terça-feira, 8 de janeiro de 2013

FREI BASTOS

UMA VOCAÇÃO FRUSTRADA E UM AMOR PROIBIDO
Salvador de Ávila*

            Dentre as figuras de projeção intelectual da Bahia colonial, sempre tive uma particular afeição pelo nome de Francisco da Silva Bastos, ou, como foi conhecido na vida monástica, Francisco Xavier de Santa Rita Bastos Baraúna.
                Inteligência fulgurante, memória prodigiosa, poder de improvisação fabuloso, marcou época em seu tempo.
                Frei Bastos foi, sem nenhuma sombra de dúvida, um dos casos de vocação imposta, pois seguiu uma carreira para qual não tinha nenhuma inclinação, tendo ingressado no clero apenas por imposição paterna, que, segundo o costume da época, determinava qual a carreira dos filhos. Frei Bastos teria sido muito mais útil à sociedade do seu tempo como simples cidadão, do que como sacerdote, pois como tal, foi apenas o alvo das recriminações das autoridades eclesiásticas e do próprio povo.
                Nasceu Francisco da Silva Bastos, aos 03 de dezembro de 1778, sendo filho legítimo de Joaquim Pereira Bastos e de sua mulher, D. Manuela Maria do Nascimento, moradores da freguesia de Santana, nesta cidade do Salvador, conforme prova certidão de batismo passada a pedido do seu sobrinho, o biógrafo, Eduardo Carigé, em 02 de maio de 1901, vasada nos seguintes termos: “Aos nove de fevereiro de 1779, nesta Matriz de Senhora Santana, batizei e pus os Santos Óleos, a Francisco, nascido a 3 de  dezembro de 1778, filho legítimo de Joaquim Pereira Bastos e de sua mulher Manuela Maria do Nascimento, todos moradores nesta freguesia. Foi padrinho, José Joaquim Lalandra, casado, morador da freguesia da Sé, por seu procurador André Matias Mendes Viana, morador também na dita freguesia. E, por verdade, fiz esse assento, DIA ERAT UT SUPRA. (Ass.) O coadjutor. Manuel Álvares – Secretaria Eclesiástica, 29 de maio de 1901. (Ass.) O escriturário, Monsenhor Luiz Gonzaga de Oliveira.
                Filho de pais ricos era desejo de Francisco, logo concluídos os primeiros estudos em Salvador, seguir para Coimbra onde prosseguiria os estudos superiores. Foi, portanto, grande a sua decepção, quando recebeu de seu pai a determinação de entrar para o convento. Francisco, com essa resolução paterna, muito sofreu, pois nutria pela prima Thereza Bastos, um profundo amor, no que era também correspondido.  Thereza, sua prima em primeiro grau, era filha legítima de Antonio André Bastos, e Josefina Pereira Bastos. Desde crianças haviam jurado um ao outro eterno amor. Thereza embora não tivesse a cultura necessária, era, contudo, inteligente e sabia como o primo compor lindos versos, pelo que, entre ela e Francisco havia sempre uma constante troca de versos de amor. Era, entretanto, o século XVIII onde, o pai, como chefe absoluto da família, exercia sobre seus dependentes o poder absoluto: Francisco seria padre, estava determinado. E, forçado por esta resolução paterna, entra para o convento dos religiosos Franciscanos, em um domingo, 31 de agosto de 1794, com a idade de 16 anos incompletos.
                E tal foi a revolta de Francisco ao se ver recolhido à cela de um convento que, num desabafo, dando vazão à sua dor e à saudade da prima querida, compôs o seguinte:
                Se entre neste mundo houver tão forte,
                Que possa ver em sua casa entrando
                Malfeitores cruéis – assassinando
                A cara filha, a cândida consorte;

                Se tal homem houver que sem transporte
                Veja o céu – rubros raios vomitando,
                O mar pelos rochedos atrepando,
                A terra inteira a bracejar com a morte;

                Que apareça esse herói assim disposto,
                Que quero lhe mostrar por dentro o peito
                E quero lhe não mude a cor do rosto!

                Há-de cair em lágrimas desfeito,
                Vendo o meu coração, desfeito,
                Em mil retalhos a pedaços feito.

