Do livro: Perfis Urbanos Da Bahia
Geraldo da Costa Leal*
Vamos tomar com termo de comparação os anos da guerra (Segunda Grande Guerra Mundial - 1940-1944) no que se refere à tolerância imposta pelas circunstâncias. A necessidade de adquirir produtos básicos obrigou que as pessoas mais abonadas viessem às ruas entrar nos “piolhos de cobras” (hoje filas) para comprar carvão, carne, pão e outros produtos racionados (o racionamento desses bens ocorria em todas as capitais dos estados brasileiros), mas, ao invés de carne, só encontravam vísceras, presuntos, mortadelas e produtos que poderiam ser encontrados no cambio negro, pois a cerne tinha ido para os quartéis e para as bases navais dos americanos (aqui instaladas – uma delas a Base Baker confronte ao porto). Os bondes bagageiros que transitavam para o Matadouro do Retiro, a fim de conduzirem a cerne de boi para os açougues, chegavam vazios, mas algumas vezes, pessoas “Vips”, por não terem outro meio de locomoção, pessoalmente, sentavam naqueles bancos, portadores que eram de um “bilhetinho”, e o levavam aos açougueiros chefes e, algumas vezes, conseguiam trazer alguns quilinhos de “chupa molho”, dependendo do prestígio do amigo...
A população da cidade era de cerca de 420.000 habitantes e apenas 1.300 pessoas tinham automóveis. A gasolina não poderia ser usada pelos veículos, até mesmo as marinetes (ônibus) desapareceram e a solução para que a população se movimentasse eram os bondes. Segundo o prefeito Neves da Rocha, em dezembro de 1939, no comecinho da guerra, na cidade do Salvador existiam 100 km de linhas (trilhos de bondes), para que 156 veículos realizassem 1475 viagens diárias.
Havia os “carros de praça” (automóveis de aluguel), mas eram dispendiosos e caros. Foi a época em que o “black-out” foi imposto. Hoje pergunta-se: por ordem de quem e para quê? Mas naquele período, como a obrigatoriedade foi real, todas as casas da orla colocavam pano preto nas janelas (camuflagem), os postes de iluminação pública não acendiam suas lâmpadas, pois podiam ser vistas do mar e até mesmo os bondes transitavam na orla, entre Ribeira e Amaralina, portando uma iluminação com lâmpadas de cor azul escura. Assim impediam que submarinos alemães bombardeassem nossa cidade... A única exceção feita foi durante os (três) dias do Rei Momo, afinal de contas, como disse o Barão do Rio Branco, “no Brasil existem duas coisas sérias: a desordem e o Carnaval”.
Com a suspensão do trafego de automóveis, os bondes passaram a transportar passageiros e, obrigatoriamente, a democratização da condução tornou-se total. Eram vistos pobres, ricos sentados nos bancos daqueles veículos, nas réguas, nos estribos, em pé, e todos viajando como antes já faziam 418.700 pessoas, indo para os cinemas, para as Festas da Mocidade, da Asa e Feira de Amostras. Notava-se pelas roupas a diferença das classes sociais, os mais pobres usavam roupas de algodão, “caroá navalha” (usada pelo presidente Getúlio Vargas), ”pele” de ovo e “carrapicho”; os ricos vestiam as roupas de casimira, linho HJ e Diagonal que estavam nos guarda-roupas e só seriam substituídas no final do conflito mundial. No muito, poderiam adquirir ternos de tropical ou casimira Aurora. Ainda era o tempo das roupas completas, com (colete) paletó e gravata, que ainda foram usadas por mais alguns anos, até mesmo nos campos de futebol, regatas, faculdades e ambientes de trabalho, caso contrário, chamava atenção...como aconteceu em um bonde da Barra, registrado pelo Jornal A Tarde em 02 de abril de 1934, com o seguinte texto:
“Queria viajar no bonde em mangas de camisa”
“O condutor do bonde travou luta com um passageiro que queria viajar no veículo sem paletó. Estava chovendo e o passageiro perseguido pela chuva pongou no bonde defronte ao Farol da Barra. Quando quis se sentar para viajar, o condutor não permitiu e pediu que o passageiro saltasse, por não estar vestido adequadamente. Travaram luta corporal. O motorneiro (condutor), de posse de uma alavanca de ferro que abria a agulha dos trilhos, bateu três vezes no passageiro, que levava vantagem na luta com o condutor que a seguir sacou de uma pistola e deu três tiros no passageiro, que foi levado para a assistência, mas está fora de perigo”.
E Cuíca de Santo Amaro (poeta popular baiano que vendia livretos de cordéis), este nem queria saber de pegar bondes, afinal de contas, bem antes de ser cordelista, foi condutor de bondes da Circular (concessionária de tal serviço em Salvador). Residente no Largo de Santo Antônio, , quando recebeu o nome que o tornou famoso, viajava nos veículos recitando seus versos, mas como “santo de casa não faz milagres”, não agradava a todos os passageiros... principalmente quando acoplou ao seu currículo o título de “O Tal”, que o Brasil inteiro sabia ser de Moreira da Silva (cantor carioca também conhecido como o rei da malandragem) ... e tinha sido usado por Antônio Maltez, cantor da Rádio Clube, um dos que fazia ponto na Quitandinha do Capim...
NR/ Assim era a modorrenta vida baiana durante o período da Segunda Grande Guerra Mundial. Provinciana. Preconceituosa. Cujas diferenças sociais, entre seus habitantes, eram gritantemente marcadas.
*Geraldo Costa Leal foi odontólogo diplomado em 1948. Exerceu a função até sua aposentadoria. Tinha paixão pela Bahia e a descreveu em seus livros: Pergunte ao Seu Avô, Um cinema chamado saudade, Salvador dos Contos, Cantos e Encantos. Foi Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, da Cepa e do Instituto “Bahiano” de História da Medicina.
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