domingo, 11 de setembro de 2016

QUEM, DE FATO, ESCREVEU O FINAL DE CRIME E CASTIGO?

 Literatura e arte


  
Publicado por Julian Barg
Músico e leitor desde sempre; compositor, licenciado em Letras e mestre em Literatura, posteriormente.




  
Afinal, quem foi?






Em Crime e castigo podemos considerar que temos uma narrativa de "exposição da vida", em contraponto ao que poderia ser chamado de "narrativa dos fatos". Quando falamos em Dostoiévski e outros escritores já considerados clássicos, é comum que as pessoas tenham a impressão de que irão se deparar com obras densas, pesadas, lentas. As obras de Dostoiévski não são pesadas, elas expõem a vida, e dentro dela estão os fatos, diferentemente da tendência contemporânea de expor os fatos para que, através deles, a vida se revele.
Podemos entender e visualizar a narrativa de Crime e castigo como um tronco que se ramifica em galhos (os personagens, os diálogos longos, as intrigas que se formam lentamente, as subdivisões e camadas de entendimento sobre a existência, a condição humana), mas que, a partir de certo ponto, após um longo tempo, voltam a se juntar em um único tronco (ou espinha dorsal) onde a somatória das ramificações forma um novo sentido. Temos a impressão de que a narrativa se abre, indo em direções opostas, correndo para lados inversos por muitas vezes. Mas em algum momento começamos a perceber que esses afluentes formam um novo rio (ou avançando retornam ao mesmo rio principal de onde parecia que estavam se afastando). A maestria da narrativa de "exposição da vida" consiste nesse afastamento/aproximação dos caminhos, de forma que o leitor seja "capturado" por uma rede que o embaraça na história e o faz tornar-se parte dela.
A maneira de conhecermos os personagens da obra é através do tempo, da exposição aos seus diálogos, das nuances de suas frases, que revelam - lentamente - suas características. Praticamente não temos um narrador explicando como cada um deles pensa. Isso seria rápido, "eficiente", simples e direto ao ponto, porém superficial (saber não é sentir). Após sermos expostos aos personagens e fatos lentamente, o ambiente da narrativa penetra no leitor e passamos a sentir o que de fato acontece, em uma leitura orgânica em que a realidade do romance se mescla com a nossa: uma estado de imersão. E a tão chamada lentidão está nesse processo: não há imersão rápida, imediata, "eficiente" no conceito moderno. A vida precisa de tempo para ser sentida, a narrativa de "exposição da vida", também.
À medida que a obra vai se revelando - e principalmente na terceira parte do livro - algo fica bastante claro na escrita de Dostoiévski: este é um livro engajado, em que questões que vão muito além das técnicas narrativas e literárias em geral tomam conta do imaginário (e dos questionamentos) do leitor.
Com a revelação do pensamento de Raskolnikóv sobre o que ele chama de "ordinários" e "extraordinários", teremos material humano de sobra para discutir as ideias do autor, porém, não teria como deixar de lado uma questão que é SIM literária: a exposição dicotômica da psicologia do personagem principal, algo que termina por influenciar nossas opiniões em relação às ideias de Dostoiévski:
1. Raskolnikóv é apresentado como um personagem à beira da insanidade (ou pelo menos muito confuso), com febre (ou febre mental), sempre com uma sensação de enlouquecimento ou de desequilíbrio.
2. Por outro lado, mesmo com essas características, seu pensamento e seu julgamento sobre o mundo exterior são, na maior parte do tempo, muito lúcidos. A própria "defesa" e argumento sobre os "escolhidos" terem o direito de matar ou cometerem atos sem ética baseados na evolução do pensamento humano são extremamente lógicos, o que contradiz o que seria um estado mental prejudicado.
Essas duas questões, juntas, enriquecem a obra ao torná-la mais complexa, pois não podemos evitar questionarmos se:
1. Seus argumentos são baseados em seu estado mental prejudicado.
2. Seu estado mental é fruto da culpa por ter cometido um crime.
3. Seu estado mental é prejudicado INDEPENDENTEMENTE do crime que cometeu.
4. As duas situações existem sem estarem ligadas (sua "doença" e seus argumentos podem conviver juntos em uma mesma mente INDEPENDENTEMENTE de uma depender da outra ou ser uma questão de causa ou consequência).
Com todas essas características e a profundidade que a obra apresenta, surge a questão do título deste texto: "Quem escreveu a parte final de Crime e castigo?".
A diferença de proposta narrativa, de caráter e natureza dos personagens, a imediata mudança que transforma a obra em um livro totalmente contrário ao que vinha se apresentando soa como um súbito desespero para finalizar a obra, "humanizar" de forma simplista personagens antes complexos e dar uma reviravolta que não parece estar à altura do gênio de Dostoiévski. O que começou e se desenvolveu de forma profunda dispara para um final curto, simplificado, distante do estilo de Dostoiévski.
Até mesmo os valores de Raskolnikov não fazem sentido em relação ao perfil que este demonstrou durante toda a obra. De repente tudo é fácil (para quem tudo era difícil), o amor salva (para quem nem acreditava nele), e tudo isso com o agravante de que esses traços se resolvem em poucas linhas, uma vez que nem essa é uma característica do escritor russo. Existem dois livros, e a parte final é, seguramente outro, diferente do que vínhamos lendo até então.
Como é possível que em 90% de uma obra um autor de disponha e escrever uma grande obra, apenas para, em poucas páginas, desfazer tudo o que criou, como se faltassem cinco minutos para o final de uma prova e um profundo conhecedor de um assunto, que levou horas para responder às questões da melhor e mais completa maneira possível de repente comece a responder qualquer coisa que lhe vem à cabeça para poder terminar a tempo?
O contraste entre a obra toda e seu final é quase como a comparação (tosca, sim) de uma ópera finalizada com um estilo de música pop, bastante facilitado, com duas ou três palavras que formam seu refrão para que todos saiam relaxados e contentes por terem aprendido e apreendido a canção. Essa intenção de "agradar", "facilitar", é de Dostoiévski? Esse mesmo autor que até então havia escrito uma obra impecável?
É de se duvidar (ou ao menos questionar) a mesma autoria nos dois casos, na obra como um todo e neste final empobrecido.







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