Luiz Carlos Facó*
Precisava de um lugar onde tivesse tranqulidade para estudar. Afinal, logo após aquele dezembro de festas, prestaria exame de vestibular para acesso à Faculdade de Direito. Por isso, pedi a João Batista Caribé, por empréstimo, a sua casa em São Tomé de Paripe, cuja cessão foi feita, por tempo indeterminado, graças a sua bondade e cavalheirismo, qualidades que sempre o marcaram. Além doutras tantas, que o tornaram reverenciado por sua excepcionalidade.
Carregado de livros de latim, francês, português e sociologia segui, imbuído daquele propósito para a sua mansão. Contudo, ao vê-la em meio a um bosque de beleza e quietude inexpugnáveis, refletidas nas águas do mar, tépidas e calmas que a confrontava, senti abrandar-se aquela disposição. Consubstanciada quando ali encontrei uma família encantadora: Mirabeau Sampaio, Norma e seus filhos, ainda crianças, Arturzinho e Maria.
Mirabeau era um ser multifacetado. Médico, como repetia de forma contumaz, de um só cliente, “doente único”, professor, comerciante, fazendeiro, escultor e pintor. Senhor de uma alegria esfuziante. Papo agradável, envolvente. Abraçava todos os vícios sem remorso.
Do úisque, sorvia generosos goles. Tivesse a marca que tivesse. Fosse ou não envelhecido. Do cigarro Yolanda Azul, Yolanda Branca ou Astória, arrancava imensas tragadas. Do jogo, buscava a volúpia das grandes apostas sentindo o desânimo das palavras perdidas ou tendo orgasmos sucessivos com os ganhos advindos de um golpe de sorte. Raros, porém excitantes. Prazerosos. Vícios acompanhados por outros muito maiores: a escultura e a pintura. Esses, jamais abandonados. Como o fora o jogo, desde quando proibido pela dura lei de Eurico Gaspar Dutra. O cigarro e a bebida na década de sessenta, por vontade própria, tornando-o um “lastimável abstêmio”, segundo ele mesmo escreveu.
Como poderia me enterrar nos estudos, deixando de desfrutar da companhia de Norma, mulher singular, cuja vivacidade estonteante alegrava a todos a seu redor? Tampouco de Arturzinho, que a todo instante me instava a levá-lo à praia. Ou de Maria que, embora carregasse uma enorme timidez, própria dos seus cinco anos, com olhares doces solicitava a minha presença.
Não estudei, mas, convivendo com aquela família, aprendi muito. A grandeza dos seres humanos, a fidelidade da amizade. A existência da felicidade em doses superlativas, que a educação se expressa através de atos simples. Em particular, com Mirabeau aprendi também apreciar a natureza. A observá-la como um todo, mas atento a seus particularismos. A analisar as suas cores. A vibrar com o nascer de uma flor e vê-la desabrochar, alegrando sítios descalvados, montanhas escarpadas.
Como era porreta aquele professor! Quanta sensibilidade possuía! Tanta, que se esparramava em toda sua arte. Nos meninos esquálidos e nas mulheres morrendo, que retratou. Nas madonas e santas, que pintou, revestindo-as de ouro. Nas flores que acolheu em seus quadros, assemelhadas a preces súplices pela saúde de Norma quando se ultimava. Ou, representativas de cada dia feliz que passou ao seu lado. Só elas, as flores, tinham a linguagem adequada para dizer a sua amada o quanto ela o fizera afortunado. Se lhe faltaram palavras apropriadas para traduzir as ideadas pelo seu coração, suas flores deram o recado.
Da sua obra não sinto saudades. Vejo-a, admiro-a com constância. De você, José Mirabeau, também não, porquanto imortal. Arturzinho e Maria são pedaços seus. Como eles existem, você se perpetua neles. No entanto, sinto falta da sua presença física. Inconfundível. Generosa. Do homem que não ligava para prêmios e honrarias e que se preocupava em colecionar santos esculpidos por artesãos baianos do século XVII, com os quais, santos, você deve, juntamente com Norma, no édem celestial, partilhar um sítio tão generoso como aquele de São Tomé de Paripe, de que juntos um dia compartilhamos.
A você, meu amigo, que disse “eu sou como Simão Sinai de Mântua – antes de tudo católico, depois luterano, depois calvinista, depois outra vez católico, mas sempre ateu”, basta substituir ateu por “artista”. Receba as homenagens deste seu amigo de sempre.
NR/ * Está crônica precede à exposição de alguns santos que Mirabeau adquiriu em vida. Hoje, toda a coleção das imagens por ele adquiridas, pertence à Fundação Odebrecht, e está exposta ao público no Museu de Arte Sacra da Bahia, um dos mais importantes da América Latina. A seleção das dez peças, postadas nas páginas seguintes, tem a apresentação de Maria Sampaio, filha de Mirabeau.
COLEÇÃO MIRABEAU SAMPAIO DE SANTOS RAROS – TALHADOS EM MADEIRA – DOS SÉCULOS XVII e XVIII, HOJE PERTENCENTE À FUNDAÇÃO ODEBRECHT
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