Literatura
Publicado por Bruno
Inácio
“É jornalista,
especialista em Literatura Contemporânea e em Gestão Cultural e estudante de
Filosofia e Direitos Humanos. É autor dos livros "Gula, Ira e Todo o
Resto" e "Coincidências Arquitetadas". Gosta de rock clássico,
Simpsons e do Darth Vader. Não gosta de beterraba, da carreira solo do John
Lennon e de livros de autoajuda.”
Livro
escrito no fim da vida do escritor estadunidense retrata egoísmo da humanidade
Autor de importantes obras, como As aventuras
de Tom Sawyer e O príncipe e o mendigo, Mark Twain atingiu o seu ápice como
escritor já na velhice, quando decidiu que o rótulo de artista bem-humorado não
o cabia mais.
Ele estava amargo, solitário e com pouca fé
na humanidade. Percebeu que as décadas haviam passado, mas os problemas dos
homens eram os mesmos: apego aos bens materiais, ganância, falta de empatia,
individualismo e até mesmo barbáries.
Twain decidiu que precisava escrever sobre
aquilo e mostrar qual era a sua visão de mundo ao fim da vida. Como
interlocutor de todos os problemas que gostaria de evidenciar no livro, Twain
escolheu ninguém menos do que o próprio diabo como personagem. E assim surgia o
livro “O estranho misterioso”, publicado postumamente em 1916, seis anos depois
da morte do escritor.
A história se passa numa aldeia, durante a
idade média, e narra o encontro de três crianças com um estranho, que se
apresenta como um anjo chamado Satã. Rapidamente o homem sinistro conquista a
atenção do trio com suas habilidades especiais, como leitura de mentes, a
capacidade de fazer aparecer alimentos e até de criar vida.
Ao mesmo tempo em que demonstra certo
interesse pela vida humana, Satã a despreza, dizendo que a mente dos homens é
pouco desenvolvida e que suas ações são irracionais e sem sentido. Para
ilustrar o que diz, ele chega a criar uma pequena comunidade de pessoas feitas
à argila e não demora muito para que elas comecem a brigar entre si, devido à
ganância e disputa pelo poder.
À medida que a narrativa avança, Satã acaba
se envolvendo com a aldeia de diversas formas. Suas ações acabam influenciando
a vida de várias pessoas do local, porém as três crianças permanecem como as
mais próximas dele, especialmente Theodore, o protagonista e narrador da
história.
Os diálogos elaborados, repletos de metáforas
e ironias, trazem inúmeros questionamentos a respeito do senso moral e da
natureza humana. Satã evidencia que o egoísmo nos isola, enquanto criamos uma
dependência quase cega pelos bens materiais.
A falta de empatia, o pré-julgamento e o medo
do conhecimento também são brilhantemente abordados na obra literária, sempre
com um pessimismo quase kafkiano.
Satã, ocupando o papel de porta-voz do
próprio Mark Twain, traz provocações a respeito daquilo que somos e
acreditamos. Questiona, por exemplo, o uso da palavra desumano quando é dita por
um dos garotos, depois que um bêbado agride um cão sem motivo algum. Lembra que
nenhum ser no universo é capaz de tantas barbaridades, a não ser, justamente, o
humano, o que torna essa palavra no mínimo contraditória.
Em outro trecho, ele reflete a respeito da
relação entre inteligência e felicidade. Diz que apenas os que têm uma visão
extremamente distorcida da realidade conseguem ser realmente felizes. Os
demais, quanto mais inteligentes forem, mais tristes serão, pois perceberão o
que o mundo realmente é: um grande palco de injustiças e desigualdades.
Por fim, no trecho que pessoalmente considero
o melhor do livro, Satã começa a questionar se Theodore realmente existe ou se
ele é apenas o fruto de um pensamento. Neste, que é o último diálogo do livro, o
anjo decaído reflete sobre o que é realidade e apresenta o conceito de
múltiplas dimensões.
Muitas das temáticas do livro viriam a ser
abordadas posteriormente por escritores existencialistas, como Jean Paul
Sartre, ou mesmo no campo da psicologia, por Jung.
No ano de 1985, foi lançado o filme As
aventuras de Mark Twain, um desenho animado em stop motion no qual o autor e
três crianças - Tom Sawyer, Huck Finn e Becky Thatcher - viajavam por diversas
obras do escritor. Há a cena baseada em “O estranho misterioso”, que é bastante
perturbadora para uma animação. Confira o vídeo:
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