sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

A INVEJA DE MOZART

Joaci Góes*
 A inveja corrói o coração do invejoso como a ferrugem corrói o ferroAntístenes (453-384 a.C.)

O austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)foi, certamente, o mais precoce entre os maiores compositores de todos os tempos. O garoto prodígio embasbacou a aristocracia, a nobreza e o mundo artístico europeus, com seus concertos e composições, a partir de quatro anos de idade, acompanhado da irmã, Maria, cinco anos mais velha, sob a direção paterna. Além de talentosíssimo, o menino Mozart era extremamente agradável e naturalmente sedutor.
                Quando, em 1762, se apresentou em Paris, declarou à arquiduquesa  e futura rainha Maria Antonieta, apenas um ano mais velha do que ele, que foi cumprimentá-lo: “Você é muito gentil. Quando eu crescer, vou me casar com você”. Maria Antonieta morreu decapitada dois anos depois da morte de Mozart sem ver cumprida a promessa do jovem Amadeus!
                A inveja fez de Mozart uma vítima igualmente precoce. Aos onze anos, em 1767, em Viena, compôs, a pedido, uma ópera bufa intitulada La finita Semplice, que a companhia contratante reputou “um trabalho inigualável”. Não obstante, intrigas e manobras de compositores mais velhos, invejosos do intolerável êxito de Mozart, suprimiram-na da apresentação para a qual foi contratada. Em seguida, o arcebispo de Salzsburg conferiu-lhe o título honorário de “Maestro di Capella”.
                Aos quinze anos Mozart ouviu, pela primeira vez, o Miserere de Allegri, numa sexta-feira Santa, no Vaticano, cumprindo uma tradição que, iniciada no século XXVII, perdura até hoje. Com a restauração da Capela, concluída em fins de 1999, a tradição continua com vigor renovado. A partitura desta composição era mantida, há mais de um século, como segredo religioso. A mera tentativa de aprendê-la era punida com a pena de excomunhão. Para estupefação geral, Mozart a memorizou por inteiro, sem perda de uma nota sequer.
                Em 1771, a ópera Ascanio in Alba de Mozart, então com quinze anos, foi por ele executada simultaneamente com a ópera Ruggiero, do compositor alemão Johann Adolf Hasse (1699-1783). Ao fim do concerto, Hasse, aos setenta e dois anos declarou maravilhado:
Este garoto fará com que todos nós sejamos esquecidos”.
                O mais provável é que Hasse tenha sido tomado por um forte sentimento  de inveja. Sua atitude, porém, revelou um domínio maduro sobre esta “depravação natural”, manifestando-a sob a forma de admiração pelo jovem gênio da música.
                Não é difícil compreender o ônus existencial, oriundo da inveja, que Mozart teve de arrostar paralelamente à fruição  da glória. Esta é uma vicissitude inerente ao êxito. Uns mais, outros menos, todos vivemos de provocar e sentir inveja. O problema é quando é quando a inveja escapa ao nosso controle para provocar destruição e infortúnio!
                Foi o que aconteceu com o compositor ítalo-austríaco Antonio Salieri (1750-1825).
                A verdade histórica inclina-se por não aceitar a versão de que Salieri, num dos seus muitos assomos de inveja contra Mozart, o tenha assassinado por envenenamento, conforme defendido na ópera Mozart e Salieri, de 1898, do russo Nicolas Rimsky-Korsakov (1844—1908). A versão cinematográfica do húngaro Milos Forman, baseada na peça Amadeus, do teatrólogo inglês Peter Schaffer, retoma a tese de homicídio.
                O fato real, objeto do conhecimento do meio artístico da época, é que Salieri invejou tão intensamente o talento de Mozart que, se tivesse podido, tê-lo-ia morto uma centena de vezes.
                Salieri, nascido em 1750, era apenas seis anos mais velho do que Mozart. Isto significa que Salieri teve que conviver, desde os dez anos, com a fama de um concorrente mais moço, cuja extraordinária precocidade fez dele uma personalidade de escol em todo o mundo musical por onde trafegava a partir de quatro anos de idade.
                Num tal ambiente, as comparações repetidas e cada vez mais incômodas, são inevitáveis. Salieri era um músico dotado de inegável talento, do mesmo modo que não era feito da mesma têmpera magnânima de Hasse, cuja avaliação verdadeira de Mozart não suportava admitir. Por isso, começou a sofrer, desde cedo, com as comparações que o situavam, sempre, abaixo dele.
