Luiz Carlos Facó*
Corriam os anos cinquenta do século passado, modorramente. A Salvador provincial, pacata, envolta num tedioso contar carneirinhos, afogada num oceano de preconceitos, ocupava-se no escutar e fazer ecoar, de boca em boca, fuxicos e maledicências surgidos nas rodas sociais, nos botecos, nas esquinas e lupanares. Era uma rotina inconsequente e canhestra.
Dessa mesmice, a cidade só despertava no início do ano letivo, época em que caravanas constituídas de rapazes e moças, vindas aos magotes, punham os pés em terras baianas, oriundas do Maranhão, Ceará, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e interior do nosso Estado. Na verdade, estudantes. Jovens talentosos, despojados do sentimento do medo, real ou imaginário, armados da disposição e da ambição portadas pelos Bandeirantes, ao penetrarem Brasil adentro, desejosos em abrir fronteiras em busca de sonhadas riquezas, à cata de esmeraldas, ouro e prata. Aqueles, em encontrarem os diamantes proporcionados pelo ensino médio ou universitário, que, em suas cidades de origem, não eram prospectados, sequer garimpados.
Essa horda cativante, geralmente, homiziava-se em pensões, que logo recebiam a denominação de repúblicas, por se tornarem nichos ou fortins dos hábitos culturais de seus hóspedes. Algumas delas ficaram famosas. Principalmente as localizadas na Praça da Piedade, na Rua do Sodré e Faísca – hoje chamada de Avenida Senador Costa Pinto. Havidas por festeiras e qualificadas de irreverentes pelos modismos nelas surgidos.
Uma dessas sobressaía-se dentre as demais. Era a da viúva Costa. Não por causa das reuniões que lá aconteciam. Das noitadas de carteado em campeonatos de buraco, jogos de dominó, gamão e víspora. Ou dos movimentados saraus promovidos pela moçada que a habitava. Tampouco, pela fartura e supimpas refeições ali servidas. Na verdade, o sucesso da casa devia-se à dona. Mulher de fino trato, pródiga em cultura, fala melíflua, gestos elegantes – fingidamente sóbrios – e beleza estonteante. Figura que se Honoré de Balzac houvesse conhecido, a sublimaria como sublimou Júlia d’Aiglement, a protagonista do seu romance, A Mulher de Trinta Anos.
Ademais, suas duas filhas, recém-saídas da puberdade, prenunciando dotes de boas parideiras, belas como a mãe, ariscas que nem lebres à espreita de predadores sintetizavam, à exaustão, todas as demais atrações descritas, para gáudio da rapaziada que nem pensava abandoná-las, muito menos ir à busca de novos sítios ou descobertas.
Num desses encontros, em que a conversa fluía como água jorrando de cascatas, vinda de rios e afluentes, a viúva ouviu dos seus hospedes rasgados elogios à figura de “um tal” Sabino.
Diziam dele os estudantes:
- É aluno brilhante. Inteligente. Estudioso. O primeiro do curso de medicina da Faculdade do Terreiro de Jesus. Contende com os professores. Provoca-os. Defende suas proposições, mesmo quando contrárias às dos mestres. E quase nunca as perde, pois apela à verdade ou ao sofístico. Só lamentamos sua timidez. Principalmente, com as mulheres. Embora pertencente à família rica, não esbanja nenhuma afetação. Vive entre a palidez da pobreza e o ranço da sovinice. Mas, o que nos impressiona é a rapidez do seu raciocínio. Sempre pronto a criar estórias para sustentar seus argumentos. Estórias, as mais das vezes, irreverentes e picantes.
A senhora Costa, diante de tantas reverências, unânimes, a um desconhecido, revelou-se encantada. Queria porque queria conhecê-lo, a todo custo.
Para tanto, enviou-lhe convite por escrito. Mil recados. Fez-lhe, através de seus emissários, centuplicadas promessas. Mas nada removia o jovem a aceitá-los, muito menos responder a eles.
Se o tempo é considerado o aliado mais próximo das mudanças, no caso de Sabino, sua capitulação a tantos pedidos deveu-se à insistência. Louvemos os baianos que têm, na ponta da língua, o adágio que descreve, com precisão, tal circunstância: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.
Um dia, cansado daquele novelístico vai-não-vai, aceita-não-aceita, Galdino anunciou aos amigos:
- Avisem à viúva que atenderei ao convite. No próximo torneio de buraco, participarei como seu parceiro. Mas que ela não tome essa decisão como brecha para torná-la rotineira.
Alvíssaras dessa ordem não se fazem preguiçosas, mesmo entre os baianos. Elas chispam mais rápidas que raios em noites de tempestades.
Data marcada, casa arrumada como se fora para receber grado personagem, viúva e filhas nos trinques – coquetes sem rivais – convidados a postos, eis, na hora aprazada, a figura de Sabino no centro das atenções. Disputado pelos amigos (principalmente pelas anfitriãs) e pouco habituado a tantos rapapés, sentia-se constrangido. Nem por isso despido do cavalheirismo e da etiqueta que lhe caíam tão bem.
