sábado, 5 de novembro de 2016

O SUJEITO MÚLTIPLO EM FERNANDO PESSOA

 Literatura portuguesa







Publicado por Ivan Gomes
Andarilho exilado voluntariamente na Ilha de Santa Catarina, formosa Desterro. Graduando em Ciências Sociais, servidor público, mas diletante nas horas vagas. Observar e absorver experiências: um líquido mais denso, que vaza mais demoradamente. Filho da dúvida com a inquietação, de alma multiplicada. Uma vontade com aspiração de força.





O ego, o indivíduo, o ser. A cultura ocidental sempre foi compelida a ver o sujeito como uno, indivisível, portador de uma essência. Friedrich Nietzsche, o filósofo alemão 'do martelo', e Fernando Pessoa, o poeta português que 'foi vários', trazem uma perspectiva diferente: onde somos múltiplos - abrindo inúmeras e frutíferas possibilidades de ser, e fazer, e viver e criar.



O um não existe. É um mito. A matemática tentou comprovar sua viabilidade lógica – em vão. Quando pensaram encontrar o caminho, logo se viu que era falso. O um simplesmente não existe. Ao menos nunca foi visto por aí - como Deus, ou o átomo. Dentre tantos outros alicerces de todo o pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, está a inexistência da unidade. O átomo é um mito. A vontade una é um mito. O ego – chora Freud - é um mito. O indivíduo – sobretudo o indivíduo – é um mito. Aliás, mito não – invenção. Uma invenção da modernidade.
Ao afirmar que na modernidade o solo é mais fértil para o florescimento da individualidade – ou melhor, singularidade -, Nietzsche não está falando daquela individualidade atomista que destaca o sujeito da sociedade. Isso seria impossível. Além disso, qualquer destaque que separe algo de um todo – do mundo, do universo, da vida - é falso. Estamos inseridos no mundo, no universo, na vida. E como bicho que vive em sociedade, Nietzsche então entende o humano como um animal sócio fisiológico. Ou seja, um corpo dotado de afetos e instintos, que tem a capacidade de reprimi-los, canalizá-los, sublimá-los sob o jugo da consciência.
Ainda assim e apesar desse jugo e de todo o constrangimento que se vive ao existir em uma civilização, há o subconsciente e o inconsciente por toda a parte, pois ela é pequena, esta câmara da consciência humana. É nesse 'fosso das Marianas' externo à consciência onde transitam cegos os afetos. Afetos de todos os tipos. Do ódio ao amor, e ao ressentimento, e à vingança e ao tédio. O medo que castra e a coragem que impulsiona, e tudo isso misturado às vivências e experiências que atravessaram o corpo daquela singularidade de nome próprio - nós. A razão, que faz morada na consciência, é só mais uma dessas paixões que correm no turvo rio do corpo que pulsa a vontade de potência.
Nesse espaço, e se formos levar mais além todo o produto entre afetos e vivências, será que não poderíamos arriscar então dizer que somos múltiplos? Dizer que usamos máscaras é talvez reconhecer que, por detrás de todas elas, há um rosto nu. Há rosto nu? Será que vivemos mesmo sem nunca sentir na face o vento que sopra gelado no inverno, sempre amparados por máscaras pseudônimas? Perguntas demais cheira à Sócrates. Então afirmo que não. Não racionalmente, mas por sentir. Sinto que somos vários. Somos todos eles ao mesmo tempo. Àquele do álcool é tão 'eu' quanto aquele que carimba o papel e assina em cima, com letras que lembram os rabiscos de Niemeyer: Ivan T. Gomes. E se assinasse Pedro de Assis? Ou Carlos Buarque? Coexistiriam nesse corpo?
Tantos em um. Foi assim que Fernando Pessoa veio e disse pro mundo que num corpo a unidade continua um mito. Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e outros 43. Quem afirma que são meras invenções? Multiplicidade de afetos, perspectivas, vivências, experiências, posturas perante a existência. E Fernando Pessoa? Claro. Espremido entre todos que são um corpo. O nome na certidão de nascimento apenas sintetiza todo esse complexo. Complexo de sujeitos que se completam ao mesmo tempo em que se antagonizam. Ora atados em nós, ora repelindo-se como óleo e água, coexistindo em um bojo de contradição e equilíbrio, desvios e abalos. Não é isso o corpo? Não é isso a vida?
Buscar a unidade – a personalidade única – é mais confortável: por ser convencional e ordeiro. Mas aceitar a multiplicidade do espírito caótico, por mais doloroso que seja, cria um vórtice de possibilidades criativas. Que o diga Pessoa. Ou Caeiro. Ou Campos. Ou Reis. Ou Soares.






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