terça-feira, 18 de dezembro de 2012

MARIA QUITÉRIA E O DOIS DE JULHO

                                                    Raymundo Pinto*

1.Introdução

                Fora da Bahia, os brasileiros costumam pensar que, após o grito de D. Pedro às margens do riacho Ipiranga – “Independência ou Morte” – não teria havido muitas dificuldades em expulsar as tropas portuguesas que aqui ainda permaneciam. O livro do escritor Laurentino Gomes intitulado “1822” alcançou grande notoriedade e permanece, desde 2010 até hoje, entre os mais vendidos do país. Teve ele a feliz idéia de incorporar ao volume todo um capítulo dedicado a descrever as históricas lutas dos baianos pela independência do Brasil. Só assim as pessoas de outros estados, mais bem informadas e que gostam de ler, começaram a tomar conhecimento de que ocorreram aqui acontecimentos sangrentos e de bravura depois daquela simbólica proclamação. É evidente que a enorme parcela da população pouco educada continua ignorando esses fatos tão importantes. Cabe aos que possuem mais elevada instrução e que se orgulham de ter nascido na Bahia divulgarem com entusiasmo nossa rica história. Nesse breve relato, pretendo fornecer dados essenciais que possam servir para que os propagadores das nossas lutas e heroísmos levem tais informações aos que nada sabem sobre o assunto.  
          
2.Resumo das lutas em território baiano
2.1. Antecedentes

Desde que a Família Real portuguesa veio para o Brasil, em 1808, a então colônia experimentou visíveis transformações. A partir do momento em que o Rio de Janeiro passou a ser a sede do governo monárquico, rápido progresso se verificou em vários setores. As mudanças estruturais tornaram inevitável o crescimento do desejo de cortar os laços que nos prendiam a Portugal. Em 1820, tendo eclodido um movimento constitucionalista em Lisboa, D. João VI foi forçado a voltar. Tal circunstância, sem dúvida, contribuiu para intensificar o movimento em prol da independência. O ano de 1822 foi pródigo em fatos que precipitaram a tendência nesse sentido, como se verá a seguir.
As Cortes determinaram que o príncipe regente D. Pedro teria igualmente de retornar. Se isso ocorresse, ficaria enfraquecida a causa da separação. O jovem dirigente, influenciado pelo grande patriota José Bonifácio, percebeu a grande oportunidade que se abria – aliás, prevista por seu pai quando se despediu dele – e tomou a corajosa decisão de não obedecer. Daí foi um passo para o famoso “Dia do Fico”, em janeiro/22. Logo no mês seguinte, as tropas do general português Jorge de Avilez foram expulsas do Rio. Em consequência disso, ficou patente o controle do príncipe sobre as regiões sudeste e sul.
A reação não tardou. Pouco tempo depois, o governo da Metrópole enviou o general Inácio Luís Madeira de Melo para comandar as tropas na Bahia. Assinale-se que Salvador era, na época, uma das mais importantes cidades das Américas, com indústria naval em expansão e que mantinha um bem movimentado porto, por onde eram exportados diversos produtos agrícolas. Vale ressaltar, nesse ponto, que Portugal, ao trocar o comando militar, adotou a estratégia de dividir o Brasil, ou seja, manter colonizadas as regiões norte e nordeste. Essa constatação é suficiente para demonstrar a decisiva participação dos baianos para que fosse conservada a unidade nacional.
2.2. Início do movimento

Os habitantes de Salvador não se conformaram com a chegada do novo general português e sua arrogância em manter o domínio lusitano a todo custo. Sob a liderança do cirurgião Francisco Sabino da Rocha Vieira – que mais tarde seria o cabeça do movimento conhecido como “Sabinada” – o Forte de São Pedro se revoltou. Madeira de Melo exigiu rendição e, como encontrou resistência, mandou bombardear o refúgio dos revoltosos. Estes tiveram de ceder e fugiram para o interior. Os soldados vitoriosos passaram a cometer atrocidades, sendo a pior de todas a invasão do Convento da Lapa, episódio em que foi assassinada a madre superiora Joana Angélica e espancado o idoso capelão Daniel da Silva Lisboa.   
As forças baianas se concentraram no Recôncavo. As Câmaras de Vereadores das então vilas de Santo Amaro da Purificação e Cachoeira, em sessões históricas, no mês de junho/22 – antes, pois, do Grito do Ipiranga – proclamaram fidelidade a D. Pedro, dando apoio incondicional ao movimento pela independência
2.3. As batalhas até a vitória