                Nesses versos demonstrava Francisco a revolta de que se achava possuído e a grande dor que lhe ia na alma.
                Fez sua profissão de fé, em um dia de quinta-feira, 2 de setembro de 1795, com 17 anos, no convento de São Francisco de Paraguassu, perante o Guardião (seu), Frei André da Purificação, tomando o nome de Francisco Xavier de Santa Rita Bastos, adotando ainda, em 1823, mais o de Baraúna.
                Aos 18 anos de idade, no dia 4 de outubro de 1796, fazia Frei Bastos a sua estréia no púlpito do Convento de São Francisco, e tal foi o valor de seu sermão primeiro, que os ouvintes, extasiados, diziam: “Esse frade é um enviado de Deus”. Possuía Frei Bastos, tudo que se poderia desejar num bom pregador: dicção perfeita, gesticulação coordenada, metáforas belíssimas, criando imagens extraordinárias, que a todos agradavam e empolgavam.
                Logo no início de sua vida religiosa, soube Frei Bastos reprimir o espírito irrequieto que possuía. O desgosto e a revolta, entretanto, minavam-lhe o espírito; e, com o correr do tempo, passou a descambar a prática de ações incompatíveis com a moral, atirando-se ao vício e à libidinagem.
                Passou a ter uma dupla personalidade: enquanto do púlpito arrebata os ouvintes, fazendo-os chorar às lágrimas do arrependimento, nos prostíbulos escandalizava a escória dos seus frequentadores. A respeito assim se expressou seu sobrinho, o biógrafo André Carigé: “Frei Bastos tinha uma moral pouco adiantada e, infelizmente, não soube ou não pôde coibir as faltas. O burel franciscano, que lhe cingia o corpo libertino, não era bastante espesso para apagar os desejos que lhe andavam na alma, e a inspiração arrebatadora que lhe ia na mente. Era uma espécie de Bocage de burel. Gênio vivaz, turbulento e insaciável, o frade baiano atirou-se aos desregramentos de criaturas próprias do seu tempo, em Portugal e no Brasil”. Ainda sobre Frei Bastos, assim se expressou Sílvio Romero, em sua História da Literatura Brasileira: “Foi um grande talento inutilizado pela libidinagem, envolto hoje numa camada de lendas pitorescas”.
                Junqueira Freire, poeta beneditino, comparou Frei Bastos, como orador sacro, ao célebre francês Bossuet, dedicando ao irrequieto frade um poema, do qual destacamos a seguinte estrofe:
                ”Desces do altar à crápula homicida,
                Sobes da crápula aos fulmíneos púlpitos
                Ali teu brado lisonjeia os vícios
                Aqui atroa, apavorando os crimes.
                E os lábios rubros dos femíneos beijos
                Disparam raios que as paixões aterram.
                Por que te afogas, Bossuet brasíleo
                No imundo pago da lascívia impura?”
                Foi, entretanto, Frei Bastos, sem nenhuma sombra de dúvidas, um dos maiores oradores sacros baianos; porém, não havia nascido para ser padre. E, quando em conversa com algum parente era abordado o nome de Thereza, seu infeliz amor, que também havia se recolhido a um convento de religiosas, pelas faces do infeliz monge corriam lágrimas de saudades. Em determinados momentos, indignava-se tornando-se agressivo, e, então, no jogo, na bebida e nos prostíbulos procurava esquecer a dor que lhe ia na alma.
                Poder de improvisação extraordinário, Frei Bastos sempre soube com grande sabedoria e oportunismo se sair de situações difíceis, muitas vezes por ela criadas propositadamente. A 28 de maio de 1806, domingo da SS. Trindade, pregando na Catedral diante do Arcebispo D. Frei José de Santa Escolástica, iniciando o sermão assim se expressou: “Maldito seja o Pai, maldito seja o Filho e maldito seja o Espírito Santo”. Como era natural, os assistentes, horrorizados, bradavam misericórdia, a que o frade repetia a heresia, até que o Arcebispo, erguendo-se do seu trono, encara o pregador como a condenar tão tremenda blasfêmia, quando este continua com a maior calma o seu sermão dizendo: “Assim dizem os incrédulos, os ateus e os condenados; eu vos concito, entretanto, irmãos, que bendigais o Pai, o Filho e o Espírito Santo, as três legítimas e verdadeiras pessoas da Santíssima Trindade”, e prossegue, daí por diante numa série de comentários dignificantes em torno do Mistério da Santíssima Trindade. E tão bem se saiu o extraordinário pregador que, ao término do seu sermão, foi recebido no último degrau do púlpito pelo próprio Arcebispo que, abraçando-lhe ternamente, elogiava-lhe a oração.
                Outro sermão digno de nota foi proferido por Frei Bastos a 4 de outubro de 1815, no Convento de São Francisco, no dia da festa do fundador de sua Ordem. Ao evangelho, devia pregar homilia durante a missa, que teria a Assistência Pontificial do Arcebispo D. Frei Francisco de São Dâmaso. Já se aproximava a hora em que o orador devia assomar à tribuna, e se encontrava o mesmo jogando uma partida de cartas; chamado para iniciar o sermão, esconde na manga do hábito o baralho com que jogava. Inicia o seu sermão e, com a ênfase que costumava dar às suas orações, suspende os braços, quando se derrama pela nave da Igreja, ante os olhares escandalizados da assistência, as cartas de jogar. Não se perturba o pregador. Voltando-se para uma criança que se encontra próxima, manda que apanhe uma das cartas e lhe pergunta que carta é, no que é atendido plenamente, repetindo o mesmo por três vezes seguidas; e, ato contínuo, manda que a criança se ponha de joelhos reze o Creio em Deus Padre, no que não é atendido, pois a criança não sabia. Frei Bastos então, mostrando-se indignado, volta-se párea os fiéis e, demonstrado grande decepção, diz: “Vede, caríssimos irmãos em Cristo, a que chegamos nós. Uma criança, no pleno verdor da infância, não conhece uma simples oração de nossa santa religião, entretanto, conhece bastante os símbolos do vício”, e, ato contínuo, tece uma belíssima comparação entre o vício e a virtude.
                Era, Frei Bastos, completamente destituído de ambições e honrarias, pois, da passagem de D. João VI pela Bahia, ao pregar no solene TE DEUM realizado em homenagem à família real, após a pregação, D. João VI ficou tão entusiasmado com o pregador, que lhe ofereceu o Bispado de Mariana, ao que ele agradeceu, porém não aceitou.
                Eram comuns, nos conventos, as prisões de religiosos por questões disciplinares e, como era óbvio, Frei Bastos, pela vida que levava era um dos frequentadores assíduos das celas das reclusões. Contam que, certa feita, quando de uma visita feita ao convento pelo Arcebispo D. Romualdo Antônio de Seixas, o frade prisioneiro manda lhe solicitar um entrevista, no que é atendido; Frei Bastos então, de improviso, escreve ao prelado uma petição em forma de soneto, onde cita personagens bíblicos que haviam pecado contra a carne, cujo teor transcrevemos a seguir:
                “Socorrei-me Senhor, quebrai piedoso
                Minhas algemas cheias de dureza!
                Se meu crime provém da natureza
                Quem de ser deixará réu, criminoso?

                David, que foi tão justo e virtuoso,
                Por Bezabeth caiu na vil fraqueza.
                Sansão perdendo o brilho e a fortaleza,
Ao orbe deu exemplo lastimoso.

Vede Jacob detido em cativeiro
Pela gentil Raquel, vede Suzana,
Vede enfim, Senhor, o mundo inteiro!

Desculpa tenho da paixão insana!
Que ou mandasse-me o céu ser o primeiro,
Ou fizesse de ferro a carne humana”.
                Contam que D. Romualdo ao receber essa curiosa petição, com lágrimas nos olhos, teria dito para o guardião do convento apenas isso: “Soltem-no”.
                Em 1812, foi Frei Bastos, em vista do seu procedimento desagradável condenado a um ano de reclusão em seu próprio convento; não se sabe como, correu notícia que o irrequieto frade havia se enforcado em sua cela. A notícia correu célere por toda cidade, sendo de imediato desmentida. Sabedor da novidade, Frei Bastos, indignado, erguendo-se da cadeira onde estava, improvisou o seguinte:
                “Mundo maquinador de ímpias patranhas,
                Que tens para mentir salvo conduto,
                Danoso mundo, detrator estuto,
                Amostrado em falácias e maranhas;

                Minhas mágoas julgastes já tamanhas,
                Que a cerviz desse ao laço resoluto;
                Alma não tenho? Sou pagão? Sou bruto?
                As penas para mim serão estranhas?
                Abominável mundo! A desventura,
                Embora envolta no manto do pecado,
                Vê sorrir com um riso a corte dura!

