Ciência:
Cerveja
Cientistas reconstruíram a árvore genealógica do
fermento fundamental para obter pão e bebidas alcoólicas
Por NUÑO DOMÍNGUEZ
para
El País, o Jornal Global
“Antes da descoberta da cerveja, as pessoas costumavam vagar de um lugar
para outro seguindo as cabras. Depois perceberam que o grão podia ser cultivado
e transformado em pão, e que podia ser esmagado e transformado num líquido que
produzia uma sensação agradável, quente e acolhedora. Os dias de seguir as
cabras acabaram. Os seres humanos se assentaram para esperar que o grão
crescesse e a cerveja fermentasse. Trocaram suas barracas por aldeias, estas se
tornaram vilas, depois cidades” e assim até hoje. O cientista Charles Bamforth,
veterano especialista em processos de fermentação da Universidade da
Califórnia, Davis (EUA), resume dessa maneira a origem das sociedades atuais.
“A cerveja é o pilar da civilização contemporânea”, enfatizou em uma de suas
conferências reunidas pela revista Scientific American.
O que
está claro é que o mundo de hoje seria impensável sem a domesticação das
leveduras, fungos microscópicos que transformam o açúcar em álcool e em outros
produtos. Apesar de sua importância, esse processo de seleção artificial foi
muito menos estudado do que o dos animais domésticos ou o das plantas.
Agora, quase vinte pesquisadores de Bélgica,
Alemanha e EUA sequenciaram o genoma de 157 leveduras da espécie Saccharomyces cerevisiae, usadas para fazer cerveja,
vinho, licores, saquê, pão e bioetanol, representativas de todas as variantes
comerciais atuais.
Os resultados revelaram que a imensa maioria
descende de um pequeno número de ancestrais selecionados pelos seres humanos.
Sua árvore genética, descrita no estudo, tem cinco grandes ramos: leveduras
asiáticas, que incluem aquelas que produzem o famoso fermentado de arroz
japonês; as que fazem vinho; as que fazem pão e duas famílias diferentes de
cervejas. De todas elas, a mais domesticada é a da cerveja.
O trabalho detecta uma clara diferença
genética entre as leveduras com as quais se produz cerveja na Europa
continental, as do Reino Unido e um terceiro grupo que engloba as dos EUA, cuja
origem está em leveduras que vieram da Inglaterra.
O ancestral de todas elas remonta a uma data
entre 1573 e 1604. Exatamente nessa época, destaca o estudo, publicado na revista Cell, uma transição-chave
aconteceu. Se até então a cerveja era feita em casa e cada família tinha a sua,
nessa época surgiram os primeiros lugares de produção em grande escala: os pubs
e os mosteiros. Os primeiros casos de produção da bebida são muito mais
antigos, há não menos de 3.000 anos, mas, de acordo com o trabalho, as cervejas
atuais são feitas com leveduras que descendem desses ancestrais selecionados no
fim do século XVI.
“Os cervejeiros daquela época foram
suficientemente inteligentes para reciclar o sedimento remanescente depois de
cada fermentação e adicioná-lo à seguinte, fazendo com que o processo fosse
cada vez mais consistente e rápido”, diz Kevin Verstrepen, pesquisador da
Universidade Católica de Louvain e do Instituto de Biotecnologia de Flandres e
principal autor do estudo. A cerveja era produzida durante o ano todo, levava
apenas uma semana para fermentar e, como os micróbios se multiplicam muito mais
rapidamente do que cães e vacas, isso permitiu um processo de domesticação em
tempo recorde.
“A levedura de cerveja é um dos organismos
mais domesticados do planeta”, observa Verstrepen. “Quase não sobreviveriam num
ambiente natural e estão totalmente adaptadas para viver nas cervejarias, são
um pouco como os cães”, explica. Por outro lado, as leveduras do vinho “são
mais parecidas com os gatos, porque mantiveram muito mais genes selvagens, em
parte porque o vinho é produzido apenas uma vez por ano, não como a cerveja”.
A levedura de cerveja foi domesticada por
pura intuição, muito antes que a humanidade descobrisse a existência dos micróbios.
“Na Idade Média, provavelmente, a levedura de pão era muito semelhante à da
cerveja e existem referências de que padeiros e cervejeiros as trocavam, sem
saber, é claro, o que eram exatamente”, diz Verstrepen. “Parece que as
variantes atuais são de panificação são híbridos obtidos de leveduras de
cerveja”, destaca.
O estudo genético mostra também que essas
variantes são usadas para fazer cervejas muito diferentes, como as de
fermentação alta (ales) e as cervejas pretas, embora
existam alguns tipos de cerveja que exigem levedura especial, como a espessa
cerveja branca da Alemanha (hefeweizen). Mais
tarde, em 1883, Emil Hansen, um micologista da cervejaria dinamarquesa
Carlsberg, obteve as primeiras culturas de levedura de cerveja puras que
permitiram a industrialização da bebida.
Depois de mais de 400 anos evoluindo ao lado
dos humanos, as leveduras domésticas se tornaram estéreis. Uma variante
selvagem recorre à reprodução sexual quando o alimento escasseia. Como as
domésticas estão sempre bem alimentadas, elas perderam completamente essa
capacidade.
Elas também têm genes especiais para
metabolizar os açúcares característicos da cevada e perderam a capacidade de
produzir compostos químicos que dão um sabor ruim. “Do mesmo modo, as leveduras
do vinho têm uma resistência genética ao cobre, que é utilizado para combater
infecções fúngicas nas vinhas”, conclui Verstrepen.
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