sábado, 5 de outubro de 2013

O PEIXE DE OURO

Série: Os cem melhores contos brasileiros

Conto de Haroldo Maranhão


  
De borracha é a cintura do peixe de ouro, uma curva infinita cavada na
carne. E são deletérias as pernas do peixe de ouro, que se locomove

como se fosse o corpo acionado por molas. O andar é elástico, o andar do
peixe de ouro, e balança a cabeleira cor de charuto no dorso lisíssimo, tapando
a nuca. Não vejo a cara do peixe de ouro, sigo-lhe os passos, vejo-lhe as ancas,
de potranca, a roupa é rubra, a carne, de ouro, a carne do peixe de ouro. De repente o peixe inclina a cabeça e percebo, não há quem não perceba, um perfil de penugens que o sol divulga, nítido. Segue o peixe, segue, todo um rio o segue, rio de bichos, somos todos bichos, mordemos com vigor o músculo das ancas, arrancamos pedaços da anca, da melhor anca, da melhor.

Guardo no meu casaco o nobre fragmento da anca do peixe de ouro, e quero
ao menos um fio, um fio ao menos dos cabelos, mas já a cabeleira foi roubada
à força, quando voava descobrindo o pescoço. Cravo meus dentes na nuca
do peixe de ouro e bebo-lhe um mel, sugo aflito, como a uma fruta, meus
lábios ficam encharcados, escorre o mel, caem gotas na pedra, minha camisa
ensopa-se de baba e mel, um mel raro. Desoladamente constato que trepida
a epiderme desgarrada de seu recheio, em mantas, fiava pele há pouco
distendida em curvas, ora couro plissado, de gelhas. Peixe de ouro perde aos
poucos seu revestimento muscular, sangra, ossos despontam, interligados por
tendões, cartilagens, restos de carne. Com enorme rudez puxo um nervo
longo e de bom calibre para encordoar determinada viola d’amore. Desloco,
e com delicadeza removo uma vértebra do peixe, como quem se serve de um
doce, sorvo o creme vertebral e trituro a fina peça mal calcificada. A meu
lado, alguém empunha uma das tíbias como dava, e é milagre a sobrevida
do peixe de ouro, que não obstante prossegue sustentado não sei por que
espécie de fundamento. Poucos ossos, quase nenhum, raros tendões, nenhuma
carne. Agarro para mim a fossa ilíaca; luto por ela, ela me dilacera as mãos, mas é minha, conquistei-a, será o prato real onde comerei. Sigo, seguimos, impulsionados pelo mero costume, pois a unidade se partiu em blocos, o que era peixe não é, senão partículas, pó, aura, microtalco, microtalco de ouro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário