Literatura
portuguesa
Publicado por Ivan Gomes
Andarilho
exilado voluntariamente na Ilha de Santa Catarina, formosa Desterro. Graduando
em Ciências Sociais, servidor público, mas diletante nas horas vagas. Observar
e absorver experiências: um líquido mais denso, que vaza mais demoradamente.
Filho da dúvida com a inquietação, de alma multiplicada. Uma vontade com
aspiração de força.
O ego, o indivíduo, o
ser. A cultura ocidental sempre foi compelida a ver o sujeito como uno,
indivisível, portador de uma essência. Friedrich Nietzsche, o filósofo alemão
'do martelo', e Fernando Pessoa, o poeta português que 'foi vários', trazem uma
perspectiva diferente: onde somos múltiplos - abrindo inúmeras e frutíferas
possibilidades de ser, e fazer, e viver e criar.
O um não existe. É um mito. A matemática
tentou comprovar sua viabilidade lógica – em vão. Quando pensaram encontrar o
caminho, logo se viu que era falso. O um simplesmente não existe. Ao menos
nunca foi visto por aí - como Deus, ou o átomo. Dentre tantos outros alicerces
de todo o pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, está a
inexistência da unidade. O átomo é um mito. A vontade una é um mito. O ego –
chora Freud - é um mito. O indivíduo – sobretudo o indivíduo – é um mito.
Aliás, mito não – invenção. Uma invenção da modernidade.
Ao afirmar que na modernidade o solo é mais
fértil para o florescimento da individualidade – ou melhor, singularidade -,
Nietzsche não está falando daquela individualidade atomista que destaca o
sujeito da sociedade. Isso seria impossível. Além disso, qualquer destaque que
separe algo de um todo – do mundo, do universo, da vida - é falso. Estamos
inseridos no mundo, no universo, na vida. E como bicho que vive em sociedade,
Nietzsche então entende o humano como um animal sócio fisiológico. Ou seja, um
corpo dotado de afetos e instintos, que tem a capacidade de reprimi-los,
canalizá-los, sublimá-los sob o jugo da consciência.
Ainda assim e apesar desse jugo e de todo o
constrangimento que se vive ao existir em uma civilização, há o subconsciente e
o inconsciente por toda a parte, pois ela é pequena, esta câmara da consciência
humana. É nesse 'fosso das Marianas' externo à consciência onde transitam cegos
os afetos. Afetos de todos os tipos. Do ódio ao amor, e ao ressentimento, e à
vingança e ao tédio. O medo que castra e a coragem que impulsiona, e tudo isso
misturado às vivências e experiências que atravessaram o corpo daquela
singularidade de nome próprio - nós. A razão, que faz morada na consciência, é
só mais uma dessas paixões que correm no turvo rio do corpo que pulsa a vontade
de potência.
Nesse espaço, e se formos levar mais além
todo o produto entre afetos e vivências, será que não poderíamos arriscar então
dizer que somos múltiplos? Dizer que usamos máscaras é talvez reconhecer que,
por detrás de todas elas, há um rosto nu. Há rosto nu? Será que vivemos mesmo
sem nunca sentir na face o vento que sopra gelado no inverno, sempre amparados
por máscaras pseudônimas? Perguntas demais cheira à Sócrates. Então afirmo que
não. Não racionalmente, mas por sentir. Sinto que somos vários. Somos todos
eles ao mesmo tempo. Àquele do álcool é tão 'eu' quanto aquele que carimba o
papel e assina em cima, com letras que lembram os rabiscos de Niemeyer: Ivan T.
Gomes. E se assinasse Pedro de Assis? Ou Carlos Buarque? Coexistiriam nesse
corpo?
Tantos em um. Foi assim que Fernando Pessoa
veio e disse pro mundo que num corpo a unidade continua um mito. Álvaro de
Campos, Bernardo Soares, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e outros 43. Quem afirma
que são meras invenções? Multiplicidade de afetos, perspectivas, vivências,
experiências, posturas perante a existência. E Fernando Pessoa? Claro. Espremido
entre todos que são um corpo. O nome na certidão de nascimento apenas sintetiza
todo esse complexo. Complexo de sujeitos que se completam ao mesmo tempo em que
se antagonizam. Ora atados em nós, ora repelindo-se como óleo e água,
coexistindo em um bojo de contradição e equilíbrio, desvios e abalos. Não é
isso o corpo? Não é isso a vida?
Buscar a unidade – a personalidade única – é
mais confortável: por ser convencional e ordeiro. Mas aceitar a multiplicidade
do espírito caótico, por mais doloroso que seja, cria um vórtice de
possibilidades criativas. Que o diga Pessoa. Ou Caeiro. Ou Campos. Ou Reis. Ou
Soares.
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