Arte pictórica
Publicado por Natalia Sales Cavalcante
Artemisia Gentileschi:
vingança, libertação e coragem no séc. XVII
“Os Persas estremeceram diante de sua
bravura, os Medes ficaram estarrecidos pela sua ousadia”
(O Livro de Judite, versículo 10)
Não, o herói não foi um forte e corajoso
rapaz, nem o filho de um poderoso Titã, ou ainda um temível monstro gigante;
foi pelas mãos de uma mulher, Judite, indefesa viúva, que o capitão do exército
assírio, Holofernes, teve a sua cabeça decepada, dando, assim, um fim à invasão
e iminente tomada da cidade de Israel pelos assírios.
A estória de Judite é fictícia, pertencente a
um dos livros do Velho Testamento, e tem lá os seus significados que não cabem
serem analisados aqui.
Em resumo da estória, Judite se infiltra no
exército inimigo, seduz Holofernes através de sua beleza e ‘bla bla bla’ e,
depois de um banquete em que fica embriagado de tanto vinho, a viúva toma posse
de sua espada e sem piscar, lhe corta a cabeça com a ajuda de sua criada, Abra.
Agora voltemos à realidade; neste caso, a de
Artemísia Gentileschi, uma exímia pintora do sec. XVII, que fez de sua arte uma
poderosa ferramenta contra a opressão da figura feminina, em busca da verdade e
da justiça.
Neste quadro ela retrata a cena do
assassinato bíblico de maneira realista, com todos os toques de crueldade e
esforço físico que o ato demanda. Aqui a personagem Judite é a agente da ação,
ela está em pleno controle, em completo domínio do seu corpo, de sua força, e
de sua mente, ou seja, ela não hesita ou se esquiva, ou amarela por um só
segundo. É uma cena física, ela e sua criada têm de lutar contra o homem que
tenta se defender, em vão.
Podemos ver claramente que Artemísia se
inspirou na versão de Caravaggio para o mesmo tema, uma rendição interessante e
bela, mas que, convenhamos, nem de longe possui o mesmo poder e força que a
versão ousada, realista, cruel e corajosa de Artemísia nos provoca.
Antes de continuar, acho relevante contar uma
parte essencial sobre a vida dessa admirável mulher e artista:
Com apenas 17 anos de idade, já uma talentosa
e promissora pintora, foi estuprada por um assistente do ateliê de seu pai, que
lhe serviu como tutor na época. Não cumprindo com a promessa de se casar com a
filha violentada e desonrada, como era de costume, o pai o acusou do crime e o
homem foi levado a julgamento, onde Artemísia teve de se submeter a impensáveis
humilhações, como exames ginecológicos dolorosos para verificar se ainda era
virgem, um objeto de tortura utilizado na época para esmagar, entortar ou
desentortar dedos, com diferentes níveis de pressão sobre eles, para o júri
retificar a veracidade da sua acusação. Mesmo sendo a vítima, ainda assim, teve
de provar a sua condição de vítima, em detrimento da própria dignidade e
integridade física.
Não podemos nos esquecer de que se tratava do
século XVII, logo, a mulher nao tinha credibilidade alguma frente a sociedade.
Nem como mulher, nem como artista, ou qualquer outra atividade que fosse
atribuída à figura masculina.
Com essa informação em mente, não podemos
deixar de associar uma coisa à outra, e perceber como a violência de que foi
vítima, e posteriormente o abuso e tortura a que teve de se submeter no
julgamento do homem que a havia violentado, influenciou a sua visão de mundo,
principalmente o papel da mulher e do homem no mundo, e por consequência, a sua
arte.
Apesar e acima de tudo e todos, Artemísia
sobreviveu e, sem saber, ou talvez sabendo, transformou suas pinturas, sua
arte, numa espécie de manifesto da liberdade, da tomada de controle pela mulher
do próprio corpo e mente. Foi a primeira artista a ser admitida na prestigiada
Accademia del Disegno, onde só havia pintores homens.
Desfrutou de fama e reconhecimento enquanto
viva, não só dos maiores pintores da época mas também da monarquia britânica
inclusive, sendo convidada junto a seu pai para servir à corte como pintora.
Mas após a sua morte, caiu no esquecimento, a
maior parte de suas pinturas sendo atribuídas a seu pai, - e a outros pintores
- que tinha o estilo parecido, mas sem o mesmo realismo, interpretações, dentre
outras características que faziam dela única.
Foi redescoberta no século XX, após 300 anos
de negligência acadêmica, e, ainda hoje, em pleno século XXI, suas pinturas
gráficas, um verdadeiro tour de force, ainda ressoam em nós como um grito de
libertação e autonomia, ainda extremamente e estranhamente necessário para
mulheres ditas modernas.
Esta pintura de Judite decapitando
Holofernes, é, sobretudo, um retrato da retomada de poder sobre uma força antes
dominante.
“Os homens modernos ficaram estremecidos
diante de sua bravura, e as mulheres modernas, estarrecidas frente à sua
ousadia.”
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