segunda-feira, 26 de maio de 2014

HISTÓRIAS DE SEBASTIÃO NERY


Eu vi o golpe (parte 2)
Um vozeirão estridente berrava no alto-falante da rádio:
- Povo do São Francisco, peguem em armas para defender nosso presidente João Goulart!
Max da Costa Santos, Demiclotides Batista, Roland Corbisier, eu e outros deputados, que vinhamos da Mayrink Veiga, já encontramos fervendo a Rádio Nacional, na Praça Mauá. Queríamos saber quem era.
Uma jovem contou:
- É um tal de deputado Manoel Novais, da Bahia. Mas ele não está aqui. Falou de algum lugar pela nova Cadeia da Legalidade, que uniu a Nacional, Mayrink Veiga, a Guaíba e um punhado de rádios pelo país todo.
Novais era um velho conservador, amigo de Juracy Magalhães, que foi para a Bahia com as tropas da revolução de 30, foi deputado federal de 34 a 37, voltou á Câmara Federal em 45, de onde nunca saiu até a morte em 87, no mais longo mandato parlamentar da história do país e um dos mais do mundo.
Max, Ferro Costa, Batistinha
Novais era o retrato daquela dramática e enlouquecida noite de 31 de março de 1964. Ninguém sabia ao certo nada de nada, a não ser que as tropas golpistas de Mourão Filho estavam chegando ao Rio para derrubar Jango e cada um tratou de dar o seu recado, que era o último, mas ainda não sabíamos.
O bravo Fernando Barros comandava os microfones da Nacional como se fosse uma casamata. Você chegava, falava, o golpe avançava, o medo crescia, a noite andava.
Max, Batistinha e eu entramos no surrado aero-willys preto do saudoso Ferro Costa (deputado da UDN do Pará), para irmos aos “Correios e Telégrafos”, na Praça XW, de onde o coronel Dagoberto Rodrigues, amigo de Brizola, comandava o sistema de informações do governo.
O carro não pegou. Saltamos os três, ansiosos, nervosos, empurrando o calhambeque de Ferro ao volante, enquanto caminhões do Exército e da PM cruzavam a Rio Branco em disparada. Uma chuva miúda caia no asfalto. O carro pegou, entrei exausto e de repente me deu um profundo desânimo, feito de cansaço, desesperança e tristeza.
Estava tudo se acabando.
Anselmo, Lacerda, Eloy
Mesmo assim, fomos para os Correios. A noite já havia virado. Gente dormindo nas escadas, corredores, poltronas. Um gordo roncava em um sofá, com um fuzil ao lado.  O cabo Anselmo, com aquela cara de santinho de primeira comunhão, mistura de São Luís Gonzaga e São Domingos Sávio, abraçado a uma metralhadora, dava telefonemas aflitos, prepotentes:
- Prendam sim! Nada disso! Prendam! Se resistir, fogo! É tudo ou nada!
Numa sala reservada, reunião meio solene. Os dois irmãos coronéis Oest, o sargento Antonio Prestes, deputados, líderes sindicais e estudantes. E uma dúvida sobre a mesa, cada um dando palpite mais desencontrado.
- Fazer ou não fazer uma coluna armada, para tomar o palácio Guanabara, derrubar Lacerda, dar posse a Eloy Dutra, vice-governador do PTB.
Saímos para a sala  do coronel Dagoberto, que tinha as últimas notícias: o II Exército de Amaury Kruel já tinha aderido ao golpe desde meia noite, o I Exército acabara de aderir, o IV Exército prendera Arrais. Só o III Exército estava dividido. O governador Meneghetti fugira para Passo Fundo, porque o general Ladário e Brizola tinham ocupado Porto Alegre  com a Brigada e o povo.
Corbisier, Paulo Mário
Um deputado, (creio que Roland Corbisier, PSB-Rio) conta, desolado:
- Uma frase para a história. O novo ministro para a Marinha, Paulo Mário, reuniu seu gabinete e amigos e disse solenemente:
-“Estão todos liberados para a resistência individual. É duro lutar contra o imperialismo agonizante”.
Ainda consegui rir. Entra alguém esbaforido:
- A polícia do Lacerda está chegando para cercar o prédio.
Atropeladamente, começamos todos a sair rápido. O dia, já claro lá fora, iluminava nossas caras derrotadas. Não vi o aero-willys de Ferro Costa, tentei uma Kombi, já lotada. Na esquina, um caminhão enorme desejava dezenas de soldados, metralhadoras no pente.
Clube Militar, UNE
Do outro lado da rua, Ferro, Max e o sargento Antonio Prestes saíam tranquilos no aero-willys preto. Gritei, mas não os alcancei. Velhos companheiros da UNE me chamam e fomos caminhando apressados pela 7 de Setembro, sem olhar para trás, o coração aos pinotes, com medo do medo.
Na Rio Branco, um taxi, salvação. Na Cinelândia, cadáveres ensanguentados em frente ao Clube Militar. No Flamengo, a UNE queimava. Paramos um minuto, as labaredas lambiam as janelas, de onde, muitas vezes, havíamos falado. O motorista nos viu chorar, em silêncio, os quatro.
Pedaços de nossas vidas queimavam naquelas rubras labaredas assassinas. 

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