Eu vi o golpe (parte 2)
Um vozeirão
estridente berrava no alto-falante da rádio:
- Povo do
São Francisco, peguem em armas para defender nosso presidente João Goulart!
Max da Costa
Santos, Demiclotides Batista, Roland Corbisier, eu e outros deputados, que
vinhamos da Mayrink Veiga, já encontramos fervendo a Rádio Nacional, na Praça
Mauá. Queríamos saber quem era.
Uma jovem contou:
- É um tal
de deputado Manoel Novais, da Bahia. Mas ele não está aqui. Falou de algum
lugar pela nova Cadeia da Legalidade, que uniu a Nacional, Mayrink Veiga, a
Guaíba e um punhado de rádios pelo país todo.
Novais era
um velho conservador, amigo de Juracy Magalhães, que foi para a Bahia com as
tropas da revolução de 30, foi deputado federal de 34 a 37, voltou á Câmara
Federal em 45, de onde nunca saiu até a morte em 87, no mais longo mandato
parlamentar da história do país e um dos mais do mundo.
Max, Ferro Costa, Batistinha
Novais era o
retrato daquela dramática e enlouquecida noite de 31 de março de 1964. Ninguém
sabia ao certo nada de nada, a não ser que as tropas golpistas de Mourão Filho
estavam chegando ao Rio para derrubar Jango e cada um tratou de dar o seu
recado, que era o último, mas ainda não sabíamos.
O bravo
Fernando Barros comandava os microfones da Nacional como se fosse uma casamata.
Você chegava, falava, o golpe avançava, o medo crescia, a noite andava.
Max,
Batistinha e eu entramos no surrado aero-willys preto do saudoso Ferro Costa
(deputado da UDN do Pará), para irmos aos “Correios e Telégrafos”, na Praça XW,
de onde o coronel Dagoberto Rodrigues, amigo de Brizola, comandava o sistema de
informações do governo.
O carro não
pegou. Saltamos os três, ansiosos, nervosos, empurrando o calhambeque de Ferro
ao volante, enquanto caminhões do Exército e da PM cruzavam a Rio Branco em
disparada. Uma chuva miúda caia no asfalto. O carro pegou, entrei exausto e de
repente me deu um profundo desânimo, feito de cansaço, desesperança e tristeza.
Estava tudo
se acabando.
Anselmo, Lacerda, Eloy
Mesmo assim,
fomos para os Correios. A noite já havia virado. Gente dormindo nas escadas,
corredores, poltronas. Um gordo roncava em um sofá, com um fuzil ao lado. O cabo Anselmo, com aquela cara de santinho
de primeira comunhão, mistura de São Luís Gonzaga e São Domingos Sávio,
abraçado a uma metralhadora, dava telefonemas aflitos, prepotentes:
- Prendam
sim! Nada disso! Prendam! Se resistir, fogo! É tudo ou nada!
Numa sala
reservada, reunião meio solene. Os dois irmãos coronéis Oest, o sargento
Antonio Prestes, deputados, líderes sindicais e estudantes. E uma dúvida sobre
a mesa, cada um dando palpite mais desencontrado.
- Fazer ou
não fazer uma coluna armada, para tomar o palácio Guanabara, derrubar Lacerda,
dar posse a Eloy Dutra, vice-governador do PTB.
Saímos para
a sala do coronel Dagoberto, que tinha
as últimas notícias: o II Exército de Amaury Kruel já tinha aderido ao golpe
desde meia noite, o I Exército acabara de aderir, o IV Exército prendera
Arrais. Só o III Exército estava dividido. O governador Meneghetti fugira para
Passo Fundo, porque o general Ladário e Brizola tinham ocupado Porto Alegre com a Brigada e o povo.
Corbisier, Paulo Mário
Um deputado,
(creio que Roland Corbisier, PSB-Rio) conta, desolado:
- Uma frase
para a história. O novo ministro para a Marinha, Paulo Mário, reuniu seu
gabinete e amigos e disse solenemente:
-“Estão
todos liberados para a resistência individual. É duro lutar contra o
imperialismo agonizante”.
Ainda consegui
rir. Entra alguém esbaforido:
- A polícia
do Lacerda está chegando para cercar o prédio.
Atropeladamente,
começamos todos a sair rápido. O dia, já claro lá fora, iluminava nossas caras
derrotadas. Não vi o aero-willys de Ferro Costa, tentei uma Kombi, já lotada.
Na esquina, um caminhão enorme desejava dezenas de soldados, metralhadoras no
pente.
Clube Militar, UNE
Do outro
lado da rua, Ferro, Max e o sargento Antonio Prestes saíam tranquilos no
aero-willys preto. Gritei, mas não os alcancei. Velhos companheiros da UNE me
chamam e fomos caminhando apressados pela 7 de Setembro, sem olhar para trás, o
coração aos pinotes, com medo do medo.
Na Rio
Branco, um taxi, salvação. Na Cinelândia, cadáveres ensanguentados em frente ao
Clube Militar. No Flamengo, a UNE queimava. Paramos um minuto, as labaredas
lambiam as janelas, de onde, muitas vezes, havíamos falado. O motorista nos viu
chorar, em silêncio, os quatro.
Pedaços de
nossas vidas queimavam naquelas rubras labaredas assassinas.
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