sábado, 12 de novembro de 2016

CRIME NA ALCOVA

  Arte pictórica









Publicado por Natalia Sales Cavalcante



Artemisia Gentileschi: vingança, libertação e coragem no séc. XVII



“Os Persas estremeceram diante de sua bravura, os Medes ficaram estarrecidos pela sua ousadia”



(O Livro de Judite, versículo 10)
Não, o herói não foi um forte e corajoso rapaz, nem o filho de um poderoso Titã, ou ainda um temível monstro gigante; foi pelas mãos de uma mulher, Judite, indefesa viúva, que o capitão do exército assírio, Holofernes, teve a sua cabeça decepada, dando, assim, um fim à invasão e iminente tomada da cidade de Israel pelos assírios.
A estória de Judite é fictícia, pertencente a um dos livros do Velho Testamento, e tem lá os seus significados que não cabem serem analisados aqui.
Em resumo da estória, Judite se infiltra no exército inimigo, seduz Holofernes através de sua beleza e ‘bla bla bla’ e, depois de um banquete em que fica embriagado de tanto vinho, a viúva toma posse de sua espada e sem piscar, lhe corta a cabeça com a ajuda de sua criada, Abra.
Agora voltemos à realidade; neste caso, a de Artemísia Gentileschi, uma exímia pintora do sec. XVII, que fez de sua arte uma poderosa ferramenta contra a opressão da figura feminina, em busca da verdade e da justiça.
Neste quadro ela retrata a cena do assassinato bíblico de maneira realista, com todos os toques de crueldade e esforço físico que o ato demanda. Aqui a personagem Judite é a agente da ação, ela está em pleno controle, em completo domínio do seu corpo, de sua força, e de sua mente, ou seja, ela não hesita ou se esquiva, ou amarela por um só segundo. É uma cena física, ela e sua criada têm de lutar contra o homem que tenta se defender, em vão.
Podemos ver claramente que Artemísia se inspirou na versão de Caravaggio para o mesmo tema, uma rendição interessante e bela, mas que, convenhamos, nem de longe possui o mesmo poder e força que a versão ousada, realista, cruel e corajosa de Artemísia nos provoca.


Antes de continuar, acho relevante contar uma parte essencial sobre a vida dessa admirável mulher e artista:
Com apenas 17 anos de idade, já uma talentosa e promissora pintora, foi estuprada por um assistente do ateliê de seu pai, que lhe serviu como tutor na época. Não cumprindo com a promessa de se casar com a filha violentada e desonrada, como era de costume, o pai o acusou do crime e o homem foi levado a julgamento, onde Artemísia teve de se submeter a impensáveis humilhações, como exames ginecológicos dolorosos para verificar se ainda era virgem, um objeto de tortura utilizado na época para esmagar, entortar ou desentortar dedos, com diferentes níveis de pressão sobre eles, para o júri retificar a veracidade da sua acusação. Mesmo sendo a vítima, ainda assim, teve de provar a sua condição de vítima, em detrimento da própria dignidade e integridade física.
Não podemos nos esquecer de que se tratava do século XVII, logo, a mulher nao tinha credibilidade alguma frente a sociedade. Nem como mulher, nem como artista, ou qualquer outra atividade que fosse atribuída à figura masculina.
Com essa informação em mente, não podemos deixar de associar uma coisa à outra, e perceber como a violência de que foi vítima, e posteriormente o abuso e tortura a que teve de se submeter no julgamento do homem que a havia violentado, influenciou a sua visão de mundo, principalmente o papel da mulher e do homem no mundo, e por consequência, a sua arte.
Apesar e acima de tudo e todos, Artemísia sobreviveu e, sem saber, ou talvez sabendo, transformou suas pinturas, sua arte, numa espécie de manifesto da liberdade, da tomada de controle pela mulher do próprio corpo e mente. Foi a primeira artista a ser admitida na prestigiada Accademia del Disegno, onde só havia pintores homens.
Desfrutou de fama e reconhecimento enquanto viva, não só dos maiores pintores da época mas também da monarquia britânica inclusive, sendo convidada junto a seu pai para servir à corte como pintora.
Mas após a sua morte, caiu no esquecimento, a maior parte de suas pinturas sendo atribuídas a seu pai, - e a outros pintores - que tinha o estilo parecido, mas sem o mesmo realismo, interpretações, dentre outras características que faziam dela única.
Foi redescoberta no século XX, após 300 anos de negligência acadêmica, e, ainda hoje, em pleno século XXI, suas pinturas gráficas, um verdadeiro tour de force, ainda ressoam em nós como um grito de libertação e autonomia, ainda extremamente e estranhamente necessário para mulheres ditas modernas.
Esta pintura de Judite decapitando Holofernes, é, sobretudo, um retrato da retomada de poder sobre uma força antes dominante.
“Os homens modernos ficaram estremecidos diante de sua bravura, e as mulheres modernas, estarrecidas frente à sua ousadia.”



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