Conto de Luiz Carlos
Facó
Corria o mês
de julho do ano da graça de 1963, quando me casei. E a minha primeira morada
foi um apartamento alugado no Edifício Manuel Vitorino, recém-construído, no
corredor da Vitória, à época, como hoje, um elegante bairro de Salvador.
Em sendo
pequena, a cidade, naquela quadra, propiciava que quase todos os seus
habitantes se conhecessem. Por isso, encontrei entre meus novos vizinhos muitos
amigos. No apartamento de cima, Carlito Príncipe. Noutro, bem perto o general
Liberato de Carvalho, cujos filhos haviam sido meus colegas no Marista. E
tantos outros que me permitiam pensar viver um novo ciclo familiar.
Apesar da
norma condominial proibir expressamente a qualquer morador criar animais nas
dependências do prédio, os apartamentos estavam povoados deles. Nuns se criavam
cachorros. Noutros, gatos. No meu um canário belga, cujo trinado parecia
inspiração para uma melodia de Vivaldi. Tanto virtuosismo o fazia credor de
inúmeros admiradores, dentre os quais, João Jorge Amado e Marinha Celestino,
então noivos, posteriormente marido e mulher, que o batizaram. Numa cerimônia “supercafona”,
como só pobre sabe fazer, dando-lhe o nome de D. Pedrito, El Tenor. No
de Liberato, uma papagaio que agia tal um sacristão ajudando a Santa Missa,
emitindo, sem parar, palavras e frases de caráter religioso: graças a Deus;
misericórdia; aleluia; vão em paz e que o Senhor os acompanhe; valha-me Nossa
Senhora; acorda pessoal, tá na hora de rezar o terço; vamos à missa; parecia
criado por padre, embora o fosse pela bondosa esposa do general. Uma ladainha
que se estendia por todo dia, propiciando-nos lembrar de nossas obrigações
religiosas e pensar mais amiudadamente no Todo Poderoso.
Como todos
ali eram amigos, não havia reclamações. As laudações e invocações do louro eram
suportadas com estoicismo, até mesmo pelos que se consideravam ateus ou
partícipes de outros credos. Desculpavam-no e até achavam graça dos seus ditos.
Quando silenciava, por qualquer motivo, ficávamos apreensivos pelo que pudesse
ter-lhe acontecido. Conjecturávamos estar doente, ausente da casa, ou morrido.
Ansiedade e curiosidade que se desfaziam quando o ouvíamos, novamente, emitindo
os seus sons claramente e em boa altura.
Tão
habituado me encontrava à rotina daquela comunidade, que conseguia ler, estudar
e escrever sem sobressaltos. Até o dia em que o apartamento vizinho ao nosso
foi ocupado por uma família vinda do interior do estado. É verdade que ela não
possuía nenhum animal de estimação que provocasse distúrbios. Em compensação, a
própria se incumbia de provocá-los numa sucessão interminável deles, em
alaridos que se faziam insuportáveis. Desde o primeiro dia que ali se
instalara, aquela família mostrava-se inteiramente desajustada. Os pais
brigavam entre si. Os filhos, um casal, não eram exceção. Discutiam por nada e
por tudo. O que é pior, xingavam-se aos berros. As palavras chulas gritadas
pelo clã, às vezes, unissonantes, feriam meus ouvidos e os dos demais moradores
acostumados a só ouvirem os trinados de D.
Pedrito, el Tenor. Raros miados, latidos e a cantilena piedosa do papagaio
de Liberato.
Acabara a
quietude em que vivêramos até então. Noite e dia éramos sacudidos pelo vozerio
daquele povo. Pela manhã, bem cedo, a
dona da casa começava a gritar como se fora um gralha, dando ordens como um
sargento o faz diante da companhia sob seu comando na hora do adestramento:
- Acorda,
Mundinho, acorda, Nininha, vocês estão atrasados. O colégio tem hora de
começar.
Seguia-se
uma batalha entre os irmãos para ver quem ocupava o banheiro em primeiro lugar.
Disputa transformada em reclamações, destemperos e prantos caudalosos
administrados pelo pai, o único ser mais tratável sob aquele teto. Isso, quando
a mãe estava de bom humor. Porém, muitas vezes, a habilidade dele era
insuficiente para aplacar a ira dos contendores, o que ensejava a mãe
imiscuir-se na pendenga. Dava-se início a uma guerra total, onde a força das
armas era substituída pelos cintos causadores de surras homéricas que os irmãos
tomavam, pelos impropérios ditos sem censura e pelas pragas que ela jogava nas
crianças belicosas. Um horror! Um pandemônio, sem esperanças de final feliz.
Porque, quando as crianças se aquietavam, o pau virava contra o marido. Chamava-o
de banana, frouxo, sem autoridade, incapaz de tomar uma atitude disciplinadora,
máscula. Ofendido, ele saía de inopino, sem tomar o café da manhã, batendo a
porta atrás de si como se quisesse arrebentá-la.
Nesses
momentos, o edifício virava um caos. Os cães ladravam, os moradores,
impacientes, gritavam a uma só voz:
- Basta,
calma, o que é isso?
Só o
papagaio de Liberato fazia contraponto à tragédia que ali se desenrolava,
gritando a plenos pulmões: valha-me Deus, Nossa Senhora! De certo modo isso
amenizava o nosso constrangimento. Fazendo-nos desabrochar um riso amarelo.
Pensar-se
que aquele era o último ato da peça que se desenrolara há bem poucos minutos em
uma enganosa esperança. No proscênio, a protagonista de toda encenação decorava
com cuidado os textos dos atos subsequentes. Assim como o diabo alimenta
incessantemente de combustível as fornalhas do inferno para impingir, com
desmedido calor, mais sofrimento aos condenados sob sua tutela.
Quando as
crianças retornavam da escola, as discussões reacendiam provocando novos
tumultos e o agravamento das irritações acumuladas. Um deus-nos-acuda sem
precedentes. O marido também não escapava das admoestações e reclamos da
cônjuge que, mal-humorada, detratava-o, condenando-o, à proporção de um verme.
Passado um
ano daquela tragédia grega, que se desenrolava, diariamente, diante da nossa
tolerância, quiçá resignação, veio à boa nova. A família estava de mudança.
Voltaria ao interior. Notícia disseminada boca a boca pelos moradores do
edifício que, entre sorrisos, deixavam transparecer um ar de alívio e
distensão.
Com aquela
partida inesperada, a paz se fez nos nossos domínios. Era como se o terremoto
em que vivêramos, houvesse partido sem deixar sequelas. À exceção daquela que
atingiu nosso mais santo morador, o papagaio do general Liberato. Durante
aqueles meses, ele aprendera as mazelas da família, passando a repetir integralmente
o quanto ouvira: acorda, Mundinho, acorda Nininha; seu banana, venha; você é um
moleque; salafrário; seu porra; filho da puta; venha me bater se é homem;
veado; sacana.
Dessa
história não lhes dou conta do final, pois logo depois mudei de apartamento.
Só lhes
posso dizer, amigos leitores, que até a fé é impotente contra as tentações do
dia a dia. O louro que o diga. Vítima do episódio, que o transformou de beato e
santo, adorado por muitos, num acólito do tinhoso, odiado pela maioria.
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