Uma
crônica do livro Garimpando Lembranças
(1ª Edição)
de Luiz Carlos Facó
Meses atrás
recebi carta (e-mail) de um amigo muito querido, - só agora me proponho
respondê-la -, que não vejo há muitos anos. Eivada de elogios a este escriba,
dentre eles: “ Você é um ótimo poeta e um
talentoso crítico literário”. Logo entendi não se tratar de uma lisonja,
mesmo tendo advindo de um generoso coração. Parecia frase feita, uma emulação.
Um incentivo para que melhorasse nos dois gêneros literários. Mal sabendo ele
que me considero um arremedo de poeta. Tanto que há muitos anos convenci-me que
deveria parar de poetar, antes que os leitores me trucidassem. E que percebi a
tempo que como crítico literário seria um fiasco. Tenho pavor de conceituar
estilos e me ater a rígidas normas gramaticais. Interesso-me muito mais pelo
texto limpo, conciso, pelas palavras bem empregadas, pelos personagens
excelentemente delineados, pela trama bem urdida, pela emoção que o autor
através de sua pena me transmite. Em sendo assim, se me propusesse continuar a
versejar e a criticar, seria alvo de justas pedradas, atiradas pelos que não
perdoam nem a incompetência nem a presunção. Muito menos a arrogância.
É verdade
que há alguns anos, de maneira bissexta, fiz poesias e críticas. Hoje me dedico
a aprender a escrever. E só depois de tantos anos percebo cristalinamente que
se trata de um ofício assaz difícil. Lendo os textos de Machado de Assis, de um Renan, Proust, Honoré de Balzac, Gustave
Flaubert, Feodor Dostoievsky, Jorge Amado, até parece fácil. Ledo engano.
Não consigo, e ai não vai nenhuma pretensão, ser tão sutil e preciso como eles.
Ao contrário, meus textos são as mais das vezes verborrágicos, adjetivados, até
empolados.
Luto
desesperadamente para que não tenha a afetação dos deslumbrados, a sisudez dos
entediados, muito menos a imoderação dos submissos à vaidade, que a ela tudo
sacrificam. Caso vencesse porfia tão desigual, meus escritos refletiriam a
simplicidade que busco alcançar.
Acredito que
minhas forças, tão débeis, jamais permitiriam atingir grande sucesso. Mesmo
porque lutam contra a hereditariedade.
Herdei de
minha mãe o prazer pelo preciosismo, pela minúcia, pelo detalhe.
Ela era uma
mulher maravilhosa. Boníssima. Possuidora de uma simpatia esfuziante.
Belíssima. Tez morena, olhos verdes, pele acetinada, traços marcantes.
Sensível, compungia-se, frequentemente, com as dores alheias. Solidária, jamais
deixou de oferecer seu ombro em consolo às amigas perpassadas pela dor, pelo
infortúnio. Onde houvesse necessidade de uma palavra de alívio, a dela se fazia
ouvir.
Adorava
conversar. Tinha uma enorme capacidade de comunicação. Os fatos que lhe
chegavam ao conhecimento eram transmitidos a todos em minudências. A fidelidade
aos acontecimentos acompanhava sua narrativa. Mercê da intuição, criou modo
próprio de expor os assuntos.
Causava
impacto ao interlocutor logo no início da exposição. Para em seguida armar com
facilidade a carga dramática. Cobrindo de cores instigantes as personagens,
dando-lhes vida e nome. Entremeando cada uma das etapas com pormenores, até o
desfecho da história. Numa construção muito íntima do escritor de novelas,
própria dos roteiristas.
Certa noite
há quase cinco décadas distante, meu pai nos convidou para recepcionarmos a
viúva de um dos seus mais caros amigos, num dos restaurantes da cidade.
Em comitiva,
ele, minha mãe, eu e Sonia, minha companheira de cama há cinquenta e três anos,
partimos para buscar a homenageada e com ela participarmos de um jantar
previamente agendado.
No início, a
reunião ocorreu de maneira formal, até cerimoniosa. Com o passar do tempo,
depois de rememorarmos a figura do falecido, tecendo-lhe justos elogios, o gelo
desfez-se. A viúva de Zael, esse era o nome do companheiro de juventude de meu
pai, e pranteado marido da homenageada, passou ela a descrever a doença que o
vitimou, algumas vezes com contida emoção, outras, derramada de compreensível
dor e saudade. Enfatizara ainda a solidão a que estava exposta desde a morte do
marido.
Acabado o
jantar, cientes que sobrevivêramos àquele laudatório, tratamos de conduzir
nossa companheira ao hotel no qual se hospedara. Era egressa do Rio de Janeiro.
Neste
instante, minha mãe passou a contar-lhe sobre o desaparecimento de outro amigo nosso,
ocorrido na semana antecedente, em condições semelhantes à do infortunado Zael.
Ela iniciou
por traçar o perfil do desaparecido, suas aspirações, seus valores, sua
carreira, o futuro que lhe aguardava, a família, dando ênfase à contribuição da
companheira pelo sucesso do marido. Dos órfãos, revelou a idade, vaticinou o
amanhã da família. Era um relato substancial, denso, pleno de pormenores, que
já se arrastara por mais de uma hora.
Numa breve
interrupção do monólogo, meu pai nos levou ao carro que nos transportaria,
conduzindo-nos de retorno. E tão logo iniciamos o percurso, minha mãe retomou o
fio da meada. Mais solta. Dominando a plateia, ela passou a diagnosticar a causa mortis do falecido, os sintomas
que a precederam, aditando a opinião da junta médica, os procedimentos por ela
adotados na tentativa de salvar o
paciente, o padecimento dele, as esperanças da família.
Mais uma
hora, e já estacionados confronte ao hotel da viúva, minha mãe continuava sua
arenga. Segundo prevíamos, próxima do epílogo, a morte do infortunado amigo.
Entretanto, ela prosseguia com o mesmo vigor descritivo. Emendando um fato ao
outro. Só a curiosidade e o suspense, que despertava lhe utilizar o passaporte
que concedíamos para prosseguir com o enredo. Até o instante que meu pai, num
ato de desconforto e destempero, clamou:
- Mate logo
o homem, Alice!
Como jamais
fui dado a responder cartas, um tremendo saco, porém um prazer da senhora
Sevigné, grande dama da literatura e da história francesa, aproveito estas
linhas, meu prezado e queridíssimo amigo, para fazê-lo. Isso porque é imperioso
que conteste sua afirmativa, por improcedência. Não sou poeta muito menos
crítico literário.
Talvez,
quando muito, seja um mero e sofrível contador de casos. Fruto da herança
genética. Responsabilidade que debito a minha mãe.
Creia,
ainda, amigo velho, não obstante o esforço que faço para indagar e aprender,
sinto-me esmagado pela ignorância e tremo por concluir que jamais me considerei
um razoável escritor. Verdade cruel que me fará penar até o fim dos meus dias.
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