio 2016
Uma das coisas mais difíceis da minha vida foi o bullying que sofri
quando entrei na escola. Era uma escola regular, de crianças sem deficiência.
Eles debochavam de mim, riam. Eu passava o recreio sem ninguém, e aos poucos
até algumas meninas que gostavam de mim passaram a me maltratar. Me sentia
totalmente sozinha.
Aos sete anos uma professora me largou na sala de aula. Faltavam apenas
dois degraus para ela me levar para
fora, mas eu fiquei um tempão largada sozinha e isso me marcou muito. Passei
por várias escolas, e as experiências não foram boas. Um tempo depois, eu disse
para a minha mãe que não aguentava mais, e ela me passou para uma escola
especial.
Quando vi outras crianças com deficiência e em cadeira de rodas, foi
como se eu tivesse encontrado o meu mundo. Não sofria discriminação, não
debochavam de mim, não queriam me bater e não me deixavam sozinha.
Tive muito medo de voltar para uma escola regular, mas hoje as coisas
melhoraram muito. Estou no primeiro ano do ensino médio por ter passado seis anos
fora (da escola), e tenho muitos amigos, eles me ajudam, gostam de mim. Os
professores me tratam muito bem. Eu me sinto parte da turma.
O dia que mais gosto é o da aula de Educação Física. Jogo handball,
participo das brincadeiras. Meus colegas me conduzem na cadeira e tem dias que
perguntam se vai ser 'com ou sem emoção', é muito divertido.
Nós deficientes só temos algumas limitações, mas somos tão gente quanto
qualquer outro, e temos os mesmos direitos. Hoje eu me sinto mais respeitada,
mas o preconceito é de longe a pior das dificuldades.
É aquele olhar de pena quando você está na rua. É aquela pessoa que diz
para minha mãe, na minha frente: 'que pena, uma menina tão linda, e na cadeira
de rodas'. É horrível. Se as pessoas conversassem com um deficiente e soubessem
o mal que isso faz, jamais agiriam dessa forma.
Temos outros problemas, claro. Transporte público, calçadas, falta de
rampas em prédios, falta de acessibilidade. Mas por que não fazem? Porque não
nos levam em consideração. No fundo o preconceito, essa sensação de que não
somos pessoas como os outros, é o que está por trás de tudo isso.
Em Petrópolis (região serrana do RJ) temos um ônibus de linha adaptado
que passa na minha rua. Assim posso ir e voltar da escola. Eu e minha mãe somos
sozinhas e não temos carro, então tudo é feito de ônibus e com a ajuda dos
outros (para subir) escadas, locais sem rampa, ladeiras.
Mas isso não é luxo. Nosso direito ao transporte é o mínimo, somos
cidadãos.
Minha esperança é de que a Paralimpíada no Brasil mude um pouco essa
visão sobre o deficiente. Tenho dúvidas sobre a chance real de isso acontecer,
mas de tudo que os Jogos podem deixar de bom para nós esse seria o reflexo mais
duradouro.
A própria forma como a mídia retratou os Jogos é um exemplo. Se passaram
a a abertura da Olimpíada e transmitiram tantos jogos ao vivo, por que nenhuma
das principais TVs abertas transmitiram a Paralimpíada? Fiquei revoltada, me
senti excluída. Pediria que repensassem, porque hoje sou eu (a deficiente) mas
amanhã pode ser algum deles, um filho deles.
Já fiz mais de sete cirurgias na cabeça e duas na coluna, fora outras. A
última foi na coluna porque estava perdendo as forças nos braços e não
conseguia mais sustentar o peso da cabeça.
Mas vou seguir em frente e realizar meu sonho de cursar a faculdade de
Psicologia. Gostaria de fazer Medicina e me especializar em oncologia, porque
já perdi três pessoas da família por conta do câncer. Mas seria muito difícil.
Tenho tendência à depressão e não ia conseguir lidar com tanto sofrimento, mas
com a psicologia também vou poder dar força a essas pessoas, vou poder ajudar.
Nós temos que perseverar, insistir, buscar motivação e exemplos de superação.
Vale a pena ir em frente."
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