Série: Os cem melhores contos brasileiros
Conto de Haroldo Maranhão
De borracha é a cintura do peixe de
ouro, uma curva infinita cavada na
carne. E são deletérias as pernas do
peixe de ouro, que se locomove
como se fosse o corpo acionado por
molas. O andar é elástico, o andar do
peixe de ouro, e balança a cabeleira
cor de charuto no dorso lisíssimo, tapando
a nuca. Não vejo a cara do peixe de
ouro, sigo-lhe os passos, vejo-lhe as ancas,
de potranca, a roupa é rubra, a
carne, de ouro, a carne do peixe de ouro. De repente o peixe inclina a cabeça e
percebo, não há quem não perceba, um perfil de penugens que o sol divulga,
nítido. Segue o peixe, segue, todo um rio o segue, rio de bichos, somos todos
bichos, mordemos com vigor o músculo das ancas, arrancamos pedaços da anca, da
melhor anca, da melhor.
Guardo no meu casaco o nobre
fragmento da anca do peixe de ouro, e quero
ao menos um fio, um fio ao menos dos
cabelos, mas já a cabeleira foi roubada
à força, quando voava descobrindo o
pescoço. Cravo meus dentes na nuca
do peixe de ouro e bebo-lhe um mel,
sugo aflito, como a uma fruta, meus
lábios ficam encharcados, escorre o
mel, caem gotas na pedra, minha camisa
ensopa-se de baba e mel, um mel raro.
Desoladamente constato que trepida
a epiderme desgarrada de seu recheio,
em mantas, fiava pele há pouco
distendida em curvas, ora couro
plissado, de gelhas. Peixe de ouro perde aos
poucos seu revestimento muscular,
sangra, ossos despontam, interligados por
tendões, cartilagens, restos de
carne. Com enorme rudez puxo um nervo
longo e de bom calibre para encordoar
determinada viola d’amore. Desloco,
e com delicadeza removo uma vértebra
do peixe, como quem se serve de um
doce, sorvo o creme vertebral e
trituro a fina peça mal calcificada. A meu
lado, alguém empunha uma das tíbias
como dava, e é milagre a sobrevida
do peixe de ouro, que não obstante
prossegue sustentado não sei por que
espécie de fundamento. Poucos ossos,
quase nenhum, raros tendões, nenhuma
carne. Agarro para mim a fossa
ilíaca; luto por ela, ela me dilacera as mãos, mas é minha, conquistei-a, será
o prato real onde comerei. Sigo, seguimos, impulsionados pelo mero costume,
pois a unidade se partiu em blocos, o que era peixe não é, senão partículas,
pó, aura, microtalco, microtalco de ouro.
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