                Bom compositor que era, altamente versado nos segredos da música, Salieri sabia que não era possível vencer o gênio criativo de Mozart, que não cessava de superar-se, para encanto geral. Daí nasceu a inveja obsedante e, com ela, o desejo de destruí-lo como meio de pacificação da sua alma.
                Coube ao poeta russo Alexandr Sergeyevick Pushkim (1799-1837), um século antes de Rimski-Korsacov, produzir seu libelo acusatório gravando, em versos imortais, a denúncia da inveja patológica de Salieri, pondo-lhe nos lábios este desabafo contra a injusta distribuição que Deus faz dos talentos:
                “Que os homens dizem: não há justiça sobre a terra./ Mas na há, igualmente, justiça nos céus/ Porque eu nasci com imenso amor pela arte:/ Ainda criança, escutava o órgão fazer ecoar/ seus acordes maviosos por nossas velhas igrejas./Eu escutava embevecido, enquanto, enquanto doces lágrimas./ Doces e incontroláveis lágrimas banhavam meu rosto” (tradução do autor.
                (Man say: there is no justice upon earth./ But neither there is justice in the Heavens!/ For I was born with a great love for art:/ When – still a child – I heard the organ peal/ its lofty measures througt our ancient church, / I listened all attention – and sweet rears,/ Sweet and involuntary tears would flow.) (Richard Smith – “Envy and the sense of justice”, in The Psychology of Jealousy Envy, editado por Peter Salovey, 1991).  
                E Pushkin continua a emprestar voz, em versos candentes, a toda indignação de Salieri contra os excessos de talento com que a providência mimoseou Mozart, em seu prejuízo, segundo crê. Insiste em que os grandes sacrifícios a que se submeteu pela música, a par de seu talento e bom gosto, fariam dele o destinatário natural da máxima inspiração musical. A posse de tais dons musicais de Mozart, pensaria Salieri, representa uma injustiça intolerável que merece ser vingada com a própria morte!
                Apesar de Salieri vestir sua inveja com o manto da vingança legítima, na visão de Pushkim, ele sabe que não há compreensão social para o seu gesto inconfessável, razão por que, contrariamente à verdadeira cólera santa, que é aberta, altaneira e se expõe, escolhe o caminho da simulação e do subterfúgio, ultimando no envenenamento sorrateiro.
                A inveja de Salieri não pararia aí. Franz Schubert (1797-1828), nascido seis anos após a morte de Mozart, foi aluno de Salieri e pôde sentir à mordida de sua inveja. Salieri, acossado por muitas críticas, uma vez que sua inveja, inicialmente de Mozart e mais tarde de Schubert, era do conhecimento geral, tentou despistar seus acusadores, mostrando-se magnânimo ao chamar de mestre outro seu aluno famoso, Ludwig van Beethoven (1770-1827), vinte anos mais moço que ele. Esta postura, generosa na aparência, é a reação clássica do invejoso consciente de sua malícia quando apanhado em flagrante. Pelo sim pelo não, Beethoven preferiu guardar distância do seu antigo professor.
                Triste destino de Salieri, que continuou a sentir de inveja ainda maior depos da morte de Mozart, cuja música superior era uma lembrança dolorosa a confirmar e a ecoar em seus ouvidos sua inapelável inferioridade.
NR/* Joaci Goés é imortal pela Academia Baiana de Letras. Foi do seu livro (ensaio) A Inveja nossa de cada dia – Como lidar com ela, obra que recomendamos seja lida, é onde fomos buscar esse belíssimo texto para mostramos aos visitantes deste Blog o que é boa literatura.                                                                                                                                              

Um comentário:

  1. Gostaria de saber em que o senhor se baseou essas afirmações de que Salieri era um invejoso. Alguns afirmam o contrário. Salieri era talentoso. E agora depois dessas intrigas entre Mozart e o próprio, a sua música ficou mais conhecida. O público escuta no mundo todo e faz comentários.

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