                Fizeste-me suicida desgraçado!
                Tu me enterraste já na sepultura?
                Tremerás por me ver ressuscitado.
                Esse fato foi levado ao consentimento de D. Marcos Noronha Brito, então Governador, que, intercedendo em favor do rebelde frade, foi o mesmo posto em liberdade. De imediato dirigiu-se Frei Bastos ao palácio, a fim de agradecer a D. Marcos a sua interferência. O Conde o recebera alegremente e, fitando-o disse: “Meu caro Frei Bastos, a Águia nasceu para devassar o infinito com o seu voo majestoso, e não para ficar reclusa entre as quatro paredes de uma prisão”. Ao que, de pronto respondeu-lhe Frei Bastos: “Superior à Águia, (e aponta para o Governador) está a caridade, que não pode nem deve permanecer em um palácio, porque o Universo é o seu asilo”.
                Apesar de toda sua irreverência e maus costumes, teve, entretanto, Frei Bastos, um fim de vida de sofrimentos e mortificações, pois passou seus últimos anos de existência preso a uma cadeira de rodas, totalmente paralítico.
                Em 1832, dirigindo-se à Freguesia de Santo Antônio de Jacobina, para pregar nas trezenas de Santo Antônio, ali ficou até 16 de junho, quando momentos depois de almoçar, resolveu tomar um banho numa cascata do rio de Ouro, na margem próximo da cidade, sendo nessa ocasião acometido de uma congestão cerebral. Imediatamente transportado para Salvador, baldados foram os esforços para que lhe fosse devolvida a saúde.
                Depois desse desastre, pregou apenas mais uma vez, a pedido de seu amigo, o Arcebispo D. Romualdo, no dia 4 de outubro de 1842. Foi transportado nos braços para o púlpito, tendo nessa ocasião proferido um dos mais delo sermões, findo o qual lhe foi prestada, na sacristia, uma comovida homenagem. Agradecendo, disse Frei Bastos: “Fiz hoje a minha despedida e o codicílio de meu testamento; agora só me resta o túmulo, e Deus se compadeça de quem reconhece, neste momento, quem se desgarrou da estrada do dever e da virtude”.
                Estamos finalmente no dia 2 de setembro de 1844. Fechava os olhos para o mundo terreno aquele que, em vida, fora uma das inúmeras vítimas da vocação imposta. Fora um grande em tudo, tanto na vida desregrada como na intelectualidade.
                E, oh, destino cruel, poucos meses depois, em um dos leitos do convento das Ursulinas, uma religiosa que no século se chamara Thereza Bastos, entregava também a alma ao Criador, como se não suportasse viver na terra, quando morto já estava aquele que tinha sido vítima do seu próprio amor.
NR/ *Salvador de Ávila, foi professor de História, em Salvador. Por suas festejadas aulas passaram várias gerações de baianos. Conhecia, como bem poucos, a História de Salvador. Suas ruas, vielas, becos. Seus casarões, monumentos e os usos e costumes da gente baiana. Foi um pródigo em conhecimento histórico. Seus livros, prenhes de ensinamentos, ganharam o mundo. De um desses, Bahia de Mil Encantos, foi extraída a crônica acima postada.
                 

9 comentários:

  1. Olá, meu nome é Sarah Carigé, estou pesquisando sobre os meus antepassados e no meio da pesquisa descobrir que o Frei era tio de Eduardo Carigé meu tataravô.Gostaria de saber se a biografia foi publicada.O senhor tem ideia da onde saiu o sobrenome Barauna?

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    1. Sarah Carigé eu tenho algo sobre Frei Bastos.

      Meu e-mail: saidfallaci@gmail.com

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    2. Boa tarde Sarah, o nome Barauna foi adotado por Frei Bastos no momento da independência. É um nome adotado individualmente, se ele tivesse descendente, seria a primeira geração a receber o sobrenome Barauna. Frei Bastos era um patriota, assim como todos os homens da família Pereira Bastos. Se houvesse falta de soldados, não tenho dúvidas que ele teria pedido Licença ao bispo para ir para o campo de batalha.



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    1. Sarah Carigé eu tenho algo sobre Frei Bastos.

      Meu e-mail: saidfallaci@gmail.com

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  3. Professor Salvador D´Ávila foi meu mestre e aprendi com ele a amar Frei Bastos e suas histórias pitorescas e como guia de turismo em Salvador, repasso para meus clientes quando estou em guiamento.

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  4. Dizem que uma certa vez ele estava acompanhando um enterro , e parou quando viu uma mulata muito bonita e graciosa no seu rebolado.O enterro continua e um frade chega para ele e diz: Frei Bastos!! segue o enterro, estão todos lhe olhando!!! Ao que ele respondeu" o que é que eu faço? de um lado vejo o amor, do outro lado vejo a morte,Deus que decida agora a minha sorte".

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  5. Sarah Carigé eu tenho algo sobre Frei Bastos.

    Meu e-mail: saidfallaci@gmail.com

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  6. Gostaria de saber mais sobre Eduardo Carige, pois meu avô descendia dele e de Frei Bastos.
    A árvore genealógica. Ficaria muito agradecida.
    Meu e mail:
    gilvbb@gmail.com

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