Após o Sete de Setembro, os portugueses, em Salvador, continuaram em feroz resistência. Ficaram parcialmente isolados em virtude de terem sido cercados por terra, porém restava a via marítima, por onde recebiam armas, soldados e alimentos. As tropas patrióticas, por sua vez, careciam de recursos e organização. A unidade de comando só começou com a chegada do general francês Pedro Labatut, contratado pelo príncipe regente. Recebendo o apoio oficial, dos fazendeiros, dos donos de engenhos e do povo em geral, os combatentes sentiram-se mais fortes. Acuados, os militares lusitanos, contando com reforços vindos da Metrópole, resolveram romper o cerco. As duas tentativas principais fracassaram. A maior e mais sangrenta batalha foi a de Pirajá, em novembro/22, vencida pelos brasileiros, com a ajuda, segundo a lenda, do cabo corneteiro Luiz Lopes, que teria emitido um toque errado (“avançar cavalaria e degolar” ao invés de “recuar”). A outra derrota, em janeiro/23, se deu na tentativa de invadir a ilha de Itaparica, destacando-se, na oportunidade, a heroína Maria Felipa. A rota de suprimento das tropas portuguesas pelo mar sofreu um grande revés, em maio/23, com a chegada de uma frota de navios, também enviada por D. Pedro, sob o comando do almirante inglês Cochrane.
Os combatentes baianos, apoiados pelo governo central e por outros brasileiros e estrangeiros que aderiram à causa, afinal puderam cantar vitória ao entrarem, como verdadeiros heróis, nas ruas de Salvador no célebre dia Dois de Julho de 1923, que passou a ser da Data Magna da Bahia. Labatut, que havia sido alvo de intrigas e antipatias, tinha deixado a liderança do movimento, sendo substituído pelo coronel brasileiro José Joaquim de Lima e Silva, tio do futuro Duque de Caxias (Luís Alves de Lima e Silva).

Participação de Maria Quitéria
3. 3.1. Breves dados pessoais

Nome completo: Maria Quitéria de Jesus. Houve quem cometesse o equívoco de acrescentar o sobrenome Medeiros. Na verdade, quando ela se inscreveu para guerrear, teria ficado conhecida como “soldado Medeiros”. Segundo se apurou, o referido sobrenome pertencia a um cunhado, cujas roupas, emprestadas pela irmã Tereza, usou para disfarçar sua condição feminina. Nasceu em 1792, no Sítio do Licorizeiro, que ficava próximo do arraial de São José das Itapororocas. O local atualmente faz parte do território do município de Feira de Santana ou, para ser mais exato, fica na área que compreende o distrito feirense que hoje tem o nome da nossa maior heroína. Seus pais: Gonçalo Alves de Jesus e Quitéria Maria de Jesus. Quando retornou à vida normal, após participação ativa nas lutas pela independência, casou-se e teve uma filha. Faleceu, pobre e no anonimato, aos 61 anos (agosto de 1853).
3.2. Incorporação ao movimento

