segunda-feira, 12 de novembro de 2012

CARTA AUTÊNTICA DE CAYMMI PARA JORGE AMADO


“Jorge meu irmão, são onze e trinta da manhã e terminei de compor uma
 linda canção para Yemanjá pois o reflexo do sol desenha seu manto em
 nosso mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas canções compus para
 Janaína, nem eu mesmo sei, é minha mãe, dela nasci. Talvez Stela
 saiba, ela sabe tudo, que mulher, duas iguais não existem, que foi
 que eu fiz de bom para merecê-la? Ela te manda um beijo, outro para
 Zélia e eu morro de saudade de vocês. Quando vierem, me tragam um
 pano africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível.
 
                                                                                                                                                    Carybé
 Ontem saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado,
 andamos por aí trocando pernas, sentindo os cheiros, tantos, um
 perfume de vida ao sol, vendo as cores, só de azuis contamos mais de
 quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo. Então ao
 voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a
 Graciano. De inveja, Carybé quase morreu e Jenner, imagine!, se fartou
 de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com
 abarás e acarajés e gente em volta. Se eu tivesse tempo, ia ser
 pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar,
 compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com
 pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que
 tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô,
 conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como
 investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir
 Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas
 outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?
 
                                                                                                                                  Mãe Stela de Oxóssi
 Quero te dizer uma coisa que já te disse uma vez, há mais de vinte
 anos quando te deu de viver na Europa e nunca mais voltavas: a Bahia
 está viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul, esse mar
 tão verde e o povaréu. Por falar nisso, Stela de Oxóssi é a nova
 iyalorixá do Axé e, na festa da consagração, ikedes e iaôs, todos na
 roça perguntavam onde anda Obá Arolu que não veio ver sua irmã subir
 ao trono de rainha? Pois ontem, às quatro da tarde, um pouco mais ou
 menos, saí com Carybé e Camafeu a te procurar e não te encontrando,
 indagamos: que faz ele que não está aqui se aqui é seu lugar? A lua de
 Londres, já dizia um poeta lusitano que li numa antologia de meu
 tempo de menino, é merencória. A daqui é aquela lua. Por que foi ele
 para a Inglaterra? Não é inglês, nem nada, que faz em Londres? Um bom
 filho-da-puta é o que ele é, nosso irmãozinho.
    
 Sabes que vendi a casa da Pedra da Sereia? Pois vendi. Fizeram um
 edifício medonho bem em cima dela e anunciaram nos jornais: venha ser
 vizinho de Dorival Caymmi. Então fiquei retado e vendi a casa, comprei
 um apartamento na Pituba, vou ser vizinho de James e de João Ubaldo,
 daquelas duas ‘línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a minha.
 
 Mas hoje, antes de me mudar, fiz essa canção para Yemanjá que fala em
 peixe e em vento, em saveiro e no mestre do saveiro, no mar da Bahia.
 Nunca soube falar de outras coisas. Dessas e de mulher. Dora, Marina,
 Adalgisa, Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa, quantas outras
 e todas, como sabes, são a minha Stela com quem um dia me casei te
 tendo de padrinho. A bênção, meu padrinho, Oxóssi te proteja nessas
 inglaterras, um beijo para Zélia, não esqueçam de trazer meu pano
 africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu irmão Caymmi”.

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