- É mais bonito do que eu pensava – dizia em voz alta a viúva, complementando o elogio com outro – já tem o porte de um doutor.
Secundaram-na as filhas chamando-o de “broto legal, garoto fenomenal”, como dizia sucesso de Cely Campelo, a diva musical de então.
Passadas as bajulações, salamaleques – palavra usada corriqueiramente, à época, entre nós, raquíticos provincianos, resquício da herança mulçumana doada à Bahia – as apresentações, as parceiradas recém-constituídas foram ao jogo, em duas mesas. Numa delas assentaram-se a viúva e Sabino, uma das duas filhas e seu par; noutra, confronte à primeira, a filha caçula, seu parceiro e a dupla adversária.
Logo, logo, das fisionomias singulares ali expostas, os observadores postados em volta (e eram muitos, torcedores, “perus” ou “sapos” de uma ou outra dupla) podiam vislumbrar emoções, decepções, ansiedades, alegrias, ouvindo, concomitantemente, indefectíveis expressões tão comuns ao jogo: “bati com canastra real e suja”, “eles foram para o buraco”, “não furtem na contagem dos pontos”, “estamos vulneráveis”.
Num dos raros hiatos de silêncio, pouco condizente com as disputas ali travadas, por casualidade (ou obra do destino?) caem das mãos de Sabino algumas cartas, obrigando-o a agachar-se para recuperá-las. Ato que o levou dirigir olhar, de esguelha, sob as mesas, onde se deparou com cena inimaginável: as filhas da viúva com as pernas abertas acolhendo, entre elas, um dos pés dos seus respectivos parceiros bolinando-lhes o sexo, em carícias audaciosas e temerárias. Era uma libertinagem capaz de levantar os hábitos de monges esculpidos em pedra.
Flagradas na intimidade, as duas jovens afoguearam-se. Viraram dois pimentões vermelhos e, de pronto, arranjaram desculpas esfarrapadas para, por instantes, ausentarem-se envergonhadas. Tão conscientes estavam da impropriedade comportamental, que o fizeram fugindo do olhar fixo e de reprovação de Sabino.
Nesse ínterim, a viúva, enquanto aguardava o retorno das filhas, dirige-se ao seu acompanhante:
- “Doutor” Sabino, consta-me ser um ótimo piadista, um criador de estórias. Por outro lado, sei da sua reserva. Dispa-se dela e nos conte seus chistes.
Ante a negativa do homenageado, os apelos se fizeram uníssonos. Todos queriam ouvi-lo, mas o doutor permanecia impassível na negativa até à volta, ao recinto, das duas senhoritas. Quando, só então, aquiesceu, embora relutante, em atender tão gentis solicitações.
Tomando da palavra, Sabino discorreu:
Durante o dilúvio, num dia em que Noé fazia navegar sem maiores atropelos sua famosa arca, cercado de familiares e dos animais que prometera salvar da extinção, vinda do convés, ouviu a voz de um dos seus filhos, requisitando-o.
- Pai, venha até aqui, apresse-se, temos novidades!
O ancião não se fez esperar. De um só pulo lá estava ele a apreciar, maravilhado, o espetáculo acontecido. A chuva parara, o céu clareara, e, bem ao longe, divisavam-se aves voando numa tranquilidade, até então, impensada. Como tudo se fizera paz e harmonia, pôs-se, absorto, a pensar em suas futuras deliberações, quando outro dos seus filhos gritou:
- Pai, desce logo ao porão, a coisa está feia por aqui!
De uma assentada, o velho se fez presente, para atender a essa outra demanda.
- De que se trata desta vez?
- O bode escapuliu, por descuido meu, da sua baia. Agora está invadindo as demais e cobre as fêmeas, de todas as espécies, que encontra. Está impossível, é preciso pará-lo. Se não o fizermos, enfrentaremos uma rebelião, com graves consequências.
- Corre, meu filho, tanja o bode em minha direção que eu darei um jeito.
Ordenado e feito. Tangido o bode pelo rumo combinado, esse, ao passar por Noé, que se encontrava de tocaia, fez-se agarrado, firmemente, pelo cavanhaque, e, do seu algoz, ouve:
- Dê-se ao respeito, moleque. Tá pensando que aqui é a pensão da viúva Costa, onde tudo na superfície é decente e nos porões é pura sacanagem?
Essa estória varreu coxias. Suas personagens, de tão marcadas, eram apontadas nas ruas. A expressão “tá pensando que aqui é a pensão da viúva Costa” virou sinônimo de esculhambação, desordem, concupiscência, enfim, de deboche. Entrou, como era de se esperar, para as páginas do rico folclore baiano. Merecidamente!
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