Literatura e
arte
Publicado
por Julian Barg
Músico
e leitor desde sempre; compositor, licenciado em Letras e mestre em Literatura,
posteriormente.
Afinal,
quem foi?
Em Crime e castigo podemos considerar que
temos uma narrativa de "exposição da vida", em contraponto ao que
poderia ser chamado de "narrativa dos fatos". Quando falamos em
Dostoiévski e outros escritores já considerados clássicos, é comum que as
pessoas tenham a impressão de que irão se deparar com obras densas, pesadas,
lentas. As obras de Dostoiévski não são pesadas, elas expõem a vida, e dentro
dela estão os fatos, diferentemente da tendência contemporânea de expor os
fatos para que, através deles, a vida se revele.
Podemos entender e visualizar a narrativa de
Crime e castigo como um tronco que se ramifica em galhos (os personagens, os
diálogos longos, as intrigas que se formam lentamente, as subdivisões e camadas
de entendimento sobre a existência, a condição humana), mas que, a partir de
certo ponto, após um longo tempo, voltam a se juntar em um único tronco (ou
espinha dorsal) onde a somatória das ramificações forma um novo sentido. Temos
a impressão de que a narrativa se abre, indo em direções opostas, correndo para
lados inversos por muitas vezes. Mas em algum momento começamos a perceber que
esses afluentes formam um novo rio (ou avançando retornam ao mesmo rio
principal de onde parecia que estavam se afastando). A maestria da narrativa de
"exposição da vida" consiste nesse afastamento/aproximação dos
caminhos, de forma que o leitor seja "capturado" por uma rede que o
embaraça na história e o faz tornar-se parte dela.
A maneira de conhecermos os personagens da
obra é através do tempo, da exposição aos seus diálogos, das nuances de suas
frases, que revelam - lentamente - suas características. Praticamente não temos
um narrador explicando como cada um deles pensa. Isso seria rápido,
"eficiente", simples e direto ao ponto, porém superficial (saber não
é sentir). Após sermos expostos aos personagens e fatos lentamente, o ambiente
da narrativa penetra no leitor e passamos a sentir o que de fato acontece, em
uma leitura orgânica em que a realidade do romance se mescla com a nossa: uma
estado de imersão. E a tão chamada lentidão está nesse processo: não há imersão
rápida, imediata, "eficiente" no conceito moderno. A vida precisa de
tempo para ser sentida, a narrativa de "exposição da vida", também.
À medida que a obra vai se revelando - e
principalmente na terceira parte do livro - algo fica bastante claro na escrita
de Dostoiévski: este é um livro engajado, em que questões que vão muito além
das técnicas narrativas e literárias em geral tomam conta do imaginário (e dos
questionamentos) do leitor.
Com a revelação do pensamento de Raskolnikóv
sobre o que ele chama de "ordinários" e "extraordinários",
teremos material humano de sobra para discutir as ideias do autor, porém, não
teria como deixar de lado uma questão que é SIM literária: a exposição
dicotômica da psicologia do personagem principal, algo que termina por
influenciar nossas opiniões em relação às ideias de Dostoiévski:
1. Raskolnikóv é apresentado como um
personagem à beira da insanidade (ou pelo menos muito confuso), com febre (ou
febre mental), sempre com uma sensação de enlouquecimento ou de desequilíbrio.
2. Por outro lado, mesmo com essas
características, seu pensamento e seu julgamento sobre o mundo exterior são, na
maior parte do tempo, muito lúcidos. A própria "defesa" e argumento
sobre os "escolhidos" terem o direito de matar ou cometerem atos sem
ética baseados na evolução do pensamento humano são extremamente lógicos, o que
contradiz o que seria um estado mental prejudicado.
Essas duas questões, juntas, enriquecem a
obra ao torná-la mais complexa, pois não podemos evitar questionarmos se:
1. Seus argumentos são baseados em seu estado
mental prejudicado.
2. Seu estado mental é fruto da culpa por ter
cometido um crime.
3. Seu estado mental é prejudicado
INDEPENDENTEMENTE do crime que cometeu.
4. As duas situações existem sem estarem
ligadas (sua "doença" e seus argumentos podem conviver juntos em uma
mesma mente INDEPENDENTEMENTE de uma depender da outra ou ser uma questão de
causa ou consequência).
Com todas essas características e a
profundidade que a obra apresenta, surge a questão do título deste texto:
"Quem escreveu a parte final de Crime e castigo?".
A diferença de proposta narrativa, de caráter
e natureza dos personagens, a imediata mudança que transforma a obra em um
livro totalmente contrário ao que vinha se apresentando soa como um súbito
desespero para finalizar a obra, "humanizar" de forma simplista
personagens antes complexos e dar uma reviravolta que não parece estar à altura
do gênio de Dostoiévski. O que começou e se desenvolveu de forma profunda
dispara para um final curto, simplificado, distante do estilo de Dostoiévski.
Até mesmo os valores de Raskolnikov não fazem
sentido em relação ao perfil que este demonstrou durante toda a obra. De
repente tudo é fácil (para quem tudo era difícil), o amor salva (para quem nem
acreditava nele), e tudo isso com o agravante de que esses traços se resolvem
em poucas linhas, uma vez que nem essa é uma característica do escritor russo.
Existem dois livros, e a parte final é, seguramente outro, diferente do que
vínhamos lendo até então.
Como é possível que em 90% de uma obra um
autor de disponha e escrever uma grande obra, apenas para, em poucas páginas,
desfazer tudo o que criou, como se faltassem cinco minutos para o final de uma
prova e um profundo conhecedor de um assunto, que levou horas para responder às
questões da melhor e mais completa maneira possível de repente comece a
responder qualquer coisa que lhe vem à cabeça para poder terminar a tempo?
O contraste entre a obra toda e seu final é
quase como a comparação (tosca, sim) de uma ópera finalizada com um estilo de
música pop, bastante facilitado, com duas ou três palavras que formam seu
refrão para que todos saiam relaxados e contentes por terem aprendido e
apreendido a canção. Essa intenção de "agradar",
"facilitar", é de Dostoiévski? Esse mesmo autor que até então havia
escrito uma obra impecável?
É de se duvidar (ou ao menos questionar) a
mesma autoria nos dois casos, na obra como um todo e neste final empobrecido.
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