As tropas brasileiras que, no interior baiano, combatiam os portugueses encontraram muitas dificuldades e obstáculos até alcançarem um mínimo de organização. A direção da campanha ficou concentrada na cidade de Cachoeira, de onde partiam diversos mensageiros com o objetivo de conseguir recursos financeiros e adesão de voluntários. Maria Quitéria prestou muita atenção às conversas de um desses enviados que visitou a Fazenda Serra da Agulha, propriedade para a qual seus pais haviam se mudado. Tomou a ousadíssima decisão – numa época de extremo machismo e de proibição da presença da mulher em forças militares – de incorporar-se aos combatentes.
Chegou a Cachoeira com os cabelos bem curtos, seios comprimidos por uma faixa e roupas de homem. Tinha 30 anos. Alistou-se no Batalhão de Infantaria n. 3, que mais tarde, devido ao uniforme verde que seus membros ostentavam, passou a chamar-se Batalhão dos Periquitos. Durou pouco tempo o disfarce. O velho Gonçalo, preocupado com o desaparecimento da filha, vagou por vários lugares até encontrá-la, após um mês, servindo na aludida unidade militar. Apesar dos protestos do pai, Maria Quitéria conseguiu, por fim, convencer o comandante a permitir sua permanência no contingente do Batalhão. Foi vetado apenas que se fardasse como os homens, sendo autorizada a vestir, no lugar, um saiote verde, parecido com os usados pelos escoceses.
3.3. Atividade como legítima combatente

Haverá quem pense ter sido a participação da heroína feirense tão somente na retaguarda e em tarefas mais leves. Dados históricos registram que ela esteve na linha de frente em, pelo menos, três ocasiões. Como visto, as tropas de Madeira de Melo fizeram o primeiro grande esforço de romper o cerco terrestre a Salvador na denominada Batalha de Pirajá. Trata-se de um antigo subúrbio da capital, onde hoje se ergue um monumento em homenagem à vitória ali obtida. Maria Quitéria não participou desse conflito. O Batalhão dos Periquitos, o qual integrava, inicialmente foi designado para guarnecer a ilha de Maré. Depois, seguiu para a estrada da Pituba, lugar em que os portugueses tentaram, outra vez, em novembro/22, furar o cerco. Foi o seu “batismo de fogo”.
A destemida soldado-mulher lutou em Itapuã, em fevereiro/23. Chegou a invadir uma trincheira inimiga e capturar prisioneiros. Como recompensa pela bravura demonstrada, lhe foi conferida, pelo general Labatut, a ordem de 1º cadete. Participou ainda, em abril/23, de uma batalha na foz do rio Paraguaçu, num combate para evitar o desembarque de tropas portuguesas. Há notícias de que guerreou dentro do rio com água na altura dos seios.
3.4. Glórias após os embates

Consolidada a vitória dos combatentes pela independência aqui na Bahia, Maria Quitéria demonstrou vontade de conhecer o Imperador D. Pedro I. Foi atendida em seu desejo. Embarcou num navio para o Rio de Janeiro ainda no mês de julho. O Monarca, além de recebê-la, também a condecorou com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, condecoração só concedida a grandes personalidades ou heróis. Desfilou pelas ruas do Rio com seu uniforme militar verde, atraindo a curiosidade de muita gente que a aplaudia. A imprensa carioca deu cobertura à visita, em artigos e reportagens, ressaltando sempre sua bravura e heroísmo. O Imperador assinou um decreto autorizando o pagamento a Maria Quitéria de um soldo, como alferes, até o final de sua vida.
Vale registrar um fato curioso. No encontro com D. Pedro, nossa heroína solicitou licença a Sua Majestade para formular um pedido. Queria que ele escrevesse uma carta ao pai, aconselhando-o a perdoar a filha que, embora lhe tenha desobedecido, assim procedeu por amor à Pátria. O pedido foi imediatamente atendido. É claro que o velho Gonçalo – que jamais pensaria em contrair um apelo do Imperador – concedeu, emocionado, o perdão.
4.Indicações bibliográficas

Para os leitores que desejam conhecer, de modo mais detalhado, os acontecimentos acima relatados e outros pormenores da vida de Maria Quitéria, indico as seguintes obras:
– Amaral, Braz do – História da Independência na Bahia
– Calmon, Pedro – História da Bahia
– Gomes, Laurentino – 1822 (em especial o capítulo “A Bahia”, pp. 195 a 208)
– Pinto, Raymundo A. C. – Pequena História de Feira de Santana (em especial o capítulo “A Emancipação. Antecedentes”, pp. 141 a 155)
– Reis Junior, Pereira – Maria Quitéria 
– Tavares, Luís Henrique Dias – A Independência do Brasil na Bahia 
*Raymundo Pinto, desembargador aposentado, é escritor e membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, da Academia Feirense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Feira de Santana.


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